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O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde - Undécima parte
Ponto de Vista

O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde - Undécima parte

Certo é que, tendo adoptado o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde como princípio motriz e eixo estratégico da sua prática política e optado por enveredar pela unidade de acção no seio de um único movimento de libertação bi-nacional a par da união orgânica das forças nacionalistas da Guiné e das forças nacionalistas de Cabo Verde no quadro de uma Frente Unida de Libertação Nacional, Amílcar Cabral parece ter sido o único líder político da Guiné e de Cabo Verde que, fazendo uso de todas as mais-valias advenientes da sua biografia, do seu percurso e da sua história de vida pessoais, aliás, assaz singulares, desde muito cedo soube identificar, no período colonial, as potencialidades politicamente emancipatórias no caminho da busca e da obtenção das independências políticas nacionais e, no período pós-colonial, indutoras do desenvolvimento e potenciadoras do florescimento da dignidade humana, da liberdade, do progresso social, do bem-estar e da prosperidade para todos os seus filhos e definitivamente extirpadoras do medo, da ignorância, do atraso, da pobreza e do subdesenvolvimento crónico, e que poderiam resultar da conjugação das forças, das energias e das sinergias dos povos da Guiné e de Cabo Verde. Tanto mais que Amílcar Cabral se notabilizou exacta, precisa e justamente por ter conduzido com sucesso os povos da Guiné e de Cabo Verde à vitória final sobre o colonial-fascismo português, mesmo se, a um tempo, um Moisés negro em demanda da(s) pátria(s) africana(s) que poderiam vir a perfazer em tempos vindouros a pátria africana bi-nacional, una, progressista e solidária dos povos da Guiné e de Cabo Verde e um Jesus Cristo afro-crioulo dando-se em sacrifício, não tendo logrado pisar de corpo inteiro e na total e digna integridade da sua presença física, a tão almejada Terra Prometida da Guiné de Cabo Verde totalmente libertada da subjugação colonial e da opressão estrangeira.

UNDÉCIMA PARTE

XI

CONSIDERAÇÕES SUPLEMENTARES SOBRE AS MENOS-VALIAS  E AS MAIS-VALIAS DAS ALTERNÂNCIAS POLÍTICAS DEMOCRÁTICAS,  A PARCERIA ESPECIAL ENTRE CABO VERDE E A UNIÃO EUROPEIA, A SEMANA DA REPÚBLICA, AS POLÉMICAS E OS DEBATES POLÍTICO-SIMBÓLICOS E A URGENTE NECESSIDADE DA RESTITUIÇÃO AO ESPAÇO PÚBLICO CABOVERDIANO DA GRANDEZA DE AMÍLCAR CABRAL ENQUANTO MAIOR MORTO IMORTAL DOS POVOS DE CABO VERDE E DA GUINÉ-BISSAU

1. Para efeitos de problematização simbólico-política do novo consulado governativo do PAICV, em conjugação  parcial com o mandato presidencial de Pedro Pires e o mandato  presidencial de Jorge Carlos Fonseca, parece-nos mister reter o seguinte:

a) A recusa liminar por parte do PAICV depois do seu regresso ao poder de qualquer prática de revanchismo político como resposta às alegadas perseguições a que os seus dirigentes, responsáveis, militantes e amigos teriam sido sujeitos durante toda a década de noventa do século XX durante o consulado governamental de um MpD sustentado em consistentes maiorias qualificadas de mandatos parlamentares, por isso muito propenso às derivas autoritárias características das ditaduras das maiorias (ou, pior ainda, das tiranias das maiorias), ainda que democraticamente obtidas nas urnas. Tanto mais que, a par dessas alegadas derivas autoritárias e do desmantelamento do sector público empresarial, incluindo em sectores estratégicos da economia, como a produção de energia eléctrica e os transportes marítimos inter-ilhas, o MpD tinha logrado alcançar importantes conquistas democráticas, com destaque para i. o desmantelamento do aparelho repressivo do antigo regime de partido único socializante, em especial da polícia política (ou dos serviços de segurança do Estado integrados nas antigas FSOP-Forças de Segurança e Ordem Pública), nisso arrastando todas as formas da doravante rejeitada e causticada participação popular e consubstanciada nas milícias populares, nos tribunais de zona (a partir de então invectivados e desqualificados como tribunais populares), as comissões de moradores  e as comissões da reforma agrária, porque patrocinadas como tentaculares correias de transmissão e formas repressivas de controle social pelo antigo regime político de  partido único socializante, oficialmente denominado de regime de democracia nacional revolucionária, mas primacialmente conhecido como um regime político de democracia participativa, o qual teria sido concebido para substituir  a chamada democracia representativa liberal, amiúde desqualificada pelos democratas revolucionários do antigo PAIGC e do PAICV, como meramente formal, de feição burguesa e visando mascarar e perpetuar a opressiva dominação política, cultural, social e económica das classes possidentes; ii. a transformação das FARP em Forças Armadas efectivamente republicanas e submetidas ao poder civil democraticamente eleito e legitimado; e, finalmente, iii. a aprovação de uma nova Constituição da República que consolidou sobremaneira o Estado Democrático de Direito inaugurado com a revisão constitucional de Setembro de 1990, tendo colocado a pessoa humana no centro nevrálgico da Constituição, atribuindo aos cidadãos amplos direitos, liberdades e garantias bem como extensos direitos económicos, sociais e culturais, os quais consagram deste modo o  Estado caboverdiano como um Estado de Direito social além de Estado de Direito Democrático. Importantíssimo parece ter sido ainda a consagração, na revisão constitucional de 1999,  da língua materna caboverdiana como língua oficial em construção da República de Cabo Verde a par da consagração da língua portuguesa  como língua plenamente oficial, cabendo ao Estado promover as condições para a plena oficialização da língua materna caboverdiana, isto é, para  a oficialização do caboverdiano em paridade com o português.

b) A aprovação de uma Lei de Reconciliação Nacional que alegadamente visou corrigir os excessos cometidos quer durante a vigência do regime de partido único, como, por exemplo, o confisco de propriedade privada sem quaisquer indemnizações, quer durante a década de noventa da primeira governação do MpD, como a transferência compulsiva de funcionários da administração pública e/ou do sector empresarial do Estado como represália política ou arma de arremesso político.

c) As tentativas de superação das fracturas e dos diferendos conexos com a aprovação da Constituição de 1992, relembre-se que efectuada mediante a revogação total e global da Constituição de Setembro de 1980/de Fevereiro de 1981, nas suas versões resultantes das revisões constitucionais de 1988 e de 1990. É neste contexto que é criada uma Comissão Paritária entre o PAICV e o MpD a qual consensualiza as propostas dos dois maiores partidos políticos caboverdianos  para a revisão constitucional de 2010 que, assim, obtêm um generalizado consenso da sociedade caboverdiana à volta da Constituição Política de 1992 e dos novos símbolos nacionais por ela introduzida e consagrada. Em aberto parece restar somente a questão da co-oficialização plena da língua caboverdiana (mesmo que somente a um nível meramente político-simbólico)  a par da língua portuguesa. Com  efeito, os novos símbolos nacionais, com  destaque para a nova Bandeira Nacional, foram sendo cada vez mais incorporados por faixas cada vez mais extensas e alargadas da sociedade caboverdiana nas ilhas e nas diásporas, incluindo aquelas politicamente conotadas com o PAICV, em razão de alguns  importantes feitos, sobretudo nos domínios desportivo e musical, e que encheram de orgulho os corações e as almas dos caboverdianos das ilhas e diásporas ao divisarem o novo hino nacional  e a nova bandeira nacional do seu país alegre e orgulhosamente respectivamente entoado e desfraldada em vários cantos do mundo, com destaque para o mundo africano. Por outro lado, vem-se alargando o entendimento da identidade cultural caboverdiana como de génese primacialmente afro-latina e feições retintamente crioulas, ainda que inseridas num continente,  o nosso continente africano, e num mundo, o mundo afro-negro e crioulo, marcados pela diversidade cultural e abrangente da África, do Atlântico e do índico negros e crioulos, das Caraíbas e das Américas, da Europa, da Ásia e da Oceânia. Abertas ao mundo, desde a sua génese meso-atlântica, a identidade crioula caboverdiana é compreendida, tal como todas as culturas crioulas, como uma importante mais-valia estratégica para a dinâmica inserção de Cabo Verde no mundo. Daí a relevância e a pertinência da  recente proposta do Presidente da República de Cabo Verde de se organizar em Cabo Verde uma Cimeira de regiões, comunidades e países crioulos de todo o mundo.

d) A aprovação do Acordo de Parceria Especial com a União Europeia. Reflexo do desenvolvimento sui generis das relações entre Cabo Verde e a União Europeia, o Acordo de Parceria Especial constitui um importante activo da política externa caboverdiana  e vem na sequência e constitui  o desenvolvimento para mais altos patamares do Acordo de Paridade entre o euro e o escudo caboverdiano firmado durante a governação do MpD nos anos noventa do século passado.

Importante no Acordo de Parceria Especial é que assenta em vários pilares, um dos quais é a integração regional  nos espaços económicos e políticos a que Cabo Verde pertence historicamente, com destaque para a CEDEAO (Comunidade para o Desenvolvimento dos Estados da África Ocidental) e, acrescentamos nós agora, o recém-aprovado Mercado Único Africano. Deste modo, a parceria especial de Cabo Verde com a União Europeia parece também responder a uma questão existencial  do Estado caboverdiano qual seja “o seu destino africano livremente escolhido”, proclamado urbi et orbe a 5 de Julho de 1975, no Estádio da Várzea, da cidade da Praia. Deste modo, foram rechaçadas as pretensões abertamente neo-coloniais daqueles colonial-saudosistas que quiseram ver na Parceria Especial União Europeia-Cabo Verde uma nova forma de reciclagem da velha e obsoleta adjacência político-cultural de Cabo Verde  a Portugal, quer exigindo da República de Cabo Verde  a renúncia à sua independência política e às suas soberanias nacional e internacional e a sua correlativa transmutação em região ultra-periférica da Europa, tal como os DOM/TOM (Domínios Ultramarinos/Territórios Ultramarinos) franceses, as Antilhas holandesas, as Regiões autónomas portuguesas ou ainda a Comunidade Autónoma espanhola das Canárias, e/ou maxime a sua adesão à própria União Europeia, sendo ambas as pretensões consideradas como absolutamente impensáveis, por uma, a primeira,  ir contra a corrente da História firmada e escrita e a outra, a segunda, por Cabo Verde não ser um país europeu. Promotor de uma políticas externa inteligente, o Estado caboverdiano tem-se inserido como país independente e soberano tanto na Região da Macaronésia, que lhe é co-natural, como também na região oeste-africana que também lhe é co-natural, desenvolvendo ademais parcerias estratégicas com países tão importantes como os Estados Unidos da América, a China Popular, os países do Benelux, os países da CPLP, a África do Sul, a Rússia ou o Japão, denotando uma notável coerência  pragmática na condução da sua política externa, pese embora um quiçá excessivo alinhamento dos recentes governos do MpD com a política externa dos EUA (quiçá fundada numa interpretação exacerbadamente judaico-cristã e ocidentalizante da cultura caboverdiana e ocultadora da co-matriz afro-negra da identidade crioula caboverdiana, isto é, uma interpretação tão eurocêntrica que nem sequer poderia ser qualificada como sendo luso-crioulista pois que teria superado e ultrapassado a tautológica compreensão de Cabo Verde como “não sendo nem Europa, nem África, mas somente Cabo Verde”, tão do gosto do ilustre ensaísta e estudioso Baltasar Lopes da Silva), e visível, por exemplo, na celebração do, na nossa modesta opinião, demasiado subserviente acordo SOFA  ou no recente “desreconhecimento” da RASD (República Árabe Saharaui Democrática) e o alinhamento com as teses anexionistas do Reino do Marrocos, aliás, contrárias a todas as resoluções pertinentes da ONU sobre a matéria, designadamente a necessidade da expressa consulta do povo saharui sobre o seu destino mediante a realização de um referendo de auto-determinação política no Sahara Ocidental.

2. De grande significado parece-nos ter sido a introdução na agenda celebrativa nacional da Semana da República pelo Presidente da República de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca. Pretendendo celebrar duas datas marcantes da recente História política do país, quais sejam i. a da realização das primeiras eleições gerais pluralistas no Cabo Verde pós-colonial a 13 de Janeiro de 1991, por isso instituído como o Dia da Liberdade no segundo regresso ao poder da maioria parlamentar do MpD, e ii. o Dia dos Heróis Nacionais, instituído desde os tempos do regime político de partido único socializante para assinalar o dia do assassinato de Amílcar Cabral a 20 de Janeiro de 1973, a conjugação dessas mesmas datas numa Semana da República é um inequívoco sinal de uma maior vontade de partilha de datas que também poderiam ter sido representadas como facetas antagónicas  da História recente de Cabo Verde, designadamente  i. por um lado, a vitória esmagadora do MpD a 13 de Janeiro de 1991 nas primeiras eleições legislativas pluripartidárias do  Cabo Verde pós-colonial; ii. por outro lado,   a fundação do PAICV a 20 de Janeiro de 1981 na sequência do golpe de Estado militar de 14 de Novembro de 1980 e que marcou a extinção de facto do PAIGC bi-nacional fundado por Amílcar Cabral. Cabe por isso e nesta óptica saudar, reverenciar e referenciar de forma efusiva a Semana da República no seu duplo  intuito de assinalar com a grandeza que lhes cabe e é inerente duas marcantes e incontornáveis datas da nossa História contemporânea.

Parece detectar-se actualmente, e com cada vez maior nitidez e mais pregnante acuidade, a necessidade de incorporação de discursos e narrativas plurais na memória histórica e na actualidade do presente vivenciado pelos cidadãos caboverdianos, por forma a se poder alimentar e vitalizar a diversidade que deve caracterizar a sociedade caboverdiana das ilhas e diásporas  no seu todo, nela incluindo o sistema político democrático pluralista de que actualmente usufruímos, bem como a percepção e a apreensão do devir colectivo do povo caboverdiano aliado ao devir individual dos seus vários e diferentes protagonistas, com destaque para as personalidades  que fizeram os tempos caboverdianos eclodir nos tempos e no Tempo da  História, sem todavia querer endeusá-los ou adorá-los,  mas também sem pretender escamoteá-los  ou ocultá-los dos sempre controversos cenários da História. 

É  neste novo contexto que devem ser enquadrados os muitos debates e polémicas que têm rodeado alguns feriados e dias festivos nacionais. 

Felizmente que essa vontade celebratória  se tem alargado não só a personalidades icónicas da cultura e da história caboverdianas,  como, por exemplo, Luís Loff de Vasconcelos, Eugénio Tavares, Januário Leite, José Lopes da Silva, Pedro Cardoso, B. Lèza (Francisco Xavier da Cruz), Baltasar Lopes da Silva, Jaime de Figueiredo, Ano Nobo, Carlos Alberto Martins e tantos outros literatos, músicos e tradicionalistas caboverdianos, mas também a efemérides que, pelo seu impacto positivo ou negativo na vida colectiva do povo das ilhas e diásporas, marcaram a nossa idiossincrasia de povo crioulo afro-atlântico. Tais seriam os casos da Revolta de Ribeirão Manuel, da Bandeira da Fome do Capitão Ambrósio, do Desastre da Assistência, mas também dos descobridores das ilhas, dos seus povoadores negros, brancos e mestiços anónimos,  dos inúmeros curadores dos corpos e das almas dos filhos das ilhas e diásporas, dos seus muitos beneméritos em tempos de precariedade e de carestia e de incontáveis maleitas e doenças epidémicas, endémicas, pandémicas.

No que se refere à veemente exigência por parte de franjas mais radicalizadas dos pan-africanistas caboverdianos das ilhas e diásporas no sentido da retirada do espaço público caboverdiano, e não só, de bustos, estátuas e outras icónicas representações daqueles que são considerados “colonialistas, escravocratas, negreiros e/ou mercadores de negros escravizados”, somos da opinião que, mesmo considerando inadmissível a celebração daqueles que única, exclusiva e somente se destacaram  por terem ferido e ofendido de forma grave e sistemática a dignidade humana dos caboverdianos ou daqueles povos que estiveram na origem matricial  do povo caboverdiano, interessaria acrescentar mais heróis aos heróis já consagrados na dolorosa lavra da nossa odisseia coletiva e acrescentar muito mais ícones aos ícones já forjados pelos  tempos de outrora da opressão  colonial-escravocrata, da exploração semi-feudal e colonial-capitalista, da dominação e opressão estrangeiras, do autóctone autoritarismo revolucionário do regime político de partido único, das indígenas derivas autoritárias, autocráticas,  liberticidas e neo-coloniais do nosso sistema democrático pluralista!

3. É no novo contexto político dos anos noventa do século XX, que são reatadas (ou, melhor, são encetadas, pois que doravante a nível de partidos políticos independentes um do outro e não mais como meros ramos nacionais de um  mesmo partido bi-nacional)  as relações entre o PAICV e o PAIGC bissau-guineense, ambos resultantes e emergentes, no âmbito restrito dos respectivos territórios nacionais e das respectivas diásporas, do antigo e  já extinto partido-movimento de libertação bi-nacional fundado por Amílcar Cabral e sobrevivente na sua condição bi-nacional por quase oito anos sobre o  infausto desaparecimento físico do seu líder carismático  e fundador histórico.  As relações partidárias entre o PAICV e o PAIGC bissau-guineense são, aliás,   caracterizadas como calorosas, de elevada  solidariedade e inquebrantável fraternidade, como seria, aliás, sempre aconselhável nas  relações de cooperação e amizade que devem existir entre  partidos-irmãos que, ademais, partilham o património de uma mesma luta de libertação bi-nacional e a memória  de um mesmo líder imortal.  Líder esse doravante considerado Herói do Povo na Guiné e em Cabo Verde e Fundador das Nacionalidades bissau-guineense e caboverdiana e, ademais, incensado como o Maior Morto Imortal dos Povos da Guiné e de Cabo Verde, nas expressivas palavras do  poeta  pan-africanista Timóteo Tio Tiofe (como sabido, um dos três heterónimos literários, a par  de João Vário e G. T. Didial, do notável neuro-cientista João Manuel Varela). Poeta, intelectual e cientista de grande mérito,  João Manuel Varela foi também um fervoroso defensor do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde, testemunhado por exemplo, no Discurso V do Primeiro Livro de Notcha e nos seus ensaios/artigos publicados na revista África, dirigida por Manuel Ferreira, sobre a premência e a necessidade da construção de uma Universidade da Guiné e de Cabo Verde. Os títulos honoríficos acima referenciados e referentes a Amílcar Cabral são certamente justos porque atribuídos pelas vozes de dois povos  irmãos e de um poeta épico-telúrico de grandessíssima envergadura a alguém que, sendo detentor de uma mente reconhecida e incomummente brilhante, elaborou uma obra na sua área profissional (a agronomia) de reconhecido mérito e de grande utilidade prática e no plano da emancipação dos povos africanos desenvolveu uma obra teórica de matriz marxista das mais conseguidas e inovadoras entre aquelas elaboradas por líderes africanos e pensadores  mundiais seus contemporâneos e que, fundada no seu indelével e visionário humanismo, se alicerçou no conhecimento e na  reflexão  sobre as realidades  concretas dos povos e dos países africanos e na assimilação crítica dos conhecimentos produzidos por outros seres humanos em outras latitudes do mundo, sempre visando uma sociedade de liberdade, paz, progresso social e felicidade e, no limite, sempre exploração do homem pelo homem, para os povos das suas duas e igualmente amadas mátrias - a Guiné-Bissau e as ilhas de Cabo Verde. Mátrias amadas que muito e ardentemente almejou ver unificadas no seio de uma pátria africana una, progressista e solidária no trilho da unidade progressiva de todo o continente africano e representada ao mais alto nível político parlamentar por uma Assembleia Suprema do Povo da Guiné e de Cabo Verde, depois de conquistadas as respectivas independências políticas e  soberanias nacionais e internacionais, em tempo oportuno proclamadas pelas Assembleias Nacionais Populares delas representativas, conforme consignado no seu Testamento Político. Mas que também encarou a possibilidade de as mesmas Repúblicas irmãs seguirem caminhos próprios e independentes e definitivamente soberanistas, caso fosse essa a vontade dos respectivos povos livremente expressa em consulta popular ou por deliberação política soberana dos Parlamentos/das Assembleias Nacionais Populares deles representativos, conforme consignado no Memorando Dirigido ao Governo português, de 1960, com vista à liquidação  pacífica e por via democrática do colonialismo português na Guiné e em Cabo Verde, no Programa Maior do PAIGC e na primeira Constituição Política de Cabo Verde (a de Setembro de 1980, na redacção original assimiladora do princípio cabralista da unidade Guiné-Cabo Verde).

