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O assassinato de Giovani e a batalha pela definição de crime racial
Colunista

O assassinato de Giovani e a batalha pela definição de crime racial

1. Ao olharmos para os primeiros pronunciamentos oficiais que vão desde a Polícia Judiciária Portuguesa, passando pela Comunicação Social, também portuguesa – pois Cabo Verde não enviou nenhum jornalista a Bragança –, indo até às autoridades governamentais portuguesas e caboverdeanas, todos esses pronunciamentos iniciais têm, em comum, uma grande e maior de todas as preocupações: afirmar que Giovani não tinha sido vítima de um crime racial. Desta vez, o lugar central não foi ocupado por aquele discurso clássico, bastas vezes utilizado em inúmeras ocasiões, em que se diz “vamos deixar que as investigações decorram e que conduzam às devidas conclusões”. Não, nada disso. Foi, logo à partida, um tirar de conclusões: não houve crime racial. Sem sequer abrir-se uma discussão sobre o que seria um crime racial;

2. Senti que havia uma espécie de pavor, só comparável com aquele medo de infância que tínhamos em dizer o nome de certas criaturas, com o receio de que o simples pronunciar do nome tivesse uma espécie de poder de invocação e de transformação desses seres medonhos em realidade. Foi a primeira sensação com que fiquei: negação de crime racial como forma de afastar algum tipo de fantasma! Que fantasma seria esse? É o fantasma de se considerar Portugal como um país racista! Em matéria de racismo, com o passar dos anos, adotei para mim a distinção entre um “país racista” e um “país com práticas de racismo na sua sociedade”. Um país racista teria, necessariamente, leis nacionais racistas. Enquanto um país com práticas de racismo é o país que tem práticas na sociedade que são racistas; práticas que não estão escritas sob a forma de legislação, mas que fazem parte das ideias que circulam nessa sociedade e servem de orientação às atitudes e comportamentos dos indivíduos;

3. É evidente que, na atualidade, com a crescente valorização de todas as questões à volta dos Direitos Humanos e das minorias, a salvaguarda das temáticas de género, a elevação da liberdade individual, etc., então, a discriminação racial de forma aberta e instituída nas próprias leis de países torna-se algo vergonhoso e formalmente banido pela quase totalidade de Estados e sociedades – afastando para longe cenários como os do apartheid da África do Sul ou do Nazismo na Alemanha de Hitler. Contudo, é inegável que nas relações sociais, na interação com ideias e princípios que não estão escritos – como é o caso de crenças e preconceitos – as práticas racistas continuam largamente presentes. Portugal, não constitui exceção. Torna-se imperioso dizer que há práticas racistas presentes nas mais diversas sociedades, desde o Reino Unido, passando pela Itália, Alemanha, Brasil, África do Sul, Cabo Verde, Estados Unidos de América, China, etc.

4. Associar o negro ao macaco é revelador de uma classificação racial inferior e, por conseguinte, racismo. Em quantos estádios de futebol já surgiram situações em que os adeptos fazem “uuu uuu”, imitando um macaco, de cada vez que um jogador negro toca na bola? Mas há outros indicadores. Não há nenhuma lei que proíbe o arrendamento de casas a negros em Lisboa. Todavia, quantas vezes já aconteceu, ao telefone, o senhorio não ter percebido pelo sotaque que o interessado é negro e, assim que se encontram, ao fazer essa constatação, diz, imediatamente, que a casa, afinal, já está arrendada?! A mesma casa que dois minutos antes, ao telefone, estava livre. Há também aquela sensação horrível de perceber a forma como a senhora aperta a sua carteira contra o corpo e muda para o outro lado da rua ao encontrar-se contigo, negro, numa rua pouco movimentada; são inúmeros os testemunhos de curricula vitae de negros que são postos de lado à partida…

5. Mas, há ainda outros indicadores. Portugal recebeu uma conferência da extrema-direita europeia[i] no ano passado, no mês de agosto. Receção possível porque a extrema-direita tem anfitriões em Portugal. Sendo que vários grupos de esquerda organizaram uma manifestação de condenação para o mesmo dia, 10 de agosto. Daí podermos afirmar não terem sido recebidos por todos os portugueses, mas foram recebidos; O Instituto Nacional de Estatísticas de Portugal, após um longo debate, acabou por decidir por não incluir nos CENSOS de 2021 as perguntas que permitissem identificar a origem étnico-racial dos inquiridos[ii]. O INE de Portugal – logo, Portugal – fez a opção pelo desconhecimento da realidade ético-racial da sua sociedade! O inquérito europeu European Social Survey[iii] revela que 52,9% de portugueses [iv] “acredita que há raças ou grupos étnicos que nasceram menos inteligentes do que outros”, é o chamado racismo biológico – em relação ao qual Portugal regista o valor mais alto da Europa. Por outro lado, 54,1% de portugueses concorda que “pensando no mundo de hoje, diria que há culturas muito melhor do que outras”, é o racismo cultural. É possível negar que estes factos sociais têm implicação na forma como os negros são tratados em determinadas situações?

6. É plausível negar que estes factos sociais são determinantes para a realidade em que vive o negro em Portugal? Como pode não ser um problema a ausência de negros no espaço público da sociedade portuguesa, depois de passados mais de quinhentos anos[v] da entrada de negros em Portugal? Os negros chegaram primeiro a Portugal do que aos Estados Unidos de América. Até onde ascenderam numa e noutra sociedade? Não há um Obama em Portugal. Qual a razão para a ausência de negros nos altos cargos de decisão, nos órgãos de comunicação social, como protagonistas de filmes, nas elevadas hierarquias das forças policiais, nos lugares de topo do exército, nas reitorias das universidades, nos laboratórios de investigação científica e nas administrações de grandes empresas? Toda essa ausência sistemática, não é sinal de que existem barreiras sociais – não legais – que impossibilitam a ascensão de negros? Será que os negros não vão sendo discriminados ao longo da vida, acabando por ficar pelo caminho? Sem dúvida que Portugal já fez um percurso assinalável com iniciativas académicas a lançarem olhares críticos e inovadores sobre a presença de negros – sou testemunha, entre outros, do trabalho da Prof. Margarida Marques pioneira no estudo das migrações sem ser como um problema, assim como é positivo a criação de instituições como o Alto Comissariado para as Migrações;

7. É neste contexto que laboram as autoridades oficiais a quererem a todo o custo camuflar uma parte dura da realidade, desviando-se para a “amizade lusófona”, a “afinidade cultural” entre Portugal e Cabo Verde, as “razões fúteis” e a elevada qualidade de acolhimento de toda a Bragança, como que a assumir a hipótese irracional de que existência de práticas de racismo fosse incompatível com essa amizade, afinidade e grau de acolhimento. Não é. Em sentido contrário ao discurso das instituições oficiais – polícias e governantes –, há um discurso popular que considera ter sido um crime racial. Alargou-se o fosso entre o país legal e o país informal, das ruas e das crenças, sentimentos e julgamentos subjetivos. Ficou-se por aprofundar o debate sobre o que é um crime racial. Teremos de fazer isso, pelo Giovani e pela paz de verdade!

[i] Conferência de extrema-direita europeia em Lisboa leva a protesto – 1 de agosto de 2019, Sol https://sol.sapo.pt/artigo/666803/confer-ncia-de-extrema-direita-europeia-em-lisboa-leva-a-protesto

[ii] INE chumba pergunta sobre origem étnico-racial no censos – 17 de junho de 2019, Público https://www.publico.pt/2019/06/17/sociedade/noticia/censos-1876683

[iii]European Social Survey https://www.europeansocialsurvey.org/data/country.html?c=portugal

[iv] Portugal é dos países da Europa que mais manifestam racismo – 2 de setembro de 2017, Público https://www.publico.pt/2017/09/02/sociedade/entrevista/portugal-e-dos-paises-da-europa-que-mais-manifesta-racismo-1783934

[v] Ver “O lugar dos negros na imagem de Lisboa” publicado na revista Sociologia - Problemas e Práticas, nº 52, pp. 87-108, Oeiras: Celta Editora, 2006 e capítulo do livro Lisboa Multicultural (org. Margarida MARQUES), Lisboa: Fim de Século 2014

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine