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O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde - Oitava Parte
Ponto de Vista

O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde - Oitava Parte

No caso da ocorrência do hipotético, ficcionado e imaginário cenário de sobrevivência do PAIGC ao golpe de Estado militar de 14 de Novembro de 1980 e, assim, da continuidade desse partido-movimento de libertação no poder como organização política bi- e supra-nacional, seria de se antever que o PAIGC bi-nacional seria necessariamente vituperado, causticado e varrido, quiçá irremediável e irremissivelmente, do solo das ilhas, em razão dos espantalhos chauvinistas anti-africanistas e soberanistas de teor racista eurocêntrico e luso-crioulista que necessariamente seriam desfraldados pelos antiquíssimos inimigos e pelos novíssimos adversários islenhos de Amílcar Cabral e do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde por ele propugnado e defendido (e que, como é sabido, foi de indesmentível e genial teor político-estratégico para a obtenção das independências da Guiné-Bissau e de Cabo Verde), bem como do seu sonho de união orgânica pós-colonial entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde (como comprovado na prática pelos factos históricos, de difícil implementação e de duvidoso sucesso no período pós-colonial da História comum desses dois países irmãos).

OITAVA PARTE 

VIII

EXERCÍCIO QUASE ONÍRICO E ALUCINADO SOBRE HIPOTÉTICOS TODAVIA HISTORICAMENTE INEXEQUÍVEIS CENÁRIOS QUE PUDESSEM TER PROLONGADO A VIDA PÓS-COLONIAL DO PRINCÍPIO DA UNIDADE GUINÉ-CABO VERDE E DO PROJECTO DA UNIDADE ORGÂNICA ENTRE AS REPÚBLICAS DA GUINÉ-BISSAU E DE CABO VERDE E, ASSIM, DO SONHO CABRALIANO DE UMA IMAGINADA E FUTURA PÁTRIA AFRICANA BI-NACIONAL UNIDA,  PROGRESSISTA E SOLIDÁRIA EVENTUALMENTE DENOMINADA REPÚBLICA UNIDA DA GUINÉ E DE CABO VERDE

1.   As posturas e atitudes político-ideológicas e culturalistas vindas à plena luz do dia na sequência das mudanças democrático-liberais ocorridas a partir do ano de 1991 em Cabo Verde, e, depois, contaminaram a Guiné-Bissau nesse mesmo ano e nos anos imediatamente subsequentes (pelo menos no plano das suas virtualidades democráticas e na sua aparência pluripartidária) foram caracterizadas, como já se referiu,  como sendo ostensiva e desinibidamente contrárias ao pan-africanismo  político defendido desde sempre pelo PAIGC bi-nacional e, depois, pelo seu sucessor nas ilhas e diásporas caboverdianas, o PAICV uni-nacional caboverdiano. As suas feições abertamente anti-africanistas induzem-nos a seriamente cogitar que o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e o projecto pós-colonial de união orgânica entre a Guiné-Bissau e as ilhas de Cabo Verde muito dificilmente (para não ousar dizer que nunca e em circunstância alguma) teria hipótese de sobreviver a essa onda avassaladora  de radicais mudanças na paisagem política das ilhas e diásporas caboverdianas ocorridas durante toda a década de noventa do século XX, a não ser que  se encarasse, como, aliás,  ligeiramente aflorado mais adiante, o fictício e grandioso cenário de Amílcar Cabral não ter sido assassinado na insana noite de 20 de Janeiro em Conacri ou, como inicialmente programado pelos conspiradores e executores materiais do plano de assassinato político-militar, uma semana depois.

Relembre-se  que essas mesmas mudanças políticas e as suas inerentes, inevitáveis e indisfarçáveis repercussões nos planos simbólico-político da sociedade e do imaginário histórico-cultural do nosso Sahel insular foram, como é por demais sabido, induzidas pelas estrondosas vitórias do MpD (Movimento para a Democracia) e do candidato presidencial apoiado pelo mesmo partido-movimento político nas eleições legislativas, presidenciais  e autárquicas de 1991. As vitórias esmagadoras do MpD nas eleições de 1991 seriam repetidas  nas eleições autárquicas de 1995 e nas eleições legislativas e presidenciais de 1996, sendo que i. nessas últimas eleições presidenciais António Mascarenhas Monteiro (com o mandato presidencial automaticamente suspenso por imposição da Constituição da República) seria candidato presidencial solitário para  um segundo mandato, tendo como único e temido adversário a abstenção eleitoral que todavia seria vencida  com mais de cinquenta por cento de participação eleitoral e uma esmagadora maioria de votos favoráveis ao boletim de voto “sim” (sendo o outro boletim de voto o do “não” numas eleições estranhamente plebiscitárias, tal como ocorrera nas eleições legislativas de 30 de Junho de 1975 para uma Assembleia Legislativa soberana e constituinte, mas somente em certo sentido pois que nas eleições presidenciais de 1996 vigorara a plena liberdade de apresentação de candidaturas contrariamente ao sucedido nas  eleições legislativas de 30 de Junho de 1975 em que os grupos de cidadãos legitimados para a  apresentação de listas de candidatos a deputados constituintes para a proclamação da independência política do país nascituro a 5 de Julho (nosso maior ourgulho)  desse mesmo ano tinham sido completamente monopolizados pelo PAIGC; ii. Nas segundas eleições legislativas do Cabo Verde pós-colonial, o MpD se confrontou não só com o PAICV, mas também com o PCD (Partido da Convergência Democrática), resultante da primeira fractura político-ideológica no seio do MpD liderada por Eurico Correia Monteiro e Jorge Carlos Fonseca e postada contra a corrente/sensibilidade político-ideológica maioritária desse mesmo partido/movimento político liderada por Carlos Wahnon de Carvalho Veiga e pelo irmão José Tomás Wahnon de Carvalho Veiga e próxima do triunvirato situado no auto-denominado “centro-direita patriótico” constituído por  Gualberto do Rosário, Eugénio Inocêncio e Humberto Cardoso, todos vindos, à semelhança, aliás, de José Tomás Veiga,  da extrema esquerda trotskista e depois paulatinamente reconvertidos aos ditames doutrinários da democracia política liberal e do neo-liberalismo económico.  Apesar de a criação do PCD representar um forte indício da possibilidade de superação do pecado original da transição política e da democracia caboverdianas que consistiu na factual bipolarização política consubstanciada na assimétrica e, por isso, desequilibrada bipartidarização protagonizada pelo MpD e pelo PAICV nas eleições legislativas, autárquicas  e presidenciais de 1991, o MpD consegue amalgamar  o PAICV e o PCD num fictício PAICD, construído a partir das siglas dos dois partidos da oposição política, fazendo com que, deste modo, o então partido hegemónico caboverdiano tivesse conseguido manter intacta a acesa (senão incendiária) ambiência  de crispação político-partidária,  daí resultando uma estranhíssima nova maioria qualificada do MpD com o PAICV de novo remetido a uma insignificante minoria parlamentar, o PCD a conseguir  eleger somente o seu líder Eurico Correia Monteiro para o hemiciclo parlamentar (tendo o advogado Arnaldo Silva como suplente) e a UCID, que entretanto conseguira legalizar-se, transformada numa verdadeira  nulidade partidária do folclore político caboverdiano, na crítica e acintosa, mas pertinente expressão do autor do marcante livro Cabo Verde - Os Bastidores da Independência, o jornalista  José Vicente Lopes. Todavia, notara-se entretanto uma pequena recuperação do PAICV nas eleições autárquicas do ano anterior ao conseguir obter a maioria dos mandatos no município do Sal, que veio juntar-se aos seus tradicionais e quase inexpugnáveis bastiões das ilhas do Fogo e da Boavista, mas sem minimamente pôr em causa o estatuto largamente maioritário do MpD, que domina completamente as ilhas de Santo Antão, de São Nicolau, do Maio (cujo candidato independente vencedor das eleições de 1991 passou a ser apoiado pelo amplo partido-movimento político governante na sua segunda participação no pleito eleitoral autárquico) e Brava, confinando a oposição política municipal às ilhas de São Vicente (dominada pelo MPRSV - Movimento para o Renascimento de São Vicente, de Onésimo Silveira), do Sal, da Boavista e do Fogo, controladas pelo PAICV. Para além de determinar a entrada de uma terceira força política partidária na paisagem política caboverdiana  e no parlamento caboverdiano, o surgimento do PCD conduz a uma relativa distensão da ambiência política, mesmo se a mesma ainda continue muito propensa à musculada confrontação verbal e à exacerbada demonização do adversário nos debates políticos e, em especial, naqueles mantidos nas polémicas à volta da mudança dos símbolos nacionais. É assim que a aprovação do novo Hino Nacional, cuja letra, elaborada por Amílcar Spencer Lopes, o Presidente da Assembleia Nacional (nova denominação do parlamento caboverdiano determinada pela nova Constituição Política de 1992), e muito causticada na imprensa escrita independente e/ou conotada com a oposição política, especialmente pelo cronista do Jornal A Semana, Vadinho Velhinho, foi adiada para a sessão legislativa seguinte àquela que procedeu à aprovação das novas Armas da República e da nova Bandeira Nacional (da autoria do arquitecto Pedro Gregório Lopes e presumivelmente inspirada de forma directa e imediata na Bandeira de Aruba, uma das três ilhas ABC  das chamadas Antilhas Holandesas) e contra a qual se tinham posicionado  alguns cidadãos caboverdianos em petição a exigir a realização de um referendo popular sobre a candente e muito  sensível questão. O novo Hino Nacional eintitulado “Canta, Irmão, Canta” e com letra do mesmo Presidente da Assembleia Nacional (que retirou a sua proposta anterior) e música de Adalberto Silva (o conhecido compositor e letrista maiense Betú) viria a ser aprovado em detrimento de outras propostas de Hino Nacional com letras de, entre outros eventuais autores, Mário Fonseca e Arménio Vieira (tendo a proposta de letra deste último autor sido musicada pelo conhecido compositor e letrista praiense Zezé di Nha Reinalda, membro do conjunto musical Finason e ex-integrante dos Bulimundo).

2. Paradoxalmente, é também nessa mesma década de noventa do século XX que, depois de algumas tentativas frustradas de ocultação, ostracização, anatemização e vituperação  da figura mítica de Amílcar Cabral e com Úlpio Napoleão Fernandes como Ministro da Defesa e da Cultura e o intelectual nova-largadista e poeta pan-africanista Mário Fonseca, autor do icónico poema “Eis-me Aqui, África”, como Presidente do Instituto Nacional da Cultura (INAC),  é erigido o Memorial Amílcar Cabral e são colocados os primeiros bustos e estátuas da mesma reverenciada personalidade heróica da História contemporânea e da luta conjunta dos povos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau para a conquista das suas independências políticas  em praças e lugares públicos, designadamente na cidade da Praia, na cidade da Assomada e no Aeroporto Internacional Amílcar Cabral na ilha do Sal, ao mesmo tempo que a sua efígie e as de outros líderes africanos (como, por exemplo, o líder moçambicano Eduardo Mondlane e o teórico e político pan-africanista ganês Kwame Nkrumah) são expurgadas de notas e moedas caboverdianas, tendo o nome do mítico Bairro Kwame Nkrumah sido substituído pelo seu antigo nome colonial Bairro Craveiro Lopes (do nome do antigo Presidente da República Portuguesa que o mandou construir - tal como, aliás, o belíssimo e majestoso edifício do Liceu da Praia que todavia passou a ostentar o nome de Adriano Moreira, o Ministro do Ultramar de Salazar aquando da sua visita oficial a Cabo Verde em 1962-, a solicitação de cidadãos  praienses capitaneados pelo Sr. João Modesto, mas inicialmente projectado para acudir às necessidades de habitação social dos sobreviventes do tristemente célebre Desastre da Assistência mas finalmente destinado aos funcionários da Imprensa Nacional de Cabo Verde e a outros pequenos e médios funcionários públicos caboverdianos residentes na cidade da Praia e nos seus arrabaldes. 

Os acima referidos fenómenos de radical mudança na onomástica e na  narrativa político-simbólica do arquipélago caboverdiano inserem-se num geral revanchismo histórico na percepção da História do país, nele incluindo, como já referido, a mudança dos símbolos nacionais (Bandeira, Hino e Armas) da República de Cabo Verde, a reposição das antigas denominações coloniais de ruas, avenidas, praças e largos (como,  por exemplo, a retoma no  platô da cidade da Praia  da anterior designação colonial-fascista Rua dos Heróis de Mucaba, do antigo nome colonial de Praça  Alexandre Albuquerque  para denominar a Praça Central da cidade da Praia em lugar de Praça 12 de Setembro, data do aniversário natalício de Amílcar Cabral) e seguiu-se à reposição, ainda durante a vigência do regime político de partido único socializante, mais precisamente na sua fase final, de bustos, estátuas, imagens  e designações de artérias urbanas e de instituições públicas a partir de nomes de antigos letrados caboverdianos, com destaque para o poeta neo-clássico e hesperitano José Lopes da Silva e o nativista Abílio Monteiro de Macedo,  (des)qualificados, na agitação independentista pan-africanista e no calor negritudinista do período imediatamente posterior ao 25 de Abril de 1974, como cúmplices e colaboracionistas do poder colonial-fascista português e, depois, em tempos mais recentes, do federalismo spinolista reciclador da antiga demanda elitista de adjacência político-cultural de Cabo Verde a Portugal, e plenamente  reabilitados na sua importante figuração e indispensável inserção na historicidade identitário-cultural e no contexto cívico-político da sua época. Para além de alguns dos nativistas acima referidos, também curiosamente ostracizados e ignorados do ponto de vista literário-cultural pela grande maioria dos letrados claridosos, neo-claridosos e nova-largadistas, destacam-se entre as personalidades simbolicamente ostracizadas e depois reabilitadas durante o regime político de partido único  socializante alguns claridosos e neo-claridosos, como, por exemplo, o jurista, professor liceal e claridoso-fundador Baltasar Lopes da Silva e o médico, ensaísta e ficcionista neo-claridoso Henrique Teixeira de Sousa, ambos implicados na criação da Associação Democrática do Barlavento de que viria a resultar a UDC, sendo que Baltasar Lopes da Silva fora integrado desde a sua criação pela LOPE (Lei de Organização Política do Estado) no Conselho Nacional da Justiça (primeira denominação do Supremo Tribunal de Justiça caboverdiano) de que viria a demitir-se tornando-se na clandestinidade política Presidente Honorário da UCID (alegadamente e segundo se diz pelo verbo irónico e cáustico de Manuel Delgado e, supostamente, do próprio Baltasar Lopes da Silva, para corrigir os muitos erros gramaticais e gralhas de que enfermavam os comunicados da mesma força política oposicionista). 

Para culminar o revisionismo histórico e político-simbólico,  de teor colonial-saudosista para alguns pan-africanistas mais radicais, de estrito respeito pela integridade da História das nossas ilhas meso-atlânticas, peri-africanas e peri-ocidentais  para outros mais moderados analistas e afro-crioulistas, são restituídas à paisagem urbana pública a estátua do descobridor Diogo Gomes na cidade da Praia e  a estátua do descobridor Diogo Afonso na cidade do Mindelo, mantendo-se todavia no anonimato público o descobridor António da Noli, genovês que é considerado o verdadeiro e/ou principal descobridor das ilhas de Santiago, do Fogo, do Maio, da Boavista e do Sal (com Diogo Gomes e, para a ilha Brava e algumas ilhas do norte do arquipélago, Diogo Afonso) e o criador do conceito de povoamento que pôde conjugar a colonização branca e a escravatura negra para o conseguimento da radicação humana definitiva e irreversível nas muito difíceis e especiais ilhas de Cabo Verde, indo-se ademais  ao ponto de as autoridades coloniais terem alterado o nome do cume mais alto da ilha de Santiago, anteriormente e por muito tempo conhecida como “a Ilha de António”, de Pico de António para Pico de Antónia. 

Às  mudanças político-simbólicas radicais ocorridas nos anos noventa do século XX, e acima referenciadas, pareceram ter escapado somente as denominações inspiradas nos nomes de combatentes afro-lusófonos e bissau-guineenses “de gema” das lutas para as independências nacionais ilustradas na manutenção das denominações Aeroporto Francisco Mendes, Hospital Central Agostinho Neto, Liceu Domingos Ramos e Salão Josina Machel do mesmo Liceu, todas de instituições públicas situadas na cidade da Praia, bem como o Complexo Agro-Pecuário Titina Silá, no Concelho de Santa Cruz, depois extinto e privatizado, bem como nos nomes de alguns combatentes caboverdianos perecidos durante a luta político-militar no território da actual Guiné-Bissau, como Quartel Jaime Mota, na cidade da Praia, e Liceu Ludgero Lima, na cidade do Mindelo.   

3. Em face das radicais mudanças político-simbólicas acima referidas e efectivamente ocorridas de modo mais ou menos pacífico na sociedade caboverdiana durante a década de noventa do passado século XX, sentimo-nos de certo modo obrigados a debruçar-nos sobre algumas hipóteses de trabalho e reflexão, para eventualmente e, a final, tirar as devidas ilações, podendo as mesmas ser ou não ser conclusivas e mais ou menos demolidoras para a aplicação pós-colonial do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e do projecto de construção de uma pátria bi-nacional una, progressista e solidária entre os dois pequenos países oeste-africanos. 

 São, pois, as seguintes as hipóteses de  trabalho e de reflexão a que acima me referi:

I. O muito hipotético e imaginário caso de não ter ocorrido o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 e, por essa mera e historicamente inexequível hipótese, Luís Cabral ter permanecido no poder como Secretário-Geral Adjunto do PAIGC e Presidente da República da Guiné-Bissau durante todo o período de vigência do regime político de partido único na Guiné-Bissau (isto é, até aos inícios dos anos noventa do século passado, tendo em devida conta,  e salvas as raras ou muito poucas excepções representadas pelo Presidente Leopold Sédar Senghor do Senegal e Julius Nyerere da Tanzânia, o carácter quase vitalício do exercício dos  mais altos cargos do poder do Estado em regimes de partido único, exercício esse somente interrompido, por vezes de forma  dramática, senão trágica, quando ocorresse um golpe de Estado, como frequentemente aconteceu  em África, ou um golpe palaciano, como amiúde ocorreu nos antigos países do chamado socialismo real);  

e/ou 

II. O também hipotético e imaginário caso de porventura o PAIGC ter podido sobreviver como partido bi-nacional ao golpe de Estado de João Bernardo (Nino) Vieira de 14 de Novembro de 1980, nesse caso passando o mesmo partido bi-nacional a inequivocamente ostentar um rosto bifacial de pendor mais nitidamente bissau-guineense “autêntico” ou “de gema” e, em consonância com isso e tendencialmente, de feições mais ostensivamente negro-africanas.

A  primeira hipótese acima aventada seria aquela que teria lugar se o golpe de Estado de 16 de Novembro de 1980 (relembre-se que fora essa a primeira data aprazada para a perpetração do golpe de Estado militar, a qual foi  antecipada em dois dias por razões de segurança dos conspiradores, tendo sido efectivamente executada e com pleno sucesso no dia 14 de Novembro de 1980) tivesse sido reduzido a mera e frustrada tentativa de golpe de Estado, pois que, por algum golpe mágico de sorte, de adivinhação e/ou de descoberta, os serviços de segurança do Estado da Guiné-Bissau, actuando preventivamente sob a batuta de António Buscardini em face de rumores e/ou de denúncias de uma ameaça iminente de  sedição militar e subversão política golpista, teriam procedido à neutralização política e/ou física dos seus protagonistas,  nisso incluindo a sua prisão e concomitante eliminação cívico-política e/ou a sua liquidação física, com ou sem julgamento prévio). É pois somente na hipótese de morte no ovo de um hipotético golpe de Estado de 16 de Novembro de 1980 e, assim, de neutralização política e/ou física do seu principal fautor, o Comandante de Brigada e Comissário Principal (equiparado a Primeiro-Ministro) João Bernardo (Nino) Vieira, que, por mera ficção,  se poderia imaginar a manutenção de Luís Cabral como a mais alta figura do Estado bissau-guineense e por mais dez anos do que efectivamente aconteceu. Relembre-se neste preciso contexto que a morte no ovo de golpes de Estado militares ou palacianos ou a sua mera adivinhação por obscuros golpes de magia constituem expedientes característicos de regimes políticos totalitários africanos, e não só, e de que as respectivas polícias políticas  e máquinas judiciárias repressivas são  pródigas, como comprovam as muitas inventonas de conspirações políticas e de tentativas de golpes de Estado, não interessa se militares ou palacianos. com destaque para a Guiné-Conacry do sanguinário e, por vezes tribalista, déspota e ditador anti-colonialista e anti-imperialista Sekou Touré e a União Soviética de Estaline.  

Nessa primeira e ficcionada hipótese de trabalho e reflexão poderiam antever-se os seguintes cenários, todos a final certamente fatais para esse mesmo hipotético PAIGC bi-nacional:

I.a) Um primeiro cenário resultante dessa primeira hipótese, e certamente mais benigno, seria aquele no qual Luís Cabral se teria apresentado  democraticamente às urnas nas primeiras eleições presidenciais pluralistas bissau-guineenses proporcionadas pela abertura política ao multipartidarismo que, tal como em Cabo Verde, também teria lugar na Guiné-Bissau, quiçá imediatamente depois e como consequência da Queda do Muro de Berlim a 9 de Novembro de 1989, e tal como, e contra todos os primeiros prognósticos partidários e não só,  ocorreu com Aristides Pereira nas primeiras eleições presidenciais  pluralistas caboverdianas de Fevereiro de 1991. Se o Presidente da República de Cabo  Verde Aristides Pereira que, relembre-se, gozava de grande estima pessoal e inegável prestígio interno e internacional, sofreu uma estrondosa derrota eleitoral face ao antigo Secretário-Geral da Assembleia Nacional Popular e Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde  António Mascarenhas Monteiro, imagine-se o que poderia ter acontecido a um eventual Luís Cabral, postulante da renovação por via do escrutínio directo, secreto, universal, livre e democrático dos eleitores bissau-guineenses por mais cinco anos dos seus anteriores três mandatos (obviamente somente no plano ficcional) de Presidente da República da Guiné-Bissau, em face, por exemplo, de Kumba Ialá, que, na vida real,  foi um candidato demagogo e assaz ressabiado com a alegada discriminação étnica da sua etnia balanta, considerada a força física principal da luta político-armada de libertação bi-nacional,  tendo sido ademais o combativo adversário que quase derrotou o General João Bernardo (Nino) Vieira nas primeiras eleições presidenciais pluralistas realizadas na Guiné-Bissau! 

 No caso (relembre-se que também meramente hipotético e puramente imaginário e ficcionado)  da candidatura presidencial de Luís  Cabral e da apresentação de um PAIGC bi-nacional às eleições legislativas bissau-guineenses, o Presidente-candidato e o seu partido bi-nacional teriam sido severamente contestados nas suas bases partidárias bi-nacionais de sustentação e nas suas feições bissau-guineenses de coloração luso-caboverdiana. Por isso, não estaria totalmente fora de cogitação o desaparecimento puro  e simples ou um colossal enfraquecimento do PAIGC bissau-guineense que  o colocaria rente ao abismo político ou, mesmo, a sua ilegalização como sigla e denominação partidárias bi-nacionais, à semelhança do que ocorreu com o PCUS (Partido Comunista da União Soviética), de Mikhail Gorbatchov. Como estamos todos muito bem lembrados, o PCUS liderado por Mikhail Gorbachov foi interditado em todo o território federal e multinacional da Rússia de Boris Ieltsin, tendo essa mesma interdição provocado a demissão de Mikhail Gorbachov do cargo de Presidente da União Soviética por notória ausência de base de sustentação partidária e, nessa sequência,  a extinção da própria União Soviética, pois que as quinze Repúblicas constitutivas dessa entidade federal supra-nacional, incluindo a República Federativa  da Rússia, tinham declarado na sua esmagadora maioria as respectivas independências políticas e soberanias nacionais  e internacionais, depois de amplamente ratificadas em  muito participados referendos de auto-determinação política, assim se desvinculando da agónica e  comatosa União das Repúblicas Socialistas  Soviéticas (URSS), vindo depois a constituir  a Comunidade de Estados Independentes (CEI), assaz indefinida dos pontos de vista jurídico-constitucional e do Direito Público Internacional.   

I.b) Um segundo cenário referente à muito remota e quase delirante hipótese da manutenção de Luís Cabral na Chefia do Estado bissau-guineense até aos inícios dos anos noventa do século passado,  ocorreria porque teria finalmente tido lugar o frustrado golpe de Estado de 16 de Novembro de 1980, e desta vez com pleno sucesso, no formato de um golpe militar de Estado desferido contra o agora considerado excessivamente longevo Presidente da República da Guiné-Bissau, Luís Severino de Almeida Cabral, ademais desconsiderado  e vituperado como não sendo um bissau-guineense “autêntico” ou “de gema”. Tal cenário seria   de todo em todo verosímil, mesmo não sendo o mesmo golpe  de Estado militar necessariamente liderado por João Bernardo (Nino) Vieira, que, aliás, i. poderia ter sido extra-judicialmente executado pelos serviços de segurança do Estado da Guiné-Bissau; ii. poderia ter sido condenado à morte, mas podendo ter visto a sua pena de morte comutada em prisão perpétua ou medida de segurança ilimitada, à semelhança do que realmente tinha ocorrido com o histórico dirigente da Zona Zero Rafael Barbosa, acusado e condenado à morte por alegada participação na conspiração para o assassinato de Amílcar Cabral, tendo essa pena sido comutada pelo Conselho de Estado da Guiné-Bissau e pelo seu Presidente, Luís Cabral, em prisão perpétua. Com efeito, nesse hipotético, imaginário e ficcionado  cenário, o golpe de Estado militar poderia ter sido liderado e executado por uma outra alta patente das FARP, presumivelmente balanta, como, por hipótese o Primeiro Comandante Paulo Correia, supostamente  descontente com a alegada hegemonia caboverdiana ao mais alto nível do poder de Estado, acrescida da suposta  discriminação sistemática da sua etnia balanta e, em geral, dos bissau-guineenses “autênticos” ou “de gema”  no acesso a importantes cargos do Estado, da administração pública e do sector empresarial público. (Permita-se-me abrir  um parêntese aqui e agora para relembrar que na historicidade  dos factos realmente acontecidos, Paulo Correia  foi um “morto morrido já”, condenado à morte com os seus alegados cúmplices por um tribunal militar por alegada tentativa de golpe de Estado contra o regime do General João Bernardo (Nino) Vieira e prontamente executado, apesar de inúmeros pedidos de clemência de Chefes de Estado estrangeiros, incluindo do próprio Papa João Paulo II). Este último cenário,  acabado de ser referido, de alteração violenta da ordem constitucional (todavia não se tratando de saber se imediatamente precedente ou se já consagradora  de uma democracia multi-partidária e integrada num moroso processo de transição política democrática que deveria culminar na realização de eleições presidenciais e legislativas pluralistas) teria agora lugar em contextos político-sociais certamente muito mais gravosos e sangrentos do que aquele moderadamente sangrento provocado pelo realmente acontecido golpe  de Estado militar de 14 de Novembro de 1980, tanto para os detentores  de origem caboverdiana do poder partidário e na chefia do Estado bissau-guineense, como também para toda a comunidade dos considerados caboverdianos étnicos radicada na Guiné-Bissau e constituída pelos imigrantes das ilhas sahelianas, por vezes há várias gerações, e pelos seus descendentes bissau-guineenses.  

Reiteramos que, mesmo neste novo contexto social e político, nos parece  mais verosímil o cenário que na prática efectivamente se perfilou  depois do golpe de Estado de 14 de Novembro de  1980, isto é, a usurpação da sigla PAIGC e da denominação por extenso  Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde pelo seu antigo ramo bissau-guineense,  agora constituído em partido restringido na sua jurisdição e âmbito de acção somente ao território e ao povo bissau-guineenses e respectivas diásporas.  

Os hipotéticos e ficcionados cenários acima descritos e considerados como passíveis de serem  imaginados  na paisagem política da Guiné-Bissau,  caso o Presidente Luís Cabral tivesse permanecido no poder até aos inícios dos anos noventa do século XX, são tanto mais credíveis quando se pondera, como, aliás, se pôde constatar na crua e nua  realidade dos factos realmente ocorridos, primeiramente, nos macabros acontecimentos etnicamente marcados que rodearam o traiçoeiro e bárbaro assassinato de Amílcar Cabral levado a termo a 20 de Janeiro de 1973, em Conacri, e, depois, na sequência do golpe de Estado de João Bernardo (Nino) Vieira, de 14 de Novembro 1980, com parte das populações e das elites bissau-guineenses a (de)mostrar-se muito permeável ao atiçamento dos herdados ressentimentos históricos em relação aos  caboverdianos e a posturas políticas alegadamente contrárias a uma prática concretização do princípio paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde consubstanciada numa suposta “unidade do cavalo e do cavaleiro”, isto é, numa alegada hegemonia da minoria étnico-nacional caboverdiana em relação ao território e às populações nativas, primeiramente, da Guiné dita portuguesa e,  depois,  do Estado soberano e independente da Guiné-Bissau. Atente-se ademais que pelos fins dos anos oitenta do século XX as elites políticas, burocrático-administrativas e intelectuais bissau-guineenses, isto é, a célebre pequena-burguesia de serviços estudada e dissecada por Amílcar Cabral, tinham sido muito reforçadas nas suas feições autóctones, ditas “bissau-guineenses autênticas” ou “bissau-guineenses de gema,”  com o regresso de novos quadros das universidades, das escolas técnicas e dos institutos profissionais estrangeiros, o que certamente poderia também ter contribuído  para a exacerbação da competição pelo acesso a bens raros, como eram e ainda são os cargos e os lugares nos aparelhos administrativo-burocráticos, económico-empresariais, ideológicos e repressivos do Estado e, deste modo, para a capitalização étnica tribalista ou uni-nacionalista por alegados e auto-proclamados “bissau-guineenses autênticos” ou “bissau-guineenses de gema” dos ressentimentos contra cidadãos bissau-guineenses de origem caboverdiana, em regra denominados “burmedjus” (mestiços), colocados nos mais elevados escalões do ramo nacional do partido único bi-nacional, do Estado e da sociedade bissau-guineenses.  

III. Na hipótese da sobrevivência de um PAIGC bi-nacional  liderado por João Bernardo (Nino) Vieira (relembre-se que também jamais verificada do ponto de vista da factualidade histórica, se bem que presumivelmente desejada e efectivamente declarada como praticável pelos fautores do golpe de Estado militar de 14 de Novembro de 1980 em Bissau), e tendo um caboverdiano das ilhas como Secretário-Geral Adjunto de um PAIGC bi-nacional com João Bernardo (Nino) Vieira como Secretário-Geral. A ter ocorrido esta última hipótese, seria certamente inverosímil que  o velho veterano político, sucessor de Amílcar Cabral e Secretário-Geral do PAIGC, Aristides Pereira, tivesse aceitado prestar-se a degradar-se ao subalterno papel de Secretário Geral Adjunto de João Bernardo (Nino) Vieira, não se imaginando também que Pedro Pires estivesse imediata e prontamente disponível para desempenhar o  mesmo cargo de Secretário-Geral Adjunto de um João Bernardo (Nino) Vieira líder de um PAIGC bi-nacional. Relembre-se, neste contexto, que Pedro Pires foi um dos principais mentores da ruptura organizacional com o PAIGC bi-nacional e o seu ramo nacional bissau-guineense e, assim,  com o projecto pós-colonial de união orgânica de Cabo Verde com a Guiné-Bissau, deste modo sufragando e co-liderando o processo da criação do PAICV. Dignos de menção são igualmente o facto de, na sequência da proclamação unilateral  da República da Guiné-Bissau a 24 de Setembro de 1973,  Pedro Pires ter sido Comissário de Estado Adjunto da Defesa da Guiné-Bissau com o mesmo João Bernardo (Nino) Vieira como Comissário de Estado da mesma pasta ministerial,  bem assim o facto de o mesmo Pedro Pires ter sido preterido pelo Secretário-Geral do PAIGC Aristides Pereira na sua pretensão de ser ele, Pedro Pires, na sua condição de Presidente da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC, o primeiro Presidente da República de Cabo Verde proposto pela mesmo organismo partidário de âmbito nacional caboverdiano, certamente confiando na hipótese nunca verificada de Aristides Pereira poder aguardar, enquanto Secretário-Geral do PAIGC, pelo futuro e hipotético  cargo de Presidente de uma muito eventual República Unida da Guiné e de Cabo Verde. Acrescente-se neste concreto contexto que, segundo testemunho do próprio Aristides Pereira, teria sido Luís Cabral a instigá-lo e a encorajá-lo a apresentar-se à reunião do Comité Executivo da Luta do PAIGC, de 25 de Maio de 1975, como candidato ao cargo de Presidente da República de Cabo Verde, pois que o mesmo Luís Cabral não quereria ver-se equiparado no exercício do cargo de Chefe de Estado bissau-guineense a um dirigente do PAIGC mais novo e que nem sequer foi fundador do PAIGC bi-nacional. O mais provável é que Luís Cabral não quisesse ter  demasiado perto dele na cidade de Bissau quem estava colocado acima dele na hierarquia partidária de um regime de partido único em que o lugar político privilegiado do partido era levado mesmo à letra, sendo ademais o Secretário-Geral do PAIGC, Aristides Pereira, oito anos mais velho do que ele, e tendo sido lugar-tenente do seu mítico meio-irmão Amílcar Cabral. Nesta precisa circunstância, é de se perguntar como teria sido o desfecho desta candente questão se tivesse sido Abílio Duarte - detentor de uma biografia e de um percurso pessoal e político muito semelhantes aos de Luís Cabral- a propor-se (ou, melhor, a ser proposto) ao exercício do cargo de Presidente da nascente República de Cabo Verde? Talvez o facto de a Comissão Permanente do CEL do PAIGC, criada em 1970 como principal órgão político executivo do PAIGC, colocado acima do Conselho de Guerra e do Secretariado do partido bi-nacional, e  constituído por apenas três altos dirigentes e fundadores formais do PAIGC no activo da luta político-armada e diplomática nas duas Guinés, designadamente Amílcar Cabral, Aristides Pereira e Luís Cabral, seja susceptível de trazer alguma luz sobre a ocupação dos mais altos cargos na República da Guiné-Bissau, cuja proclamação unilateral estava já em vias de preparação e cujo Chefe de Estado deveria ser presumivelmente o natural da Guiné dita portuguesa e bissau-guineense assumido Luís Cabral, a futura República de Cabo Verde, cujo Chefe de Estado deveria ser certamente o caboverdiano das ilhas e boavistense Aristides Pereira, e a vindoura República Unida da Guiné e de Cabo Verde, cujo responsável político máximo seria certamente o abertamente assumido caboverdiano e guineense Amílcar Cabral. Na nossa opinião,  apesar do seu grande e sempre crescente prestígio internacional e interno junto da esmagadora maioria dos dirigentes e responsáveis políticos e militares, dos militantes, dos combatentes e das populações, dificilmente Amílcar Cabral teria aceitado exercer o cargo de Chefe de Estado da República da Guiné-Bissau, prestes a ser unilateralmente proclamada aquando da transmissão da sua última Mensagem de Ano Novo (a de 1973, por isso mesmo considerada o seu Testamento Político), pois que ainda impendia sobre os seus ombros de chefe político-militar e diplomático máximo do PAIGC a ingente responsabilidade da libertação total do território e das  populações da Guiné-Bissau em relação ao Estado agressor colonial-fascista português, ainda ocupante   de alguns espaços, sobretudo urbanos e insulares, do país continental-insular, bem como da libertação da totalidade do território e das populações do arquipélago de Cabo Verde do jugo colonial português. Não tivesse Amílcar Cabral sido traiçoeiramente assassinado a 20 de Janeiro de 1973 em Conacri (relembre-se que  somente passível de ser imaginada como possível hipótese em razão da tempestiva e eficaz desarticulação da conspiração e do plano engendrado pela PIDE-DGS e pelo General de monóculo e pingalim, aliás, sobejamente conhecido dele, Amílcar Cabral, bem como dos órgãos superiores e dos serviços de segurança do PAIGC), certamente que teria sido muito célere a constituição, mas sempre posterior à declaração de independência da República de Cabo Verde, de uma eventual República Unida da Guiné e de Cabo Verde, tornando assim impossível ou, pelo menos, muito mais morosa, uma  crescente autonomização organizativa dos dois ramos nacionais do PAIGC e/ou qualquer cisão do PAIGC bi-nacional em dois partidos nacionais autónomos e confinados aos respectivos territórios nacionais, deste modo tornando muito mais difícil a probabilidade da morte pós-colonial do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde, do projecto de união orgânica entre os dois países embrenhados na construção de uma pátria africana bi-nacional unida, progressista e solidária, como efectivamente veio a ocorrer na inelutável historicidade dos factos realmente acontecidos.  A possibilidade de desarticulação de uma imaginada República Unida da Guiné e Cabo Verde afigurar-se-ia até como de muito difícil e/ou impossível concretização se nos ativermos somente ao exemplar caso da Tanzânia, mesmo se relativamente a esse caso de rara longevidade política de um modelo de união real entre duas entidades políticas anteriormente independentes se venha perscrutando um crescente desejo de autodeterminação política por parte de importantes sectores populacionais da região semi-autónoma do Zanzibar em relação ao colosso continental que é a Tanganica. Essa possibilidade afigurar-se-ia contudo como muito mais provável, senão muito certa, se não ignorarmos os paradigmáticos casos da Federação do Mali entre o Mali, o Senegal e outros países da antiga África Ocidental Francesa, da União entre o Gana, a Guiné-Conacri e o Mali, da Senegâmbia, todos localizados em  África, bem como da União Soviética, da Jugoslávia e da Checoslováquia, todos países praticantes do chamado socialismo real dissolvidos com as mudanças políticas de 1990/1991).  

No caso da ocorrência do hipotético, ficcionado e imaginário cenário de sobrevivência do PAIGC ao golpe de Estado militar de 14 de Novembro de 1980 e, assim, da continuidade desse partido-movimento de libertação no poder como organização política bi- e supra-nacional, seria de se antever que o PAIGC bi-nacional seria necessariamente vituperado, causticado e varrido, quiçá irremediável e irremissivelmente, do solo das ilhas, em razão dos espantalhos chauvinistas   anti-africanistas e soberanistas de teor racista eurocêntrico e luso-crioulista que necessariamente seriam desfraldados pelos antiquíssimos inimigos e pelos novíssimos adversários islenhos de Amílcar Cabral e do  princípio da unidade Guiné-Cabo Verde por ele propugnado e defendido (e que, como é sabido, foi de indesmentível e genial teor político-estratégico para a obtenção das independências da Guiné-Bissau  e de Cabo Verde),  bem como do seu sonho de união orgânica pós-colonial entre a Guiné-Bissau  e Cabo Verde (como comprovado na prática pelos factos históricos, de difícil implementação e de duvidoso sucesso no período pós-colonial da História comum desses  dois países irmãos). 

Esse outro cenário histórico alternativo em que, ao tempo da transição política democrática,  em vez do PAICV estaria no poder do Estado um PAIGC bi-nacional liderado por um General João Bernardo (Nino) Vieira coadjuvado nas ilhas por um alto dirigente caboverdiano seria certamente de feição mais repressiva e mais susceptível de ser contestado e posto existencialmente em causa por uma oposição política caboverdiana tradicionalmente fundada num nacionalismo estritamente caboverdiano, as mais das vezes de teor e pendor nitidamente luso-crioulistas. 

Relembre-se ainda, neste concreto contexto em que foi aventada a hipótese de o PAIGC bi-nacional ser varrido do solo das ilhas por mor da recrudescência do acima referido nacionalismo anti-africanista e do igualmente mencionado chauvinismo luso-crioulista em resultado da esmagadora vitória do MpD nas primeiras eleições pluralistas do Cabo Verde pós-colonial, que foram muitas as tentativas, abertas ou subtis, ocorridas na década de noventa do século XX, de marginalização laboral e política e, até, de ostracização judiciária dos dirigentes e militantes do PAICV e dos quadros com ele conotados ou suspeitos de serem seus amigos e simpatizantes e, até, de ilegalização do PAICV enquanto organização política (todavia sempre com a “devida ternura”),  tendo como falacioso pretexto a consideração do mais antigo partido caboverdiano (se remontarmos ao seu antecessor binacional, o PAIGC) como um “partido anti-sistema democrático” ou de o mesmo partido político ter alegadamente “concebido e executado” um  “plano de quebra de santos católicos”, para além de outras supostas malfeitorias, como, por exemplo, o de ter engendrado nas nossas ilhas um regime totalitário que se não teria coibido de recorrer ao terrorismo de Estado nas tensas relações políticas que alegadamente mantinha com os cidadãos caboverdianos. Relembre-se neste contexto que a grande maioria dos analistas e observadores nacionais e estrangeiros parece estar de acordo na compreensão de que o regime de partido único protagonizado pelo ramo caboverdiano do PAIGC e, depois, pelo PAICV foi um regime ditatorial consubstanciado num autoritarismo revolucionário de pendor socializante em que o partido único detinha o monopólio do exercício do poder político, considerando-se todavia que esse mesmo autoritarismo revolucionário do regime  de partido único socializante caboverdiano como tendo sido assaz mitigado, mesmo tendo em devida consideração as suas intermitentes e esporádicas pulsões e  explosões repressivas, como as ocorridas no ano de 1977 na ilha de São Vicente, em 1979 na ilha Brava, em 1981 na ilha de Santo Antão, em 1983 na cidade da Praia ou em 1989 na cidade do Mindelo. Acresce que, segundo os mesmos analistas e observadores políticos, e depois de uma primeira tentativa frustrada no seu Congresso de 1988 e que a ter sido implementada o colocaria em nítida posição de ofensiva política porque precedente da (e, por isso não condicionada pela) Queda do Muro de Berlim a 9 de Novembro de 1989, o PAICV foi o fautor de moto próprio da abertura política que conduziu à mudança do regime político caboverdiano de monopartidário para multipartidário, indubitável  e certamente que muito influenciado pelos convulsivos acontecimentos induzidos na União Soviética e no Leste da  Europa pela Perestroika (Re-estruturação) e pela Glasnost (Transparência) de Mikhail Gorbachov e primacialmente cogitando e calculando que seria a “estrangeirada” UCID a principal oposição política que teria de defrontar em eleições livres, pluralistas e plenamente democráticas. Como é também sabido, e em nítida contra-mão aos propósitos e às  pretensões reformistas de Gorbachov de profunda e palpável mudança  democrática no quadro do socialismo realmente existente, outorgando-lhe um rosto   banhado dos direitos humanos universalmente consagrados na sua perenidade e indivisibilidade de direitos, liberdades e garantias pessoais, civis e políticos e de direitos sociais, económicos e culturais num pujante Estado de Direito  Democrático e Social, as mudanças políticas induzidas por Gorbatchov desembocaram na desagregação e na implosão da União Soviética; na Queda do célebre e famigerado Muro de Berlim e na dissolução da antiga RDA (República Democrática Alemã) e na sua absorção pela antiga RFA (República Federal da Alemanha); em guerras civis ou de auto-determinação política em algumas das antigas Repúblicas soviéticas, como, por exemplo, na Rússia, na Geórgia e na Ucrânia;  em guerras entre as mesmas antigas Repúblicas soviéticas, como nos casos da Arménia e do Azerbaijão, da Rússia e da Geórgia, da Rússia e da Ucrânia; na desagregação da Checoslováquia e na constituição por via pacífica e mediante negociações constitucionais de dois novos Estados independentes e soberanos, integrados na União Europeia: a Chécia (ou República Checa) e a Eslováquia; na desagregação da Jugoslávia e a constituição por via pacífica do Estado independente e soberano da Eslovénia, depois integrado na União Europeia e, mediante mortíferas e prolongadas guerras civis, dos Estados independentes e soberanos étnico-religiosamente marcados da Sérvia (cristã ortodoxa, e, no interior das suas antigas fronteiras, do Kosovo, albanês e muçulmano), da Croácia (católica romana, depois integrada na União Europeia), da Bósnia-Herzegovina (frágil e precariamente tripartida entre bósnios muçulmanos, bósnios sérvios e bósnios muçulmanos), do Monte-Negro  e da Macedónia; na restauração do sistema capitalista (eufemisticamente denominado economia de mercado, com marcadas feições de capitalismo selvagem na Rússia e em outras antigas Repúblicas soviéticas dominados pelos novos hierarcas e oligarcas) e na adesão da esmagadora maioria dos antigos países do campo socialista e consensualmente considerados como antigos países satélites da União Soviética à União Europeia e à NATO, sendo  que as pretensões nesse sentido de alguns deles considerados pela Rússia pós-soviética como  situados do ponto de vista geo-estratégico no que considera o seu “estrangeiro próximo”, por isso, ferreamente contrariadas, com recurso a todos os meios disponíveis, incluindo os militares, como ocorre com a actual invasão e agressão da Rússia contra a Ucrânia.  

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