Certo é que, tendo adoptado o princípio  da unidade Guiné-Cabo Verde como princípio motriz e eixo estratégico da sua prática política e optado por enveredar pela unidade de acção no seio de um único movimento de libertação bi-nacionais a par da união orgânica das forças nacionalistas da Guiné e das forças nacionalistas de Cabo Verde no quadro de uma Frente Unida de Libertação Nacional, Amílcar Cabral parece ter sido o único líder político da Guiné e de Cabo Verde que, fazendo uso de todas as mais-valias advenientes da sua biografia, do seu percurso e da sua história de vida pessoais, aliás, assaz  singulares, desde muito cedo soube identificar, no período colonial, as potencialidades politicamente emancipatórias no caminho da busca e da obtenção das independências políticas nacionais e, no período pós-colonial, indutoras do desenvolvimento e potenciadoras do florescimento da dignidade humana, da  liberdade,  do progresso social, do bem-estar e da prosperidade para todos os seus filhos e definitivamente extirpadoras do medo, da ignorância, do atraso, da pobreza e do subdesenvolvimento crónico, e que poderiam resultar da conjugação das forças, das energias e das sinergias dos povos da Guiné e de Cabo Verde. Tanto mais que Amílcar Cabral se notabilizou exacta, precisa e justamente por ter conduzido com sucesso os povos da Guiné e de Cabo Verde à vitória final sobre o colonial-fascismo português, mesmo se, a um tempo, um Moisés negro em demanda da(s) pátria(s) africana(s) que poderiam vir a perfazer em tempos vindouros a pátria africana bi-nacional, una, progressista e solidária dos povos da Guiné e de Cabo Verde e um Jesus Cristo afro-crioulo dando-se em sacrifício, não tendo logrado pisar de corpo inteiro e na total e digna integridade da sua presença física, a tão almejada Terra Prometida da Guiné de Cabo Verde totalmente libertada da subjugação colonial e da opressão estrangeira.

4. Afinal, desde Eugénio Tavares e Pedro Cardoso,  passando por Amílcar Cabral e Aristides Pereira, pelos irmãos  Manuel Duarte e Abílio Duarte e pelos poetas Kaoberdiano Dambará, Timóteo Tio Tiofe, Corsino Fortes, Emanuel Braga Tavares e Kaká Barboza, chegando finalmente à nossa geração, o pan-africanismo e o patriotismo africano de feição nacionalista crioula caboverdiana sempre se alimentaram entre nós, ilhéus caboverdianos, do imprescindível pão do quotidiano patriotismo de “se sentir feliz por se ter nascido caboverdino”, como se expressa Manuel de Novas pela voz de Ildo Lobo, também eles imortalizados na morte iracunda e (in)frutífera.

Ou como exclama o  falecido cantor e compositor musical Orlando Pantera, igualmente  imortalizado na morte (in)fecunda: “Pátria dja nu ten dja!”.

5. Por isso e por tudo o que foi dito e escrito ao longo do presente ensaio, parece-nos ser chegada a hora de restituir o nome de Amílcar Cabral à Praça Central do Platô da Praia, de colocar uma sua grandiosa estátua no Miradouro da Presidência da República (ao mesmo tempo que  as  estátuas de António da Noli - ainda por esculpir - e  de Diogo Gomes deveriam, tal como propõe Manuel Veiga, ser remetidas ao lugar do seu genuíno merecimento que é a Cidade Velha, a antiga cidade da Ribeira Grande que  António da Noli viu edificar-se como “a cidade do mais antigo nome” (na feliz expressão do poeta José Luiz Tavares) com  o sangue e o suor dos nossos antepassados negros para o esplendor e a grandeza dele e dos senhores brancos, seus correligionários, e para a germinação da identidade da nossa nação crioula soberana como almejado e inelutável futuro  do povo caboverdiano, “um povo forjado na colonial-escravocracia”, como o próprio Amílcar Cabral pôde constatar, e como “um tiro que saiu pela culatra do colonialismo  português”, como tão bem asseverou Gabriel Mariano!

Por isso e por tudo o que foi explanado ao longo do presente ensaio, parece-nos ser também chegada a hora de restituir a data do aniversário natalício de Amílcar Cabral ao calendário das efemérides oficiais e festivas da República de Cabo Verde, instituindo-o como o Dia da Amizade entre os Povos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau ou, de forma  mais abrangente,  como o Dia da Amizade, da Fraternidade e da Solidariedade  entre os Povos e Países de Língua Portuguesa, ou ainda e de forma, de outro modo,  mais lata, como o Dia da Amizade, da Fraternidade e da Solidariedade entre todos os Povos Africanos, pois que nos parece ser  mais do que liquido e cristalino que Amílcar Cabral lutou em prol de todos eles!

Seriam certamente excelentes, justas e merecidas prendas pelo seu centésimo aniversário natalício, ele que mais não quis ser do que um simples Africano que cumpriu o seu dever em relação a África e à Humanidade,  pagou a sua dívida para com os seus dois povos e viveu a sua época, para além do presente de aniversário que a UNESCO certamente não deixará de lhe conceder por ocasião das celebrações dessa mais que memorável data, ele que foi um assumido soldado  das causas da ONU e da Humanidade!

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