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O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde (*) - Nona parte
Ponto de Vista

O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde (*) - Nona parte

Os eventos que em outras antigas colónias portuguesas se foram perfilando como susceptíveis de se tornarem deveras explosivos e ameaçadores e, até, sangrentos e mortíferos, pareciam não ser de molde a encorajar a existência de tais cenários de pluralismo político-organizativo. Se em Angola e em Timor-Leste a existência de organizações políticas rivais viria a culminar em cenários de devastadoras guerras civis por procuração das grandes potências rivais da Guerra Fria, levando em Angola ao fracasso os Acordos de Alvor e em Timor Leste à invasão, à ocupação e à anexação indonésias, apoiadas pela anexionista/integracionista APODETI, e alegadamente conexas com a já iniciada guerra civil entre os partidos políticos timorenses rivais, designadamente entre a FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente) e a UDT (União Democrática de Timor), sendo que a ocupação e a anexação indonésias somente foram erradicadas mediante a realização de um referendo de auto-determinação política sob os auspícios da ONU já nos anos noventa do século XX. Por outro lado, em Moçambique a FRELIMO impôs-se face a outros eventuais partidos rivais (por exemplo, o COREMO-Comité Revolucionário de Moçambique, sediado no Cairo durante o período colonial-fascista) de Joana Simeão e dos antigos dirigentes e depois dissidentes da FRELIMO Uria Simango e Lázaro Nkavandame, nas negociações com a potência colonial com vista à transição para a independência política conduzida por um Governo paritário de Transição com um Primeiro-Ministro designado pela FRELIMO e um Alto Comissário designado por Portugal. Anote-se que os acima referidos Uria Simango, Lázaro Nkavandame e Joana Simeão viriam a ser internados ainda no período de transição para a independência independência em campos ditos de reeducação política e barbaramente assassinados em 1976 por militares mandatados pelo partido único moçambicano.

NONA PARTE

X

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE AS ALTERNÂNCIAS POLÍTICAS DEMOCRÁTICAS OCORRIDAS EM CABO VERDE NOS ANOS NOVENTA DO SÉCULO XX E NAS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XXI E AS RESPECTIVAS REPERCUSSÕES NA CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA CABOVERDIANA, NAS NARRATIVAS HISTÓRICAS E NO IMAGINÁRIO POLÍTICO-SIMBÓLICO E IDENTITÁRIO-CULTURAL  DO POVO DAS ILHAS E DIÁSPORAS

1. Em todos os cenários acima descritos (designadamente na Oitava Parte do presente trabalho ensaístico), de hipotética e imaginária sobrevivência do PAIGC como partido bi-nacional até aos fins dos anos oitenta e inícios dos anos noventa do século XX, e, assim, de hipotética e ficcionada sobrevivência pós-colonial do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e do dele emergente e nele alicerçado correlativo projecto de união orgânica dos dois países oeste-africanos para a construção de uma pátria africana bi-nacional unida, progressista e solidária, somos  obrigados a firme e convictamente sufragar a opinião segundo a qual, a terem existido, tais cenários poderiam ter tido consequências assaz nefastas e funestas para Cabo Verde. Essas nefastas e funestas consequências consistiriam e consubstanciar-se-iam na exacerbação da vertente repressiva e autocrática do regime autoritário de partido único socializante instituído mais de facto do que de jure em Cabo Verde desde o inesquecível dia da proclamação solene da sua independência  nacional. 

Senão, vejamos: como é sabido, e contrariamente à Guiné-Bissau, houve em Cabo Verde no período pós-25 de Abril de 1974  uma breve vigência do pluralismo político-partidário protagonizado pelo PAIGC, pela UDC e pela UPICV, vigência essa que foi abruptamente interrompida por razões várias,  a mais importante das quais terá sido o consenso conseguido e estabelecido entre, por um lado, todas as correntes político-ideológicas presentes no seio do ramo caboverdiano do PAIGC, designadamente a democrático-revolucionária e cabralista, vinda das duas Guinés, a trotskista e a maoísta, emergentes da clandestinidade política nas ilhas e em Portugal, e, por outro lado, o MFA (Movimento das Forças Armadas), representado em Cabo Verde pela sua ala anti-colonialista e situada  mais à esquerda do espectro político português, no sentido da rápida e definitiva eliminação/neutralização dos partidos políticos adversários do PAIGC, mediante a sua urgente retirada do cenário político caboverdiano ainda antes do re-encetamento das negociações entre o Governo português e o PAIGC sobre as modalidades, os mecanismos e os cenários a adoptar para a efectivação do exercício pelo povo caboverdiano do seu direito à auto-determinação e independência políticas reconhecido no Acordo de Argel celebrado entre o Governo português e o PAIGC. Relembre-se que os partidos adversários do PAIGC vinham sendo recorrente e sistematicamente desqualificados como partidos fantoches alegadamente adversos à descolonização propugnada como um dos três “Ds” (para além do “D” de “Democratização” e do “D“ de “Desenvolvimento”) constantes do Programa do mesmo MFA e a aplicar com a máxima prioridade. Por outro lado, as anteriores negociações entre o Governo português, representado ao mais alto nível pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, e pelo Ministro da Coordenação Interterritorial, António de Almeida Santos, e o PAIGC, cuja delegação fora chefiada por  Pedro Pires, membro da Comissão Permanente e Presidente da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC, e integrava ainda o membro do CEL do PAIGC e Ministro dos Negócios Estrangeiros da República da Guiné-Bissau, Victor Saúde Maria e Lúcio Soares, membro do CEL do PAIGC e do Conselho de Estado da República da Guiné-Bissau, cujas negociações iniciadas em Londres e prosseguidas na capital da Argélia, tinham culminado na celebração do Acordo foram interrompidas desde a celebração do Acordo de Argel. Como é sabido, o Acordo de Argel tinha consagrado o reconhecimento a 10 de Setembro de  1974 por parte de Portugal da República da Guiné-Bissau, unilateralmente proclamada a 24 de Setembro de 1973 na zona  libertada de Madina do Boé, bem como o reconhecimento do inalienável direito do povo de Cabo Verde à auto-determinação e à independência políticas, mas adiaram  e deixaram no limbo o processo que pudesse permitir ao povo das ilhas meso-atlânticas o exercício desse mesmo direito à auto-determinação e à independência  políticas. Com o encarceramento pelo MFA de Cabo Verde dos adversários e opositores políticos do PAIGC no célebre presídio do Tarrafal (ainda que “em regime de recreio”), após a divulgação pela Rádio de uma alegada reunião conspiratória de alguns adeptos da UPICV e da UDC de planeamento de actos atentatórios da integridade física e da vida de altos dirigentes do PAICV presentes nessa altura em Cabo Verde e que, por sua vez, constituiu o pretexto ideal para a realização de maciças e histéricas manifestações populares  convocadas e lideradas pelos dirigentes do PAIGC acima aventados e protagonizadas por simpatizantes do mesmo partido independentista bi-nacional que, em muito altos e sonantes brados, proclamaram a necessidade da independência total e imediata de Cabo Verde, reiteraram a pertinência do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e  conclamaram o povo caboverdiano para a luta sem tréguas contra a reacção interna e a contra-revolução internacional ao mesmo tempo que exigiram a prisão imediata dos alegados conspiradores da UPICV e da UDC, tendo muitos militantes destes dois partidos políticos sido ademais acusados de terem integrado, como agentes ou informadores,  os famigerados e odiosos aparelhos repressivos do colonial-fascismo, em especial a PIDE/DGS. 

