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NHA CIDÁLIA: Terceira parte
Cultura

NHA CIDÁLIA: Terceira parte

IX CENA

Nonó canta numa festa de carnaval.

NONÓ – Os músicos para o meio da sala, que vou começar a cantar.

Três homens com violões, acompanhados pela voz de Nonó, animam a festa.

Na se kanpu semiadu de stréla

Nhor Dê fixá didinha Lua

Na tunba di noti skuru…         

Mosinhus di Kabu Verdi,

Já nhos fiká sen madrinha

Pamodi Nhor Dés di Séu

Já fixá Didinha Lua

Na tunba di nôti skuru…

ANDREZINHO (bate palmas em honra de Nonó. Puxa uma cadeira para o meio da sala, encarrapita nela e faz discurso – Meus irmãos, hoje somos todos uma família...

As pernas da cadeira não aguentam e ele cai. Levanta-se atrapalhado. Nuninha está sentada ao lado do Chiquinho e faz-lhe sinal de que lhe quer falar.

CHIQUINHO – Que é?

NUNINHA – Não adivinhas?

CHIQUINHO – Não sou feiticeiro…

NUNINHA – Nem eu…

CHIQUINHO (olha nos olhos da Nuninha) – Feiticeira…

NUNINHA – Chiquinho, quero-te todo, da cabeça aos pés…

NONÓ (canta mais uma música). –

                                       Ja-m kre morrê ta sonhá

                                       Na sonbra di olhu maguadu

                                       Di un pikéna jentil

                                       Di grupu purfumadu... [1]

UM RAPAZ (alto e esgalgado, chega-se à Nuninha e tira-lhe para dançar) – Vamos dançar este slow?

Dançam muito colados. Os olhos de Nuninha estão quase fechados. Chiquinho está morto de ciúmes.

CHIQUINHO (depois da música) – Eu vou-me embora.

NUNINHA – Espera mais um bocadinho…

CHIQUINHO – Nem mais um segundo. O Andrezinho é teu irmão, ele que te acompanhe. Ou então pede ao rapaz com quem dançaste…

NUNINHA – Estás doente, coisa doce?

CHIQUINHO – Estou com dor de cabeça.

NUNINHA – Dor de quê?

CHIQUINHO – De cabeça, já disse…

NUNINHA – Deixa-me correr-te a mão no braço, fica macio.

CHIQUINHO – Descarada. Que te disse o rapaz?

NUNINHA – Disse-me que os meus olhos são mais escuros que a noite, mas que eu sou a sua aurora.

CHIQUINHO – E que lhe respondeste?

NUNINHA – Disse mais que só agora, depois de me ver, compreendeu que o seu destino se fixou.

CHIQUINHO – E tu, é claro, acreditaste nas suas chaleirices.

NUNINHA – Não sei… ele fala tão doce.

CHIQUINHO – Está muito bem. Não quero mais nada contigo. Amanhã dás-me a minha mascote e o meu retrato. Entendido?

NUNINHA – Chiquinho!

CHIQUINHO – Chaleira!

NUNINHA – Só te quero a ti, Chiquinho.

ANDREZINHO – Camaradas, vamos todos acabar a noite na Pontinha, apanhando o fresco para melhorar a cabeça. (Para Zeca Araújo) Zeca Araújo, nós precisamos de você.

ZECA ARAÚJO – Pronto! Para ajudar a rapaziada estou sempre pronto…

ANDREZINHO – Magnífico! Pensamos maduramente quem havíamos de encarregar do que o grupo tem em vista, e concluímos que você é o homem que nos serve.

ZECA ARAÚJO – Se não é para matar nem roubar, contem comigo... Matar não é para mim. Roubar, não falemos. Aqui onde me vêem, nunca fiquei com cinco réis de ninguém, palavra…

ANDREZINHO – Acreditamos piamente. Você escusa de dar palavra de honra. Você conhece mestre Ambrósio?

ZECA ARAÚJO – Se conheço? Bom velho… meio maluco, mas direito.

ANDREZINHO – E com os trabalhadores de terra e mar, quais são as suas relações?

ZECA ARAÚJO – Conheço bem todo o mundo…

ANDREZINHO – Pensamos em dar vida nova a uma associação operária que houve antigamente em São Vicente, organismo dos trabalhadores das companhias e dos vapores na baía. Você vai ser o nosso intermediário junto do povo. Precisamos de si para congregar as vontades de todos os trabalhadores.

ZECA ARAÚJO – Palavra bonita, congregar. O velho Cruz Silva gostava de palavras esquisitas.

NONÓ – Você é impossível com as suas divagações…

ANDREZINHO – Escute, Zeca, o caso é sério. O povo está a passar necessidade. Mais que necessidade, fome… Você vai ter dos trabalhadores…

ZECA ARAÚJO – Vou… Conheço todo o mundo.

ANDREZINHO – Você vai e diz: Venho em nome de uns rapazes que querem melhorar a vossa situação…

ZECA ARAÚJO – Palavra, moço, que me está a fazer lembrar Nhô Mané Ponteiro. Quando foi da greve de 912, eu trabalhava na Companhia Cory, era donkeyman.

NONÓ – Bem, mas não se trata agora de você ir desempenhar o papel de Nhô Mané Ponteiro...

ANDREZINHO – Zeca, você mesmo diz que tem lábia.

NONÓ – Não quer dizer que precisemos pôr em jogo habilidades e espertezas. O nosso intento é sério.

ANDREZINHO – Há dias esteve connosco mestre Ambrósio e contou-nos a miséria do povo. Ora, quanto a nós, a situação dos trabalhadores pode melhorar muito se eles se associarem. Falta-lhes apenas gente que os oriente. É o papel que queremos desempenhar. Já tiramos informações e ficamos a saber que houve uma associação operária, do tempo de Nhô Mané Ponteiro, que pouca vida teve.

HUMBERTO – Morreu com a greve. Governo mandou fechar.

ANDREZINHO – Sim, mas tem os seus estatutos devidamente aprovados. Trata-se de pôr novamente de pé o edifício…

ZECA ARAÚJO – Para isso contem comigo. Muito contente por vocês se lembrarem de que tenho algum préstimo. Estou às vossas ordens…

HUMBERTO – Diga uma coisa, Zeca: em quanto calcula você o número dos trabalhadores das companhias?

ZECA ARAÚJO (esteve um tempo a botar contas) – Número certo não tem. Vocês sabem que depende do movimento do porto, principalmente de carvão. Mas gente que viva somente de uns dias de trabalho que possa pegar nas companhias há para mais de mil.

ANDREZINHO – É uma força formidável!

HUMBERTO – Esta vendo, Zeca, esta gente toda unida, associada, pode conseguir muita coisa... Mas, resumindo, você vai ter do povo e mostrar-lhe as vantagens da nossa ideia. Escolha dois ou três representantes de cada companhia. Com esses delegados assentaremos tudo definitivamente.

X CENA

Numa palestra, todos vestidos com fato-macaco, contendo as iniciais bordado “A.O.M.” Na parede lê-se num dístico «Associação Operária Mindelense»

ANDREZINHO – Zeca Araújo foi perfeito. A Associação Operária Mindelense renasceu. Os delegados das companhias acudiram pressurosamente ao nosso apelo.

ZECA ARAÚJO – Confesso-vos que para conseguir meti coisas por minha conta e risco. Para maior facilidade, disse-lhes que é uma medida geral para todas as ilhas. Baixou lei da Praia determinando que todo o operário se unisse, pois o Governo quer entrar diretamente em contacto com as suas necessidades.

NONÓ – Você não devia ter mentido, Zeca. Nós lutamos só com a verdade…

ZECA ARAÚJO – Ora essa! Verdade ou mentira que foi ordem do Governo, não é juntar essa gente que vocês querem? Vê-se bem que vocês não têm prática da vida… no fim é o mesmo… e deixem-me dizer-vos que a minha ideia deu um resultado. Vocês sabem, nestas coisas o melhor é a gente meter o Governo. Ele é que manda…

ANDREZINHO – De acordo.

NONÓ – Mas a ideia é nossa… você precisava ter-lhes frisado que a mocidade das escolas não está divorciada da vida e tem a consciência dos seus deveres.

ZECA ARAÚJO – Deixa estar que também toquei esse disco. Eu disse-lhes: «Tem ai agora uns rapazes do liceu que pensam em vocês. Com eles é que devem falar. Governo encarregou-os de tratar deste assunto». Tanto que os delegados vieram ter com vocês…

ANDREZINHO – Não aceitamos os seus processos, Zeca. Bem, mas você conseguiu o que queríamos. Vai agora uma groguinha?

NONÓ – Titi não nega…

HUMBERTO – Vá lá, que você tem algumas qualidades…

ZECA ARAÚJO – É deveras… Agora titio quer a patrícia…

Recebe um cálice de grogue e bebe de um só gole.

ANDREZINHO – Bem meninos, nós estamos dinâmicos… conseguimos reunir os trabalhadores de São Vicente. Precisamos agora de qualquer atitude que mostre de forma concreta ao público a nossa inteira solidariedade com aqueles que de facto trabalham nesta terra.

NUNINHA (baixinho para Chiquinho) – Ah, home!

CHIQUINHO – Ainda me queres com este trajo de ganga?

NUNINHA – Tu és homem, Chiquinho. Ficas tão diferente desses rapazinhos luxentinhos…

CHIQUINHO – E se amanhã eu for operário numa terra grandona? Queres ser a operária da casa deste que te está a falar?

NUNINHA – Maluco! E se fosses? Operário é gente, Chiquinho… quero-te de qualquer maneira. Meu coração só por ti anda a viver…

CHIQUINHO – Então fica entendido: quando eu for operário numa cidade grande, tu serás a dona da casa de um trabalhador chamado… como se chama o teu operário, Nuninha?

NUNINHA – Não sei…

CHIQUINHO – Tens vergonha? Diz-me aqui ao ouvido. Qual é a primeira letra do seu nome?

NUNINHA – Mas tu não vais partir, não, Chiquinho? Se fores, leva-me contigo.

CHIQUINHO – Se eu for mandarei buscar-te…

NUNINHA – Para a tua casa de operário…

CHIQUINHO – Para a minha casa de operário…

Abraçam-se e beijam loucamente.

XI CENA

ZECA ARAÚJO, NHA CIDÁLIA, E OS CAMARADAS DO GRÉMIO em casa da Nha Cidália.

ZECA ARAÚJO – Rapaziadas, acabo de arrumar um emprego que não me permite continuar a colaborar com vocês. A cachupinha é sagrada, rapazes. O patrão disse-me logo: «Não posso tomar como empregado quem ande metido em brincadeiras de rapazes e fantasias de trabalhadores. Você já tem idade para ter juízo.»

NHA CIDÁLIA – Andrezinho, há uma carta para ti. Penso que veio de São Nicolau.

ANDREZINHO (abre a carta e lê silencioso) – A nossa esperança de uma federação do trabalho em todo o arquipélago está morto. (Expõe a carta) Carta de São Nicolau… José Lima está revoltado e desconsolado. A nossa sugestão, que ele perfilhou entusiasticamente, não encontrou eco na ilha. Das outras ilhas não recebemos respostas às circulares que expedimos para os sindicatos agrícolas.

NHA CIDÁLIA – Olha que eu sempre tive mau presságio sobre este vosso negócio. Já pensei até em esconder-vos esse fato-macaco que para muitos constitui provocação.

XII CENA

Conversando numa esquina

VELHA – Nunca vi esta terra assim, velho.

VELHO – É deveras. A criatura, durante o dia, olha para diante, olha para trás, e só vê a consolança da graça de Deus…

VELHA – Destino é coisa forte, compadre. Eu já tive dinheiro guardado no fundo da caixa.

VELHO – E eu enjeitava trabalho, porque não podia dar vencimento. Quando foi da greve de Nhô Mané Ponteiro, dei libras para aguentar o movimento…

VELHA – É tudo uma tristeza. Rapariguinhas estão todas a perder a cabeça por causa da miséria. Fina, por exemplo, está para parir…

VELHO – Quem é o pai?

VELHA – Dizem que é um rapaz da companhia de óleo…

VELHO – Talvez seja a sua felicidade…

VELHA – Pode ser que sim… quem sabe se não, velho?

VELHO – Você já falou com o rapaz? Se é dele, deve tomar o filho…

VELHA – Qual falar! Tenho-lhe é raiva. Ele fez isto comigo porque eu estou como estou, mas, se fosse antes, quando eu podia, não aconteceria o que aconteceu…

VELHO – Dinheiro é respeito.

VELHA – Bem dito, velho…

VELHO – Pobre é escarrador de todo o mundo…

VELHA – Se eu pudesse, botava o malandro no braço da justiça.

VELHO – Não sei por que Deus fez a pobreza…

VELHA – Destino, vocês não estão a ver?

VELHO – Agora é destino! Deus é que governa o destino.

VELHA – Pode ser que tenha um governo de riba de Deus… ninguém sabe…

VELHO – Cale a boca, filho de parida, você é capaz de ficar com a boca torta…

VELHA – O antigo dizia que os dentes da boca, filhos da mesma mãe, não são iguais.

VELHO – Mas todos são filhos…

VELHA – Você tem razão, velho. Por que será que uns comem e outros levam pescoçadas?

VELHO – É lei que vem do princípio do mundo.

VELHA – Quando Fina me confessou o que tinha, disse-me que queria perigar.

VELHO – Aborto é pecado…

VELHA – É isso mesmo… tirei-lhe a ideia da cabeça. Mais tem Deus para dar do que Diabo para levar…

VELHO – E depois, quem sabe? Pode vir um menino de capacidade. Você está a ver o que seria mais para diante um rapaz de cabeça clara na sua família? Você estará feliz… se eu tiver necessidade de qualquer governo irei lá, ou, por outra, eu não, que nessa altura já estarei semeado…

VELHA – Agora que você falou em morte, me lembrei: Você conhece Nha Noca, mulher do Fernando, aquele homem que os rapazes do liceu arranjou emprego como apontador no Ponta Cais?

VELHO – Conheço sim, senhora. É a mãe do parafuso. Aquele rapazinho magrinho que tem uma cabeça de louvar a Deus.

VELHA – Que tinha uma cabeça de louvar a Deus. Ele morreu.

VELHO – Que tristeza! Rapazinho educado.

VELHA – Morreu de fome e de doença. Já quase não tinha os pulmões. O médico tinha-lhe proibido de estudar. O tratamento dele era severo e caro. Exigia mudança de clima. Repouso absoluto. Alimentação fortificante. Injeções. Donde dinheiro para o tratamento? Foi muito triste o enterro dele. O dia nublado, cor de chumbo, destilava uma tristeza lenta para o coração da gente.

VELHO – É a vida, velha.

VELHA – É isso mesmo. Bem… Deus connosco.

VELHO – Vai na paz de Deus.

Cada um vai para um lado.

[1] – Eu quero morrer sonhando / À sombra dos olhos magoados / De uma pequena gentil / Do Grupo Perfumado… [grupo carnavalesco].

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Redação