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O “Colonialismo Romântico”
Ponto de Vista

O “Colonialismo Romântico”

"...me parece que esse esforço de alguns de promover uma “cabo-verdianidade isolacionista”, baseada na nossa não pertença continental, deriva e tem alicerces nessa África Negra do imaginário, meticulosamente construída e tida como referência padronizada, embora sem existência real. E já agora: haverá um padrão cultural cabo-verdiano?"

 A elite europeia dedicou-se a fabricar uma elite indígena; selecionaram-se adolescentes, marcaram-lhes na fronte, com ferro em brasa, os princípios da cultura ocidental, introduziram-lhes na boca mordaças sonoras, grandes palavras pastosas que se colavam nos dentes; depois de uma breve passagem pela metrópole, regressavam ao seu país falsificados. Essas mentiras viventes já nada tinham que dizer a seus irmãos; eram um eco.

Jean Paul Sartre in Prefácio do Livro “Os Condenados da Terra”
 

Está a emergir em Cabo Verde uma teoria romântica do colonialismo.

Romântica porque os seus defensores procuram transmitir a ideia de que a relação entre senhores/colonos e escravos/serviçais era baseada em beijos, abraços e carícias recíprocas: a chamada “miscigenação perfeita”.

Porém, os seus paladinos omitem deliberadamente que esse sistema relacional se baseou numa conhecida e comprovada dialética,assente numa relação opressor/oprimido, senhor/escravo, proprietário/trabalhador sem direitos.

Esquecem (será mesmo isso?) que os filhos de pais escravos eram propriedade dos chefes/colonos e que as mulheres escravas eram propriedade dos seus senhores que dispunham delas como quisessem.

Ignoram que os escravos não eram sujeitos de relação, mas simplesmente objeto de uso e de imposição da vontade do dono, e que foi exatamente do uso e da imposição da vontade, que não da relação inter-sujeitos, que resultou alguma mistura e assimilação da cultura dominante.

Um processo de aculturação, certamente, entre duas culturais diferentes, mas que ocorreu num contexto relacional entre desiguais, que embora houvesse trocas comunicacionais, predominou sempre a vontade de quem mandava, até porque este se achava, não só como o dono, mas também culturalmente superior:isto é,comprovadamente,da ciência.

Portanto, a nossa cabo-verdianidade é fruto e o resultado dessa relação, esquecer ou omitir esse aspeto é branqueara história e é desconhecer(?)a psicologia da colonização que se dá e se desenvolve, não num contexto de encontro fraternal entre povos, mas antes num ambiente de conquista, exploração mercantile da pretensa ideia de promover a civilização de “bárbaros ou infiéis”.

Como escreveuo psiquiatra FransFanon,no Livro os “Condenados da Terra”,“No mundo colonial, a afetividade do colonizado mantém-se à flor da pele como uma chaga que se não pode cicatrizar. E o psiquismo retrata-se, oblitera-se e descarrega-se em demonstrações musculares que levaram, homens muito inteligentes a afirmar que o colonizado é um histérico”.

O mesmo horror é narrado por António Carreira na obra “Cabo Verde: aspetos sociais,secase fomes do século XX” publicado em 1984, onde cita um trecho de um artigodo jornal A Opinião, ano I, nº 2, de 14 de novembro de 1902, publicado em São Vicenteonde se descreve este cenário dantesco: “…é impossível descrever o espantoso quadro de miséria que se nos deparou ali. Figuras esquálidas, aos montões, estiradas no chão das infectas espeluncas, abrem escancaradamente a boca ressequida pedindo pão, implorando socorro. Todas aquelas palhotas, acham-se acumuladas de desgraçados, sofrendo cruelmente os horrores da fome. A febre e a disenteria acompanham aqueles horrores, tornando impossível viver naquele ambiente, onde está nitidamente desenhada a figura da morte! Apelando para as almas generosas, esperamos que socorram aqueles infelizes”.

A “miscigenação perfeita” deu-se no quadro desse horror,de desprezo e abandono, de sofrimento e humilhação,e não de forma romântica como alguns nos querem fazer acreditar.

Algumas revoltas então ocorridas sinalizam a relação de tensão entre os que detinham o poder e os que estavam na situação de submissão, e, nesse quadro, deve-se destacar,nomeadamente, a Revolta dos Engenhos de 1822 e a Revolta de Achada Falcão de 1841 (ver tese de Mestrado de Eduardo Adilson Camilo Pereira sob o título “Os Caminhos da Revolta em Cabo Verde e a Cultura da Resistência: As Revoltas dos Engenhos de 1822 e de Achada Falcão de 1841).

