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Pantomina. O ‘show’ da não-justiça continua... até no jogo da morte
Editorial

Pantomina. O ‘show’ da não-justiça continua... até no jogo da morte

Sempre que se vê acossado, o Sistema Judicial ralha e tenta silenciar, por meio de vulgar intimidação, quem o desafia a prestar contas. Gesticula, teatraliza, mostra músculos anabolizados para escamotear a sua debilidade crónica. Desta vez é a Procuradoria Geral da República a auto-admitir o quanto (não) vale.

Pantomina. Os dicionários explicam que se trata de uma “acção de representar uma história utilizando somente gestos e/ou expressões, geralmente, no teatro ou dança”. No sentido figurado, significa uma mentira bem elaborada, um logro.

Feito este preâmbulo, resistem duas inquietantes questões prévias: A justiça em Cabo Verde é um bem público? É verdade mesmo que o Ministério Público é titular da acção penal? Ora, isto vem a propósito e em reacção a um esquisito, porém, não surpreendente comunicado da Procuradoria Geral da Repúbica a anunciar a abertura de um processo criminal por fuga de informação e violação do segredo de Justiça, na sequência da investiçação de Santiago Magazine que revelou haver suspeições de que a morte de Zezito denti’ D’Oru – tido como o autor material do assassinato da mãe de uma inspectora da PJ – não teria ocorrido em meio a troca de tiros com a PJ, mas sim presumível vítima de um extermínio.

Segue este raciocínio. Em 2014 um homem foi assassinado no bairro de Cidadela, na cidade da Praia, por elementos da Polícia Judiciária, durante uma operação policial, na qual terá alegadamente resistido. O indivíduo em questão era Zezito dente D᾽oru, descrito por inspetores da PJ como perigoso e matador. Na ocasião, os familiares da vítima procuraram as autoridades policiais, judiciais e a comunicação social para denunciarem que a PJ havia sido simplesmente assassinado o seu parente Zezito, e aproveitaram para requerer ao Estado de Cabo Verde a promoção de uma ação de investigação criminal para o apuramento dos factos e a consequente reposição da justiça.

Passaram-se já 7 anos. Sim, 7 longos anos, e não se viu nem se ouviu uma única palavra das autoridades judiciais, concretamente do Ministério Público, que a lei diz que é titular de acção penal. Efectivamente, salvo um ou outro desabafo e acusações publicados nas redes sociais e nos jornais, este crime – sim, crime, porque um homem morreu e o laudo médico atestou homicídio violento – esteve mergulhado no mais profundo e incómodo silêncio até 28 do corrente, quando Santiago Magazine publicou um artigo dando conta da existência de um processo de investigação criminal promovido pelo Ministério Público.

O artigo de Santiago Magazine é claro, quando informa da existência do processo e aborda alguns detalhes do mesmo. Tudo indica que Cabo Verde está perante um crime que envolve elementos da PJ, entre os quais o então diretor nacional adjunto daquela corporação e hoje ministro da Administração Interna, Paulo Rocha.

Em Estados de Direito, mormente os de Direito Democrático como Cabo Verde, a justiça é tida como um bem público. Ora, o Ministério Público passou 7 anos com um processo de investigação criminal sem emitir acusação, sem arquivar, sem dar cavaco a ninguém, privando uma nação inteira o acesso a um bem público, que é a justiça. Um homem foi morto em circunstâncias que o Estado deve esclarecer, mas o Estado simplesmente não esclarece e não diz por que não esclarece.

Antes, esconde-se atrás do segredo da justiça, enquanto os dias correm pachorrentos pelos atalhos do descrédito coletivo. E é esse mesmo Estado que em 24 horas aparece, na pessoa do Procurador Geral da República, a acusar a si mesmo de ter sido violado o segredo da justiça, com ameaças de promoção de uma ação criminal contra presumíveis agentes seus, por eventualmente terem tido a coragem de dar satisfação aos cabo-verdianos sobre um assunto que lhes diz respeito diretamente – o andamento de um processo de investigação criminal.

Surreal, não é? O próprio Estado – ou será a Procuradoria Geral da República de forma isolada? - assumindo que abriu um processo de investigação, mas que até este momento não acusou nenhum dos envolvidos e tão pouco os ouviu, com menção particular ao ministro da Administração Interna, Paulo Rocha.

Um Estado porreiro – diante do esclarecimento de um presumível crime de homicídio, prioriza naturalmente o segredo da justiça. Um Estado onde a violação do segredo da justiça é, em circunstâncias bem determinadas, mais grave que tirar a vida a um ser humano.

Enfim, o comunicado da PGR – divulgado esta quinta-feira, 30, em reacção à notícia da investigação criminal por suposto homicídio, que pende sobre o ministro da Administração Interna, Paulo Rocha – periga claramente a liberdade de informação, despreza e espezinha o Estado de Direito Democrático.

O comunicado que anuncia a instrução criminal por violação de segredo de justiça, peca gravemente pelo seu vazio – não diz quem a PGR investiga, efectivamente – mas deixa por demais evidente, de forma implícita, que o seu alvo, ainda que apontando ao Jornal Santiago Magazine (que se atreveu, devidamente, a dar a notícia), é desvendar quem é a ‘garganta funda’, a toupeira, o chibo. Pequena a ideia, curto o intuito e rasa a finalidade. Uma pantomina.

A que papel se presta, afinal, a PGR?

 

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine