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Crónica das primeiras chuvas no concelho do planalto
Elas

Crónica das primeiras chuvas no concelho do planalto

Sexta, Sábado, Domingo, Segunda, Terça e Quarta-Feira, respetivamente. Nos primeiros dias ela vinha como quem carregava a culpa dos atrasos. Rondava pelas rochas de Palha Carga, Monte Brianda, pelos mares do Rincão, do Porto Ribeira da Barca e tão-pouco irrigava as sementeiras feitas há quase um mês.

Aos poucos, chamada pela esperança em “txon modjadu” dos agricultores e de suas alimárias, a chuva finalmente reconheceu a sua importância e banhou o concelho onde 86% da população vive nas áreas rurais, trabalhando na agricultura de sequeiro e na criação de gado. Aos familiares no estrangeiro, os que ligaram durante o final de semana para “matar saudades”, já sabem que a monda é já nas próximas semanas.

Ansiosos, homens, mulheres e crianças preparam as suas enxadas e outros materiais agrícolas. Alguns arrependidos de não confiar de que ela viria, ainda estão nas ladeiras para sementeira de "txon modjado". Os que semearam no seco, alimentam a esperança de que daqui alguns dias vão poder verificar se nasceram “corrente” os milhos e os feijões.

Não ficou indeferente ao fenêmeno destas primeiras chuvas, o cenário familiar em Santa Catarina. Na ausência do “pai de família”, as mulheres assumem o papel dos homens. De enxadas ao ombro caminham em direção ao campo cheias de força e sustentadas pela esperança de que azágua deste ano vai ser a solução de todos os seus problemas, como tem sido ao longo dos anos. No campo, homens de algibeiras também não se estranham. Sabe-se que muitos dos seus filhos, pouco sabem sobre as suas mães e por onde andam.

Os jovens acostumados com a “boa vida no facebook”, entre os intervalos das sementeiras, férias de escolas e atraso das chuvas, desacomodados, reclamaram o dia todo e relembram o sonho que sempre tiveram. O dia em que estarão longe desta vida de “simia ku monda”. “Há seis anos, estava feliz porque iniciei os estudos da universidade na Praia e pensei que não iria mais trabalhar nisso. No entanto, durante as férias tinha de vir para a sementeira e monda. Ás vezes regressava novamente para tratar alguns assuntos da escola e num dia como hoje, em que a primeira chuva cai, a minha mãe liga para dar a ‘grande’ novidade. Não que eu não goste do que faço, só não gosto que este trabalho seja a minha única ocupação e único rendimento da minha família. Foi com essa perspetiva que iniciei os estudos ”, dizia uma licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de Santiago.

Num concelho com 19,6 % da taxa do desemprego, os jovens hoje em dia, pouco sonham com um “trabalho digno” na mesma zona, na mesma localidade, na mesma ilha, ou até mesmo em Cabo Verde. Estes não vejam a hora de estar fora do país, adotando um estilo de vida diferente. “Na minha zona todos os jovens estão a viajar para França, Portugal ou sei lá para onde. Quando vejo os meus colegas que estudaram mais do que eu sem emprego, isso reforça a minha vontade de deixar o país. Fico a imaginar o que eu vou mais querer em Cabo Verde, com apenas 12º ano de escolaridade”, desabafou um jovem de enxada ao ombro e com os olhos fixos no telemóvel que manejava com prazer.

As crianças experientes e outros ainda “em estágio” com os “mais grandi”, também não são perdoadas quando a chuva amiga fala mantenha. Ansiosas e animadas, deixam de lado as suas bolas de meia, carros de lata, ou até mesmo a divertida brincadeira de “banho de chuva” para ajudar no que puder. Enquanto as meninas aprendem quantos grãos de milhos deve ter cada cova, os meninos vão descobrindo o espaçamento entre elas (as covas). Quando se fala em primeiros dias de chuva, famílias em direção ao campo, azágua, nem o cão de guarda fica em casa. Estes são vistos sempre completando o agregado familiar dos seus donos.

Para os “empregados do Estado” e ou poucos santacatarinenses que não estão ligados às atividades agrícolas, as chuvas também trouxeram benefícios, já que “nesses dias fizeram um calor enorme que ninguém mais aguentava. Finalmente a chuva”. Até mesmo os “necessitados” da ajuda do Estado para melhorar as suas habitações inapropriadas para as épocas da chuva resmungavam sobre o seu atraso. “A minha casa não está grande coisa e ando preocupado nessa época de chuva. De qualquer maneira, reconheço a importância da chuva e peço a Deus todos os dias para dar-nos ‘chuva branda’ para que a minha casa não caia”, dizia uma vendedeira à sua colega. A mesma que, no ano passado, durante uma noite de chuva, socorreu-se de uma toalha de plástico para livrar das pingas que caiam do seu teto, enquanto dormia. As duas estão com problemas nas suas casas, mas a vontade de ver a água do céu cair fala mais alto.

As chuvas cairam mansas. No entanto, em algumas localidades, houve quedas de pedras nas estradas, assim como na via que liga a cidade de Assomada à capital do país. Uma outra preocupação em tempos de chuva, para além do bom ou mau ano agrícola. E é ver as máquinas estavam nas estradas para desfazer os danos que não dificultam o trânsito no seu percurso normal, embora sem grandes constragimentos, por ora. De qualquer forma, as autoridades locais devem manter-se atentas às necessidades e evitar complicações nas infraestruturas e não só, visto que, a chuva mal chegou e já vem exigindo alertas.

No ano passado, as primeiras chuvas chegaram a cidade do planalto nos primeiros dias de Setembro, um pouco mais tarde do que este ano.

Nos finais de Junho início de Julho, os santacatarinenses iniciaram as sementeiras na esperança de que o mês de Julho e Agosto é a época certa para as primeiras chuvas, como dizem as “guentis grandi”. Os mesmos que dizem inconformados com as mudanças, acreditando ser o castigo de Deus pelos pecados “cada vez mais perigosos” dos seres humanos. Com ou sem pedido de “perdão dos pecados” ao Senhor das Águas, as primeiras chuvas já caíram em Santa Catarina, e um pouco por todo o Cabo Verde. O semblante das pessoas estão mais alegres, mais vivas no dealbar pelos campos, o que nos faz a cada vez, acreditar de que a chuva cantada no país como alegria, renascença e esperança, está longe de ser um conto. Santa Catarina, Ilha de Santiago, Cabo Verde nunca deixa passar em vão a chegada das primeiras chuvas. Tanto os santacatarinenses, os santiaguenses, e os cabo-verdianos em geral, estão sempre dispostos a comemorar a sua chegada deste bem precioso de ano em ano.

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Redação