Esses eventos apenas ilustram que as relações entre os diferentes sujeitos, na constituição da nossa cabo-verdianidade, não foram com base em abraços, beijos e carícias recíprocas, bem pelo contrário, foram de tensão, de imposição e de conflitualidade.

Acredito, pois, que a nossa singularidade é produto desse cruzamentode base relacional assimétricae, em relação a qual,em nome da verdade histórica, nãodevemosescamotear e nem romantizar as condições e circunstâncias em que esse fenómeno sedeu, justamente para não trairmosa nossa própria géneseetno-psico-antropológica.

Acriação e formatação da singularidade cabo-verdiana se deu em África e não na Europa ou América, como a singularização portuguesa se deu na Europa e não em África. Isto é um facto histórico-geográfico incontornável!

A não ser se se pretende questionar que Cabo Verde não integra o continente africano, e logo, em consequência, não é África.

Porém, até agora, ninguém pôs em causa, pelos menos com um mínimo de sustentação científica, que Cabo Verde não está localizado no continente africano ou alojado na plataforma continental africana.

Há, sem dúvida, um consenso científico, segundo o qual, Cabo Verde pertence e integra a plataforma continental africana, até porque não se conhece nenhum estudo que tenha posto em causa esse consenso.

Ora, não havendo base científica para fundamentar a não pertença de Cabo Verde, geograficamente, à Africa, resta, como muitos advogam,a tese de que culturalmente não somos africanos.

Os paladinos dessa tese partem do princípio que existe um padrão de cultura africana, a partir do qual se poderá aferir da pertença ou não da cultura cabo-verdiana à cultura continentalafricana.

O problema que se coloca aos seus defensores é a dificuldade ou a impossibilidade de definirem um padrão cultural continental, uma vez que o caráter compósito da cultura continental africana impede que tal padronização seja objetivamente definida e demonstrada.

Aliás, não é difícil de demonstrar que em África não existe um padrão único de cultura, nem um único povo ou uma única raça,situação idêntica ao que acontece em outros continentes, como a Europa, América ou Ásia.

Na cabeça de muita gente e no subconsciente de tantos outros, ser africano significa ser negro, como se os habitantes da África fossem todos negros, tivessem todos a mesma língua, a mesma religião, os mesmos hábitos e costumes.

Exemplificando: da mesma forma que um etíope não tem nada a ver, morfológica e culturalmente, com um zambiano, também, aplicando a fórmula, um sueco não tem nada a ver com um italiano. Contudo, em ambos os casos, os primeiros são considerados africanos e os segundos europeus, independentemente das diferenças morfológicas e culturais que existam entre esses cidadãos do mesmo continente.

Há em todos os continentes uma constelação de culturas, de povos e raças que resultaram de cruzamentos diversos na sua composição, cuja única referência, em termos macro-identitários é a dimensão geográfica (os europeus latinos, os europeus nórdicos ou os europeus eslavos, etc.) (os americanos do norte, os americanos do sul ou latinos americanos) ou (os africanos do norte, os africanos da África Central, os africanos da África Ocidental ou os do Corno da África).

Assim, do meu ponto de vista, a cultura cabo-verdiana é uma particularidade da cultura africana, tal como a cultura portuguesa é uma particularidade da cultura europeia. Isso, se admitirmos que cada povo tem as suas particularidades culturais e que os continentes são a expressão compósita de particularidadesdospaíses que os integra. Em consequência, a meu ver, a tese de uma cabo-verdianidade desencarnada de qualquer relação de pertença continental, resultam de pressupostos difíceis de sustentar, para não dizer impossíveis de demonstrar lógica e racionalmente. Mais ainda: creio, mesmo, que a utilização, por alguns, da particularidade cultural cabo-verdiana como argumento para advogar a não pertença à macro-cultura continental não tem base, nem argumentativa e nem científica, para a suportar.

E para aqueles que questionam a nossa relação de pertença à África, coloco este questionamento: a cultura portuguesa não é um mosaico de influências culturais que vai dos fenícios e dos mouros (que não eram europeus), aos romanos e muitos outros?

E alguém questiona a cultura portuguesa de não ser (particularidade cultural) europeia?

As particularidades culturais são realidades intrínsecas às variedades geográficas, sociais e ambientais que enformam e conformam as diversidades continentais.

A homogeneidade cultural africana só existe no imaginário de certas pessoas, que criaram um padrão cultural continental inexistente, mas profundamente alimentado e cultivado ao longo de séculos sob o manto da chamada “AFRICA NEGRA”.

O padrão africano, construído a partir do imaginário de muitos, é o do homem negro, vestido de tanga, que come com as mãos, dorme debaixo de árvores e convive com os animais selvagens, etc.

É isso que permanece no inconsciente coletivo de uma certa elite, cujo arquétipo se constituiu a partir dessa realidade fantástica introjectada.

Porém, essa realidade fantástica resulta de um “construto” erróneo e falho de evidências.

Como em todos os continentes, a África também dispõe de uma variedade de povos, raças, línguas, hábitos, costumes, expressão cultural diversa, o que constitui uma riqueza patrimonialinigualável.

Assim, me parece que esse esforço de alguns de promover uma “cabo-verdianidade isolacionista”, baseada na nossa não pertença continental, deriva e tem alicerces nessa África Negra do imaginário, meticulosamente construída e tida como referência padronizada, embora sem existência real.

E já agora: haverá um padrão cultural cabo-verdiano?

A cultura cabo-verdiana carrega uma grande diversidade e está longe de poder ser consideradahomogénea. Creioque as nossas particularidades podem serfacilmente constatadasquando compararmos as manifestações culturais de uma ilha para a outra, expressas nomeadamente na forma de falar, na culinária,na dança ou na música, nos rituais fúnebres, etc.

É a partir dessas particularidades e diversidades que a cultura cabo-verdiana se compõe e se afirma na sua pluralidade, enquanto um todo nacional.

Pode-se, a partir deste princípio de especificidades culturais, admitir que a diferença cultural que se identificanas diversas regiões de Cabo Verde é a mesma que é possível encontrar quando o objeto de análise é o continente africano no seu todo: cada país africano apresenta as suas particularidades, e todos contribuem para a composição da cultura africana global.

Do ponto de vista político, Cabo Verde tomou uma posição clara sobre o espaço geográfico e cultural que ocupa quando inscreveu na Constituição da República de 1992 que “O Estado de Cabo Verde empenha-se no reforço da identidade, da unidade e da integração africanas…” (nº 7 do artigo 11º).

Creio que dúvidas não existem, que houve e há uma inequívocaopção, mais do que uma opção, um reconhecimento deliberado e consciente, do espaço continental que Cabo Verde pertence.

Ora, não se pode sustentar a nossa não pertença a uma cultura continental com base na nossa singularidade cultural ilhéu, uma vez que a cultura continental, como já se disse, seja ela de que continente for, é composta por um conjunto de singularidades.

Enganam-se, pois, aqueles que pensam que o fenómeno colonização reservou apenas a Cabo Verde a miscigenação e a singularidade cultural, porquanto os outros ficaram imunes e conservaram a sua pureza racial e cultural.

A cabo-verdianidade isolacionista,como afirmação de não pertença a uma comunidade mais ampla, só é compreensível com base num “etnocentrismo castrador” que assentarianuma falsa-perceção, segundo a qual Cabo Verde e os cabo-verdianos são o centro do mundo ou que tudo gravitaria a sua volta.

Sabemos todos que isso não é verdade, e que o mundo é muito mais complexo e bem maior que as nossas pretensões exclusivistas.

Ocorre que esse niilismo filosófico e cultural que nega a nossa pertença cultural à África, nunca teve a coragem de afirmar que somos culturalmente europeus, embora, por trás desse posicionamento, houvesse sempre um substrato político de defesa da adjacência à antiga metrópole. Contudo, de forma expressa, escolheram sempre ficar a meio caminho entre “nem e nem”, (nem africano nem europeu) numa postura de envergonhada ambiguidade.

Ora, neste mundo que vivemos, ainda não foram encontradas outras designações para além daquelas já conhecidas por todos, para nomear os habitantes continentais, nomeadamente, os europeus, os africanos, os americanos, os asiáticos, etc.

E os habitantes de Cabo Verde devem ser designados, em termos continentais, como quê?

Como “nem e nem”?

Será que os teóricos da “miscigenação perfeita” pretendem inventar, porventura, um novo continente para albergar apenas os problemáticos e singulares cabo-verdianos que sofrem da “síndrome da identidade” e de não pertença?

Cabo Verde não é África por opção!

Cabo Verde é África por determinismo histórico-geográfico e cultural.

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