Deste modo surpreendente e inusitado, foi rechaçada qualquer hipótese de Cabo Verde chegar à sua independência política mediante a realização de um referendo de auto-determinação e/ou de eleições pluralistas, isto é, com claras opções de escolha entre os programas e os ideários de várias forças políticas em disputa, aliás, num cenário idêntico ao desenhado por Amílcar Cabral no Memorando Apresentado ao Governo português em Dezembro de 1960. Pelo contrário e ao invés,  preferiu-se trilhar um caminho idêntico ao feito na Guiné-Bissau que, todavia, na altura da proclamação unilateral da sua independência política, se encontrava em pleno estado de guerra e tendo o PAIGC como único protagonista político-militar relevante e capaz e na iminência de se impor ao obsoleto agressor colonialista português.

Por outro lado, é quase consensual o entendimento dos observadores e analistas nacionais e strangeiros segundo o qual o período mais  musculado do regime de partido único socializante instituído em Cabo Verde foi aquele que decorreu na vigência do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde, como, aliás,  atestam os eventos de 1977 na ilha de São Vicente, ou na imediata sequência da vigência desse mesmo princípio político-ideológico, como comprovam os acontecimentos de 31 de Agosto de 1981 na ilha de Santo Antão. 

A opção, desde as imediatas vésperas da vigência do Acordo de Lisboa celebrado entre o Governo português e o PAIGC e da concomitante entrada em funções  do Governo de Transição para a Independência,  pelo estabelecimento de facto de um regime de partido único em Cabo Verde, não pode ser dissociada da vigência sem qualquer contestação de monta do mesmo regime de partido único na Guiné-Bissau (salvo algum silenciado clamor da exilada FLING - Frente de Libertação para a Independência Nacional da Guiné), praticamente desde o início da luta político-armada e em razão das vicissitudes próprias da mesma luta, destacando-se aquelas que, apesar dos esforços de Amílcar Cabral e da Direcção do PAIGC, inviabilizaram a existência, ainda que na clandestinidade política na Guiné dita portuguesa e  em Cabo Verde e na legalidade nos países vizinhos, e, depois,  no terreno da luta político-armada, de uma pluralidade de organizações políticas e político-militares, mesmo se organicamente inseridas dentro de uma Frente Unida de Libertação (FUL) que pudesse garantir a unidade orgânica de todas essas organizações para a obtenção das independências políticas da Guiné dita portuguesa e de Cabo Verde, mas também que lograsse salvaguardar a autonomia organizativa, táctica, estratégica  e político-ideológica desses mesmos movimentos independentistas. Sunblinhe-se que alguns deles configuraram-se como unitários de guineenses e caboverdianos, como, por exemplo, os Movimentos de Libertação da Guiné e Cabo Verde sediados em Conacri (MLGCV), em Ziguinchor (MLGC), em Dacar (MLGC) e em Bissau (MLGC), enquanto que outros se apresentaram como exclusivos dos naturais de cada um dos dois territórios oeste-africanos dominados pelo  colonialismo, como, por exemplo, o Movimento de Libertação da Guiné (MLG) de Dakar, liderado por François Kankola Mendy,  o Movimento de Libertação da Guiné (MLG), de Bissau, e a União do Povo da Guiné (UPG), liderado pelo guineense de origem franco-caboverdiana Henry Labery, por um lado,  e o Movimento de Libertação das Ilhas de  Cabo Verde (MLICV), a União Democrática de Cabo Verde (UDC) e a União do Povo das Ilhas de Cabo Verde (fundado em Rhode Island, nos EUA, por Aires Leitão da Graça e refundado em Dacar pelo irmão mais velho José André Leitão da Graça, estando todas as três organizações nacionalistas caboverdianas sediadas em Dacar. Foram essas organizações nacionalistas, com excepção  do MLG de Dakar, o MLG de Bissau e a UPICV de José Leitão da Graça, que, sob o impulso e a orientação político-ideológica e estratégica de  Amílcar Cabral, constituíram em 1961, em Dacar, a Frente Unida de Libertação (FUL) da Guiné e de Cabo Verde. Depois do malogro em 1962, das iniciativas unitasristas e frentistas,  por notória inoperância e pública inactividade da FUL, grande parte das organizações nacionalistas guineenses fundiram-se no seio da FLING que passou a disputar com  o PAIGC o reconhecimento por parte da recém-fundada OUA (Organização da Unidade Africana) e do respectivo Comité de Libertação o reconhecimento como único e legítimo representante do povo da Guiné portuguesa, disputa  essa que, a final, seria ganha pelo PAIGC, após um período de uma espécie de empate técnico durante a qual nenhuma das duas organizações independentistas mereceu o reconhecimento da OUA e o correlativo apoio diplomático-político, financeiro e material.   

Os eventos que em outras antigas colónias portuguesas se foram perfilando  como susceptíveis de se tornarem deveras explosivos e ameaçadores e, até, sangrentos e mortíferos,  pareciam não ser de molde a  encorajar a existência de tais cenários de pluralismo político-organizativo. Se em Angola e em Timor-Leste a existência de organizações políticas rivais viria a culminar em cenários de devastadoras guerras civis por procuração das grandes potências rivais da Guerra Fria, levando em Angola ao fracasso os Acordos de Alvor e em Timor Leste à invasão, à ocupação e à anexação indonésias, apoiadas pela anexionista/integracionista APODETI, e alegadamente conexas com a já iniciada guerra civil entre os partidos políticos timorenses rivais, designadamente entre a FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente) e a UDT (União Democrática de Timor), sendo que a ocupação e a anexação indonésias somente foram erradicadas mediante a realização de um referendo de auto-determinação política sob os auspícios da ONU já nos anos noventa do século XX. Por outro lado, em Moçambique a FRELIMO impôs-se face a outros eventuais partidos rivais (por exemplo, o  COREMO-Comité Revolucionário de Moçambique, sediado no Cairo durante o período colonial-fascista) de Joana Simeão e dos antigos dirigentes e depois dissidentes da FRELIMO Uria Simango e Lázaro Nkavandame, nas negociações com a potência colonial com vista à transição para a independência política conduzida por um Governo paritário de Transição com um  Primeiro-Ministro designado pela FRELIMO e um Alto Comissário designado por Portugal. Anote-se que os acima referidos Uria Simango, Lázaro Nkavandame e Joana Simeão viriam a ser internados ainda no período de transição para a independência independência em campos ditos de reeducação política e barbaramente assassinados em 1976 por militares mandatados pelo partido único moçambicano.

Cenário idêntico ao de Cabo Verde e Moçambique, de implantação de regimes de partido único socializante ainda no período de transição para a proclamação da independência política total, viria a perfilar-se igualmente nas ilhas equatoriais de São Tomé e Príncipe, onde apesar de não ter conduzido uma luta político-armada para a conquista da independência, nem sequer ter participado enquanto tal na luta político-armada levada a cabo em outros territórios coloniais (como foi o caso dos caboverdianos integrados na luta político-armada e diplomática  do PAIGC, partido independentista de base social bi-nacional guineense e caboverdiana), o MLSTP (resultante em 1972 da transformação organizacional do incipiente  CLSTP, fundado em 1960, por iniciativa do MAC-Movimento Anti-Colonial) foi reconhecido por algumas organizações internacionais (como a OUA), como o único e legitimo representante do povo de São Tomé e Príncipe, assim logrando impor-se ante a potência colonial como o único interlocutor credenciado e, assim, obter um Acordo de Transição para a Independência Política em condições mais favoráveis do que aquele obtido pelo PAIGC para a transição para a independência política em Cabo Verde no Acordo de Lisboa de Dezembro de 1974. Em São Tomé e Príncipe foi determinante para a mudança interna de correlação de forças favoráveis e desfavoráveis à independência nacional a mobilização política feita em nome e  em representação do MLSTP pela denominada Associação Cívica Pró-MLSTP. Os  dirigentes da Associação Cívica  eram maioritariamente de tendência maoísta e foram descartados do processo conducente à independência política e obrigados ao exílio político em países amigos, como, por exemplo, Moçambique, ainda durante o período de transição para a independência política. Na verdade, os dirigentes do MLSTP vindos do exílio em vários países africanos independentes, como o Gabão  e a Guiné Equatorial, preferiram aliar-se aos antigos rivais da recém-criada organização autonomista que comungava de um ideário político próximo daquele propugnado pelo federalismo spinolista e absorvê-los no MLSTP, depois de se ter tornado claro e inequívoco que era irreversível o processo político que conduziria à independência política do pequeno país africano insular e equatorial. 

2. Para consolo histórico dos caboverdianos, pode-se sempre  afirmar, agora e a posteriori, que foi somente nos territórios coloniais portugueses em que se realizara uma transição política para a independência política com  vigência de facto do regime de partido único  que não houve lugar a sangrentas guerras civis e outras grandes tragédias históricas e humanas.

No caso de Cabo Verde impôs-se um regime de partido único mais ou menos mitigado consoante as circunstâncias e os momentos históricos concretos, certamente por os  dirigentes e responsáveis políticos do ramo caboverdiano do PAIGC bI-nacional do PAIGC e, depois, do PAICV, se sentiram condicionados pelos seguintes factores: 

a) A relativa maturidade histórica das suas elites letradas, burocrático-administrativas, económico-empresariais e políticas, no passado recente postas directamente em contacto no chão madrasto das ilhas com um regime colonial-fascista ferreamente adverso dos direitos cívicos e inimigo das liberdades políticas e,  por isso mesmo,  derrubado a 25 d Abril de 1974, e, na retaguarda política e logística  oeste-africana onde laborou para as independências políticas de dois países, com um regime revolucionário anti-colonialista e anti-imperialista de feições nitidamente totalitárias e abertamente sanguinárias.

b) A extrema dependência das ilhas caboverdianas em relação à ajuda externa e às doações internacionais em razão das suas condições climatéricas e ecológicas extremamente adversas.

Em todos os outros países africanos colonizados por Portugal, os respectivos regimes de partido único, por vezes fortemente condicionados por guerras civis aliadas a guerras de agressão por  potências estrangeiras vizinhas, como o Zaíre de Mobutu e as racistas África do Sul e Rodésia do Sul, como nos casos de Angola e Moçambique, assumiram feições assaz repressivas e práticas políticas subtil e/ou assumidamente totalitárias, exacerbadas e justificadas especialmente na sequência da assunção pelos seus partidos únicos de ideologias afro-estalinistas (também apodados de estalinistas tropicais) invariavelmente denominadas marxistas-leninistas nos respectivos Congressos partidários realizados em 1977. 

Embora aparente e relativamente mais moderados na destilação verbal de fraseologia e verborreia revolucionária e na sistemática violação dos direitos humanos universais dos seus opositores e dissidentes políticos, os regimes políticos de partido único implantados na Guiné-Bissau e em São  Tomé e Príncipe caracterizaram-se no geral, tal como, aliás, aqueles implantados em Angola e Moçambique, por políticas económicas socializantes ou prematuramente socialistas que, deficientemente elaboradas ou mal executadas, parecem ter enormemente negligenciado a agricultura como sector económico básico do desenvolvimento sustentado e ter desvalorizado completamente o incipiente e/ou nascente sector privado,  e, por isso,  levaram à falência o sector produtivo herdado (como é por demais visível no caso das roças de S. Tomé  Príncipe, nacionalizadas logo depois da declaração da  independência, e,  depois, deixadas quase ao abandono e, com elas, os antigos serviçais caboverdianos). A má ou deficiente gestão económica aliada ao rosto por demais intolerante e repressivo dos regimes políticos de partido único nos demais países afro-lusófonos, tornou o caso caboverdiano um caso de estudo, pois que,  sendo o país  afro-lusófono mais desprovido de recursos naturais e, por isso, com menos expectativas de sobrevivência como entidade política independente e soberana,  foi todavia o que melhor soube gerir a ajuda externa e menos  saldo político repressivo teve, mesmo se comparado com a República irmã da Guiné-Bissau dos tempos em que ambos os países eram governados pelo mesmo partido-movimento de libertação bi-nacional.

3. As consequências para a Guiné-Bissau do golpe de Estado liderado por Nino Vieira são por demais conhecidos: inaugural de uma série de inventonas de golpes de Estado e/ou de golpes de Estado efectivos  que se tornaram usuais e rotineiros como formas de resolução de dissenções e conflitos políticos, o golpe de Estado militar que se consumara na implantação do regime monopartidário e ditatorial do General João Bernardo (Nino) Vieira, continuado depois num quadro político de multipartidarismo partidário, persistiu na prática extensiva e sistemática de violação dos direitos humanos de que tanto acusara o “regime de Luís Cabral” para justificar o seu golpe de Estado militar, aliando essa amaldiçoada e universalmente condenada prática com a captura do Estado por sectores restritos da nomenclatura político-partidária, governamental e empresarial, a má gestão económica e do erário público e, finalmente, o tribalismo e o racismo étnico-cultural, os quais passaram a atingir não só os bissau-guineenses de origem caboverdiana (do ponto de vista jurídico-constitucional discriminados nos seus direitos de cidadãos bissau-guineenses, por exemplo, no acesso à chefia do Estado) mas o conjunto da sociedade bissau-guineense, doravante fortemente perpassada por considerações políticas de teor etnicista  e feições abertamente tribalistas e racistas. O evoluir amplamente negativo da situação política, económica, social e  cultural do país não parece ter abrandado nem mesmo com a sua democratização e a multi-partidarização da sociedade bissau-guineense. Tudo viria a  culminar na Guerra Civil de 1998/1999, na sequente balantização do  Estado bissau-guineense e na irreversível caminhada para o descalabro político-social que encorajam alguns observadores e analistas a caracterizar a Guiné-Bissau como um factual Estado de Não-Direito, muito próximo quer de um Estado falhado, quer ainda de um Narco-Estado. 

Embora muito menos gravoso para Cabo Verde do que aquele representado pela sobrevivência de um PAIGC bi-nacional sob a liderança de Nino Vieira, o cenário repressivo acima delineado para o hipotético caso da manutenção de Luís Severino de Almeida Cabral no poder não podia obviamente deixar de  ter repercussões  muito negativas no ramo caboverdiano do PAIGC, o qual tinha sofrido um ano antes a sua primeira grande dissidência político-ideológica protagonizada pelo chamado fraccionismo trotskista e estava nestes fins dos anos setenta e inícios dos anos oitenta em pleno processo de discussão pública (e correlativa contestação) da Lei de Bases da Reforma Agrária, na nossa opinião assaz moderada e ponderada, para outros famigerada e comunista que baste. 

Esses efeitos repressivos negativos poderiam todavia ter sido contrariados mediante uma cada vez maior autonomização do ramo caboverdiano do PAIGC em relação tanto à sua congénere partidária bissau-guineense como em relação aos órgãos bi- e supra-partidários, tendência que, aliás, se vinha tornando cada vez mais visível e notória desde a proclamação da independência  política de Cabo Verde e, anos mais tarde,  tornara assaz fácil a transformação do ramo nacional caboverdiano do PAIGC em PAICV.

Em síntese provisória, se bem que conclusiva e aparentemente demolidora, estamos em crer que a implementação pós-colonial do  princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e do projecto de pátria africana bi-nacional unida, progressista e solidária, fundada na união orgânica entre as Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e de Cabo Verde muito dificilmente ou, melhor pensado e dito, certamente nunca poderia sobreviver no cenário exacerbadamente chauvinista  e anti-africanista das mudanças políticas ocorridas em 1991 nas ilhas de Cabo Verde e que certamente ocorreriam na Guiné-Bissau, nos hipotéticos cenários acima cogitados e explanados. 

 

4. A parcial  e, depois, expressiva redução da base social de apoio efectivo do MpD (mesmo se não retratada de forma clara, inequívoca e transparente nas eleições autárquicas e legislativas de  1995 e de 1996) ficaria comprovada com os seguintes e muito relevantes factos políticos:

a) A segunda dissidência e fractura político-partidárias da sua história liderada por Jacinto Santos, José António dos Reis, José  Luís do Livramento Brito, Simão Monteiro e Hélio Sanches, a qual culminaria  na constituição de uma nova formação política, o Partido da Renovação Democrática (PRD);

b) As eleições autárquicas de 1999, as eleições legislativas de 14 de Janeiro de 2001 e as eleições presidenciais de Fevereiro de 2001.

Apesar de manter o seu estatuto de principal força autárquica do país, as eleições autárquicas de 1999 saldaram-se num significativo recuo político para o MpD, que perde importantes municípios, como o da Praia e o  de Santa Catarina na ilha de Santiago, o do Paúl na ilha de Santo Antão e os dois novos municípios de São Filipe e dos  Mosteiros na ilha do Fogo (ilha sempre tida por bastião do PAICV na sua anterior configuração uni-municipal), os quais se vêm juntar aos municípios de São Vicente, do Sal, da Boavista e ao da anteriormente uni-municipal ilha do Fogo,  que permanecem nas mãos da oposição política autárquica.

Ademais e  tendo doravante   como Presidente Gualberto do Rosário que substituiu Carlos Veiga na liderança do partido, o MpD viria a perder  as eleições legislativas de 14 de Janeiro de 1991 para  um PAICV doravante chefiado por José Maria Pereira Neves que, tendo pugnado pela presidência do PAICV contra o seu tradicional adversário interno Felisberto Alves Vieira, substituíra Pedro Pires na liderança do principal partido caboverdiano da oposição, depois de uma primeira e  frustrada, mas politicamente muito relevante candidatura contra esse dirigente histórico do PAICV regressado à liderança partidária depois de ter sido substituído por Aristides Lima, jovem dirigente partidário e deputado na última legislatura da Assembleia Nacional Popular e na Assembleia Nacional, de cuja Mesa viria a ser Presidente, e que perdera todas as segundas eleições pluri-partidárias disputadas no Cabo Verde pós-colonial, designadamente as autárquicas de 1995 e as legislativas de 1996.  Foi deveras relevante, ainda que frustrada, a primeira disputa da liderança partidária de José Maria Neves, pois que tendo perdido a disputa eleitoral interna, todavia ganhou os favores do eleitorado caboverdiano, na medida em que essa pugna interna, transmitida e/ou reportada pelos principais órgãos de comunicação social caboverdianos, deu para o exterior a imagem de um PAICV prestes a rejuvenescer-se e completamente reconvertido aos ditames pluralistas de uma democracia moderna, mesmo em se tratando de uma disputa intra-partidária de liderança, na  qual Pedro Pires teve como adversário interno o jovem que, anos antes, fora cooptado por ele para candidatar-se à liderança da JAAC-CV (Juventude Africana Amílcar Cabral-Cabo Verde) para substituir José Gomes da Veiga, um oficial das FARP que,  por sua vez, fora indigitado no lugar do ex-tarrafalista Luís Fonseca, que, por sua vez substituíra, o também tarrafalista e jovem Pedro Martins que resolvera prosseguir os estudos universitários nos Estados Unidos da América. Atente-se e relembre-se ademais que Pedro Verona  Rodrigues Pires (de seu nome completo) dispunha nessa altura de um longo e riquíssimo currículo político, tendo sido  um dos integrantes da célebre “fuga dos cem “estudantes universitários” e integrantes africanos das Forças Armadas portuguesas que deixaram Portugal para se irem juntar aos respectivos movimentos de libertação nacional, um mobilizador político de emigrantes caboverdianos para a luta da independência, o principal responsável do chamado Grupo de Cuba, veterano da luta político-militar conduzida pelo PAIGC na Guiné  dita portuguesa e na unilateralmente proclamada República da Guiné-Bissau, membro da Comissão Permanente e primeiro Presidente da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC indigitado pelo II Congresso desse partido-movimento de libertação bi-nacional realizado após o assassinato de Amílcar Cabral, principal negociador dos Acordos de Argel e de Lisboa, respectivamenmte de reconhecimento pelo Governo portugês da Repíublica da Guiné-Bissau e do direito do povo caboverdiano à auto-determinação e à independência, e de transição para a independência política de Cabo Verde, sucessivamente Secretário-Geral Adjunto e Secretário-Geral do PAICV, primeiro Primeiro-Ministro de Cabo Verde pelo período de quinze anos que  durara o regime de partido único e o período de transição política para o multipartidarismo e candidato derrotado  do PAICV ao cargo de Primeiro-Ministro nas eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991.

5. É esse entrementes assumido Comandante político-militar  (da sua patente de único Comandante de Brigada do ramo caboverdiano das Forças Armadas Revolucionárias do Povo-FARP, depois denominadas Forças Armadas de Cabo Verde na sequência das mudanças liberal-democráticas iniciadas em 1991)  que, depois dos auspiciosos resultados eleitorais do seu partido nas eleições autárquicas de 1999 e nas eleições legislativas de 2001,  viria a apresentar-se  às eleições presidenciais de Fevereiro de 2001 contra o líder histórico do MpD. Na sequência dessa disputa eleitoral, a qual fecha o ciclo eleitoral iniciado com as eleições autárquicas de 1999 e  continuado com as eleições internas do PAICV e do MpD do ano 2000 e as eleições legislativas de 14 de Janeiro de 2001, Pedro Pires seria oficialmente declarado vencedor por  apenas 12 controversos votos na segunda volta das eleições presidenciais,  por decisão unânime do Supremo Tribunal de Justiça nas suas vestes de Tribunal Constitucional,  depois de ter vencido uma primeira volta dessas mesmas eleições presidenciais disputada contra Carlos Veiga, Jorge Carlos Fonseca (apoiado pelo PCD) e David Hopffer Almada (apoiado pelo PRD e por pequenas franjas de cidadãos conotados com o PAICV).  Relembre-se neste preciso contexto que,  nas suas vestes de Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde rejeitara liminarmente  o recurso contencioso interposto pela candidatura presidencial de Carlos Veiga por esta não ter previamente reclamado na respectiva assembleia eleitoral, designadamente a de Covoada no círculo eleitoral da  ilha  de São Nicolau, em razão  alegadamente da comparência tardia do respectivo delegado eleitoral à mesma assembleia de voto. Tendo acatado a decisão soberana do Tribunal Constitucional, mas mostrando-se insatisfeito com a mesma, Carlos Veiga, que vencera as eleições presidenciais no círculo eleitoral nacional, procedeu criminalmente contra os membros da mesa da assembleia eleitoral acima referida, vindo  nessa sequência a ficar provado que de facto houvera descarga de nomes de eleitores inscritos nos cadernos eleitorais mas não votantes porque ausentes do acto eleitoral efectivamente realizado na assembleia eleitoral da aldeia de Covoada na ilha de São Nicolau, não se tendo todavia podido apurar qual dos dois candidatos presidenciais em liça teria sido favorecido por essa mesma descarga ilegal do respectivo caderno eleitoral. Do procedimento criminal intentado por Carlos Veiga resultaria  a condenação a prisão efectiva dos membros da mesa eleitoral de Covoada directamente implicados no ilícito criminal, tendo-se  todavia mantido a vitória eleitoral de Pedro Pires em observância do princípio de aquisição sucessiva dos actos vigente no direito administrativo maxime no direito eleitoral caboverdiano e tal como fora decidido pelo Supremo Eleitoral caboverdiano, nas suas vestes de Tribunal Constitucional, diga-se que sujeito a pressões várias de todos os quadrantes político-partidários nesses assaz conturbados tempos de procura de aperfeiçoamento do sistema eleitoral caboverdiano em face da proliferação dos votos múltiplos, do furto de urnas eleitorais, além das até agora ainda  quase inexpurgáveis persistentes e famigeradas  boca de urna e compra de votos e de consciências. 

Relembre-se ademais e como relevante curiosidade política com importantes repercussões jurídico-constitucionais que Carlos Veiga ficara bastante desgastado com a questão da auto-suspensão do seu mandato de Primeiro-Ministro para se candidatar ao cargo de Presidente da República de Cabo Verde, tendo para tanto indigitado para o substituir interinamente o vice-primeiro Gualberto do Rosário, entretanto eleito Presidente de um MpD fracturado com a contestação e a dissidência políticas que viriam a culminar na formação do PRD. Confrontado com o facto consumado da alega e inusitada existência de dois Primeiros-Ministros (um suspenso e outro em exercício efectivo de funções) num só governo e de, outrossim, ter sido alegadamente marginalizado na resolução dessa candente questão jurídico-constitucional, o Presidente da República  António Mascarenhas Monteiro optou por uma solução radical, mas que lhe pareceu a mais adequada do ponto de vista jurídico-constitucional para pôr cobro e um rotundo fim à ficção de dois Primeiros-Ministros:  obrigou o Primeiro-Ministro Carlos Veiga a demitir-se, nomeou Gualberto do Rosário  como novo Primeiro-Ministro, obrigando-o a seguir o procedimento habitual em circunstâncias similares e que era a apresentação do Programa do novo Governo à aprovação por maioria absoluta dos deputados integrantes da Assembleia Nacional. Sabendo o MpD detentor de uma larga maioria na Assembleia Nacional caboverdiana, o Primeiro-Ministro indigitado Gualberto do Rosário limitou-se a submeter ao mesmo parlamento  o Programa do Governo anteriormente apresentado por Carlos Veiga ao mesmo parlamento no início do seu mandato. Cumpridas as formalidades jurídico-constitucionais e regimentais exigidas e impostas pelo Presidente da República António Mascarenhas Monteiro, o Vice-Presidente do governo de Carlos Veiga tornou-se, assim,  Primeiro-Ministro de Cabo Verde na plenitude do termo e das funções efectivamente exercidas. Gualberto do Rosário viria todavia a solicitar a exoneração das suas funções  de Chefe do Governo caboverdiano (agora em  mera gestão corrente) na sequência da estrondosa derrota do seu partido, o MpD, nas eleições legislativas de 14 de Janeiro de 2001 e ainda antes da realização das eleições presidenciais de Fevereiro desse mesmo ano de 2001. Repetia-se assim o cenário de dez anos antes, quando, certamente  muito aturdido por mor da sua  estrondosa derrota nas eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991, Pedro Pires solicitara ao então Presidente da República Aristides Pereira a sua exoneração das funções de Chefe do  Cabo Verde (também de mera gestão corrente), assim obrigando Carlos Veiga, o Presidente do partido vencedor das eleições legislativas acabadas de  realizar,  a assumir a chefia de um governo intercalar antes da assunção plena das suas funções de novo Primeiro-Ministro constitucional de Cabo Verde ante o novo Presidente da República, António Mascarenhas Monteiro, e o parlamento caboverdiano. O papel supletivo anteriormente desempenhado por Carlos Veiga era agora assumido por José Maria Neves e quem o empossa é o mesmo Presidente da República António Mascarenhas Monteiro, agora em fim de mandato, antes de tomar definitivamente posse  no cargo de novo Chefe do Governo constitucional pelo novo Presidente da República Pedro Verona Rodrigues Pires.

6. Relembre-se que Pedro Pires fora exonerado a seu pedido do cargo de Primeiro-Ministro pelo último Presidente da Primeira República caboverdiana, Aristides Maria Pereira, o qual curiosamente o postergara pela segunda vez de uma candidatura ao cargo de Presidente de República, designadamente nas eleições presidenciais pluralistas de Fevereiro de 1991.  Com efeito, nessa altura de abertura política e de relativa multiplicação de partidos políticos (com a publicação e a angariação de assinaturas do Manifesto do MpD - Movimento para a Democracia, o precário ressurgimento da UPICV de José Leitão da Graça, o aparecimento à luz legal do dia da UCID e a fundação de algumas associações cívicas e políticas como a USD (União Social Democrata), de Jorge Querido e Pedro Martins, e a Associação Cívica Cristã, do Padre Fidalgo e de António Jorge Delgado), consubstanciada na pluripartidarização de facto da sociedade caboverdiana e de criação de todos os pressupostos político-constitucionais e  jurídico-legais para acelerada e pacífica transição para um regime político de democracia pluralista e multipartidária, Pedro Pires preparava-se para apresentar ao eleitorado caboverdiano a sua candidatura presidencial, tendo o PAICV presumivelmente como  Secretário-Geral e candidato a novo Primeiro-Ministro de Cabo Verde o membro das sua Comissão Política, Comandante João Pereira Silva. E eis que voltando com a palavra dada presumivelmente por pressão de adversários internos de Pedro Pires descontentes com a solução encontrada para a sucessão do Secretário-Geral Adjunto do PAICV como Chefe do Governo caboverdiano, e incorporadas designadamente por Abílio Duarte, Osvaldo Lopes da Silva (recentemente demitido do governo) e/ou Silvino da Luz, bem como de importantes personalidades da sociedade civil caboverdiana das ilhas e diásporas, designadamente o consagrado escritor e médico Henrique Teixeira de Sousa, Aristides Pereira mostra-se disponível a assumir uma candidatura presidencial apoiada pelo PAICV, demitindo-se  para tanto do cargo de Secretário-Geral desse mesmo partido e que vinha exercendo desde a sua fundação a 20 de Janeiro de 1981. É presumivelmente já mergulhado nessas cogitações que mais de um mês depois da Abertura Política de 19  de Fevereiro de 1990, Aristides Pereira recebeu uma delegação do MpD chefiada pelo seu Presidente provisório Carlos Veiga, que assim enceta as suas actividades públicas sem  quaisquer receios de eventuais represálias por parte das Forças de Segurança e Ordem Pública (FSOP). Iniciadas com uma conferência de imprensa no Hotel Praia-Mar  seguida de uma sessão de esclarecimento no Centro Social Primeiro de Maio, todas localizados na cidade da Praia, e já marcado positivamente pela expressão “desmame do Estado”, cunhada pelo psicólogo clínico José António dos Reis num programa da Rádio Nacional de comentários e posicionamentos de cidadãos caboverdianos a propósito do teor da conferência de imprensa dada por Pedro Pires no Salão de Banquetes da Assembleia Nacional Popular para anunciar a Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1991, as actividades políticas do emergente MpD foram conhecendo um crescendo que o viriam a transformar num  actor muito relevante, senão co-autor intelectual e material da transição política democrática inaugurada com a acima Abertura Política anunciada por Pedro Pires e que foi caracterizada pela cientista política Roselma Évora como transição política por transtituição em razão do importante papel desempenhado na suas configuração e no seu desenlace  tanto pelos seus iniciadores (os antigos detentores do monopólio político e/ou dass alavancas fundamentais do poder político como também pelos antigos opositores, dissidentes, críticos e até compagnos de route dos detentores do poder.  O inusitado e  crescente protagonismo político do MpD tem um momento alto quando nas negociações políticas para estabelecer os eventuais cenários e calendários para uma transição política tranquila, pacífica e adentro do quadro ínstitucional e constitucional vigente, se bem que em célere re-adaptação, e entabuladas pelo PAICV com a emergente oposição política de facto legalizada e representada pela UPICV, pela UCID e pelo MpD, este nascente  partido-movimento político consegue impor ao antigo partido único (quase) todas as suas condições, exaradas no seu Manifesto fundacional e aprovado pelos seus promotores a 14 de Março de 1990 como necessárias e indispensáveis para a transformação da mera liberalização política do regime de partido único  pretendida pelo PAICV em verdadeira transição política democrática, quais  sejam: i. A realização de eleições legislativas no fim da terceira legislatura da ANP, não com o PAICV concorrendo contra meros grupos de cidadãos, ficando as eleições legislativas pluripartidárias  adiadsas para a nova legislatura que se iniciaria com as eleições legislativas de 1995 (como expressamente exarado na Resolução do Conselho Nacional do PAICV para a Abertura Política), mas com verdadeiros partidos políticos devidamente legalizados segundo os padrões universalmente aceites; ii. A precedência da realização das eleições legislativas em relação à realização das eleições presidenciais; iii. a estrita isenção dos órgãos de informação e comunicação social públicos; etc., etc.

Segundo testemunho de Aristides Pereira lavrado no livro “Discursos da Mudança”, o pretendido pelo PAICV com a acima referida Resolução do seu Conselho  Nacional seria provocar uma espécie de sobressalto cívico-político que pudesse levar ao alargamento e ao aprofundamento do teor democrático da abertura e da transição políticas, visto que a sociedade civil caboverdiana (de)mostrara-se como assaz amorfa (como, aliás,  ilustrado de forma assaz cáustica no romance O Meu Poeta, de Germano Almeida, limitando-se a oposição política ao regime político de partido único a proferição de críticas inócuas e triviais que alegadamente testemunhariam a sua oportunista acomodação ao regime de partido único, podendo-se considerar como os pontos culminantes das atividades da oposição política   a difusão nocturna de panfletos políticos clandestinos, as críticas, por vezes acerbas, do jornal “Terra Nova”  e a esporádicas actividades da UCID e de outros círculos políticos universitários e grupúsculos  da extrema esquerda política realizadas primacialmente no estrangeiro.  À primeira vista, os factos pareciam dar razão a Aristides Pereira. Com efeito, quase um mês depois da Abertura Política não se vislumbrava nem se divisava nenhuma actividade relevante da chamada oposição política, ninguém ainda tinha reclamado a libertação de presos políticos e tardava sumamente o regresso dos opositores políticos integrados na UCID e em outras instâncias críticas do regime de partido único.

E contudo as coisas pareciam mover-se. Para tanto, o MpD quis, pôde e soube beneficiar da simultaneidade dos tempos de transição e de mudança políticas em, por um lado,  Cabo Verde e alguns países africanos, com  destaque para São Tomé e Príncipe,  o Benim, e em certa medida, a Zâmbia de Keneth Kaunda e o Zaíre de Mobutu Sesse Seko, e, por outro lado, a União Soviética e os  países do Leste europeu para contrapor à gritante parcimónia de actividades políticas oposicionistas durante a vigência de um regime de partido único assaz moderado, para não dizer notoriamente mitigado, salvo em certa medida durante o período da duração do princípio/dogma da unidade Guiné-Cabo Verde, com os acontecimentos repressivos de 1977 na ilha de São Vicente e a perseguição política de cidadãos isolados na sua insurgência cívica contra  o acima referido princípio/dogma e em geral o regime de autoritarismo revolucionário do PAIGC/CV (como no muito conhecido de Tchibia), em contra-corrente aos preceitos sobre a necessidade de respeito dos direitos humanos constantes no Programa Maior do PAIGC, aplicáveis subsidiária e supra-legalmente  por força da LOPE, bem como das suas repercussões vilmente violentas na coacção repressiva exercida contra os protagonistas dos acontecimentos da contra-reforma agrária do 31 de Agosto na ilha de Santo Antão, ainda no rescaldo político islenho do golpe de Estado militar de 14 de Novembro de 1980 na Guiné-Bissau, depois presos, torturados e julgados contra todos os preceitos consagrados na Constituição Política de Cabo Verde, de Setembro de 1980/Fevereiro de 1981, e , finalmente, indultados por decisão do Presidente da República de então, Aristides Pereira. Assim, o MpD e outros políticos oposicionistas regressados entretanto do estrangeiro, com destaque para Onésimo Silveira, o futuro autor do livro A Tortura em Nome do Partido Único - O PAICV e a sua Polícia Polícia Política, recorreram a denúncias várias e sistemáticas  de práticas atentatórias dos direitos humanos universalmente reconhecidos e tendo como odiosos protagonistas a polícia política e os serviços de segurança do Estado, de leis alegadamente repressivas, como a Lei do Boato e a Lei de Autorização de Saída. O contexto político de indefectível vontade de mudança contra os rostos omnipresentes e omniscientes do regime da democracia nacional revolucionária representados pelo triunvirato Aristides Pereira, Pedro Pires e Abílio Duarte, respectivamente candidatos à renovação  dos altos cargos de Presidente da República,  Primeiro-Ministro e Presidente da Assembleia Nacional Popular tornaram assaz credíveis as acusações da oposição política emergente e muito verosímil o amalgamento entre os hediondos crimes cometidos pelos regimes estalinistas e neo-estalinistas do Leste Europeu e pelas suas polícias políticas, com destaque para a KGB e as suas antecessoras soviéticas (a Tcheka e a NDKV), a Securitate romena e a STASI leste-alemã (sendo que, a mero título de curiosidade, comparando-se esta última polícia secreta com a GESTAPO nazi, diz-se que enquanto a pavorosa polícia política nacional-socialista alemã deixara como nauseabundo legado várias montanhas de cadáveres, a polícia política nacional-comunista da Alemanha de Leste tinha legado uma montanha de arquivos, a atestar o controle total que o regime leste-alemão do chamado socialismo real exercia sobre a vida pública e a vida privada dos seus cidadãos, em especial dos opositores e dissidentes políticos). Ademais, altas figuras políticas do regime de partido único socializante do PAICV foram acusadas de terem desviado milhões de dólares de ajuda internacional para benefício próprio, depositando-os em bancos suíços e em outros bancos estrangeiros. Essa última acusação da emergente oposição política foi particularmente eficaz pois que i. foi desferida através de panfletos anónimos na véspera imediata da ida às urnas a 13 de Janeiro de 1991, assim impossibilitando qualquer defesa eficaz por parte dos eventuais lesados; ii. essa mesma acusação teve como destinatários quem (designadamente os detentores do monopólio do poder político durante a vigência do regime do partido único socializante) sempre se apresentara perante o povo caboverdiano como  conduzindo uma vida pública exclusivamente dedicada á defesa das necessidades e dos interesses mais prementes das populações e do país e levando uma vida privada marcada pela austeridade  e, quiçá, até, pela frugalidade, pelo que teriam recebido inúmeros elogios e homenagens da comunidade internacional.

7. Realizadas as primeiras  eleições realmente livres  e democráticas do Cabo Verde pós-colonial, a oposição política emergente foi alavancada às mais altas instâncias  e cumieiras do poder do Estado. Aí colocados pela esmagadora força do voto e do escrutínio populares, os novos detentores do poder político fizeram questão de o exercer sem quaisquer complexos e pruridos democráticos, amiúde tentando neutralizar potenciais focos de contra-poder, como o jornalismo crítico e/ou de investigação, ou intentando de forma contínua e sistemática perenizar e perpetuar na memória colectiva a existência  no Cabo Verde independente e soberano dos tempos pós-coloniais de um regime político totalitário de esquerda, por isso, e salvo as devidas proporções demográficas e territoriais,   verdadeiramente digno e passível de lhe serem imputados os mais execráveis, macabros e hediondos crimes políticos estalinistas, nunca se chegando todavia comparar Aristides Pereira e Pedro Pires a Pol Pot ou sequer ao sanguinário Sekou Touré, apesar da longa estadia em tempos passados e por relativamente longos períodos dos dois altos dirigentes paigcistas/paicvistas na Guiné-Conacri. Não é, pois, por acaso que foi exactamente nos países africanos em que houve a supra-referida simultaneidade de tempos de transição e de mudança políticas em relação aos países do Leste europeu, nomeadamente em Cabo Verde, em São Tomé e Príncipe, no Benim e na Zâmbia, que os antigos partidos únicos foram estrondosamente remetidos para a oposição política, por vezes assaz insignificante. Foi também nesses mesmos países  que, depois de terem ciosamente curtido as agruras da travessia política do deserto, quiçá e em contra-ponto por demais úteis para a sua reconversão autêntica e irreversível  aos ditames da  moderna democracia pluralista, esses mesmos partidos e os seus antigos e novos dirigentes puderam protagonizar  uma nova (a segunda) alternância democrática, considerada por abalizados cientistas políticos como significativa de genuína e irreversível consolidação democrática.

8. De todo o modo, o Comandante Pedro Pires viria a vencer o advogado Carlos Veiga de novo nas eleições presidenciais de 2006, desta vez com números menos controversos e contestáveis, porque somando alguns milhares de votos de diferença em relação àqueles obtidos pelo seu adversário directo e obtidos sobretudo nas diásporas caboverdianas, em especial naquelas radicadas nos Estados Unidos da América. Por sua vez, o  PAICV e o seu líder José Maria Neves viriam a renovar a sua maioria absoluta e o seu mandato governamental por mais duas vezes, designadamente nas eleições legislativas de 2006 e de 2011, desta última feita contra um MpD de novo liderado pelo antigo Primeiro-Ministro Carlos Veiga, que contra todas as expectativas postergou a sua expectável candidatura presidencial a favor de um regresso à liderança do MpD e, assim, a uma nova candidatura ao cargo de Primeiro-Ministro de Cabo Verde, quiçá, pensando numa providencial candidatura presidencial, depois de ter eventualmente vencido as eleições legislativas. O vazio deixado por Carlos Veiga como putativo e expectável candidato presidencial apoiado pelo MpD seria imediatamente ocupado pelo  jurisconsulto Jorge Carlos Fonseca que, apoiado pela Direcção Nacional do MpD em detrimento do antigo Presidente da Assembleia Nacional Amílcar Spencer Lopes e de alguns dos ainda indefectíveis apoiantes de Carlos Veiga e contra todas as expectativas antigas e recentes veiculadas pelas sondagens, vence as eleições presidenciais numa segunda volta em que tem como adversário o engenheiro Manuel Inocêncio, o candidato apoiado pela ala maioritária do PAICV liderada por José Maria Neves. Relembre-se que fora no contexto do regresso de Carlos Veiga (diga-se que o mais cotado dos pré-candidatos presidenciais apurado nas sondagens) à liderança do MpD e da sua desistência de uma esperada e prioritária candidatura presidencial, que o PAICV tinha submetido os três pré-candidatos presidenciais próximos da sua área política, designadamente Manuel Inocêncio, David Hopffer Almada e Aristides Lima, ao escrutínio do seu Conselho Nacional, o qual  por voto maioritário avalizou como candidato presidencial a ser apoiado pelo partido do governo o engenheiro Manuel Inocêncio (curiosamente o menos cotado nas sondagens, nas quais o advogado e antigo deputado do PAICV e, depois, deputado independente David Hopffer Almada e o antigo Presidente da Assembleia Nacional e deputado Aristides Lima apareciam sempre tecnicamente empatados, todavia com ambos os postulantes próximos do PAICV colocados sempre abaixo de Carlos Veiga). Enquanto que David Hopffer Almada se conforma com a decisão do Conselho Nacional do PAICV e participa activamente na campanha presidencial de Manuel Inocêncio, Aristides Lima critica essa mesma deliberação e apresenta uma “candidatura rebelde”, dita da cidadania, no que é apoiado pela ala minoritária do PAICV liderada por Felisberto Vieira e pela UCID. Tendo perdido nas urnas a primeira volta de umas eleições presidenciais   verbalmente muito renhidas, fracturantes e violentas  e a que nem sequer faltaram comparações com os militantes do PAIGC considerados autores materiais do traiçoeiro e assanhado assassinato de Amílcar Cabral, os apoiantes da candidatura presidencial de Aristides Lima congregados na ala paicvista liderada por Felisberto Vieira que, na reunião do Conselho Nacional do PAICV para o escrutínio dos três pré-candidatos presidenciais se posicionara em bloco (com excepção de Júlio Correia) contra David Hopffer Almada e a favor de Manuel Inocêncio, depois de a pré-candidatura de Aristides Lima ter soçobrado logo na primeira volta dessa votação partidária interna, parecem ter optado na segunda volta das eleições presidenciais pelo candidato  apoiado pelo MpD, Jorge Carlos Fonseca, ou, pelo menos, pela abstenção de uma sua significativa fatia na segunda volta das quintas eleições presidenciais caboverdianas. É, aliás, essa fractura interna do PAICV que explica, em grande medida, a vitória presidencial de Jorge Carlos Fonseca que também certamente beneficiou  da revisão constitucional de 2010, a qual estabeleceu um maior lapso de tempo entre as eleições legislativas e as eleições presidenciais por forma a evitar quaisquer contaminações directas destas por aquelas. Deste modo, e pela  primeira vez na recente História política de Cabo Verde, divisava-se uma impropriamente dita co-habitação política entre um governo e uma maioria parlamentar, por um lado, e, por outro lado, um Presidente da República, oriundos de áreas político-partidárias historicamente rivais e adversárias.

Determinante de uma candidatura presidencial de Jorge Carlos Fonseca apoiado pelo MpD foram a dissolução em convenções partidárias convocadas para o efeito e/ou o paulatino mas inexorável desaparecimento da cena política caboverdiana tanto do PCD como do PRD, e o regresso coletivo dos seus seus militantes ao seio materno do MpD, o partido-movimento de que constituíram importantes dissidências e fracturas político-ideológicas.

 

 

 

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