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Júlio Andrade. “Cabo Verde não tem capacidade para fazer testes rápidos com fiabilidade grande”
Entrevista

Júlio Andrade. “Cabo Verde não tem capacidade para fazer testes rápidos com fiabilidade grande”

O Hospital Agostinho Neto pode ventilar até 15 doentes, mas o presidente do Conselho de Administração não pensa ter “mais do que 4 ou 5” de uma só vez para não estourar o serviço. Entrevista com Júlio Andrade, que recusa falhas na infecção de profissionais de saúde, diz-se aberto a um inquérito e garante que já puseram “uma pedra” no desentendimento com o director nacional de saúde. “As pessoas quando se sentem injustiçadas tendem a reagir”, atira.

Santiago Magazine – Um médico e um enfermeiro foram infectados por um paciente que ia ser evacuado para uma cirurgia em São Vicente quando testou positivo ao coronavírus e daí se descobriu que os profissionais de saúde que o trataram também estavam infectados. Como aconteceu?

Júlio Andrade – Não é bem assim. Já instalamos testes rápidos aqui no HAN portanto além do PCR que leva dois ou três dias, temos agora testes rápidos. Porque o PCR não nos permite actuar em tempo útil em termos de organização do hospital em termos de cirurgias, internamentos, Introduzimos os testes rápidos que, no entanto, não são fidedignos. Em termos de fiabilidade não é tão alta quanto o PCR. Significa que pode haver falsos positivos e falsos negativos, pois vai analisar anticorpos que o doente tem no sangue. Se já tiver contacto com coronavírus - e veja, há vários tipos de coronavírus - pode dar positivo mas temos que pedir PCR que vai detectar o coronavírus Covid-19. O teste rápido vai detectar se uma pessoa teve contacto com coronavírus, seja de qualquer tipo.

Nós já submetemos a testes rápidos todas as pessoas que trabalham no Hospital Agostinho Neto, para saber se tiveram algum contacto com coronavírus. Se o teste rápido der positivo para Imunoglobulina-M ou Imunoglobulina-G, IgM ou IGG, significa que já teve contacto com coronavírus, mas não diz que é o Covid-19, porque há outros coronavírus que circulam em cabo verde e no mundo, mas o que está a causar doenças neste momento é o covid-19. Quer isto dizer que se o teste rápido der positivo vai-se fazer o PCR que é específico para Covid-19.

O que estamos a fazer agora é todos os doentes antes de qualquer cirurgia, endoscopia ou entubação serem submetidos a testes rápidos de coronavírus. A mesma coisa com os profissionais de saúde que já fizeram testes, vai ser repetido, mas felizmente está tudo negativo. A nossa estratégia já está estabelecida e esses testes rápidos diminuem os riscos de contaminação de profissionais, aumenta a segurança. E vamos adquirir testes rápidos específicos para a Covid. É mais caro. Já temos equipamento e vamos adquirir esses testes rápidos para a Covid para garantir ainda mais segurança aqui no HAN.

Os testes rápidos a pacientes vão acontecer ou já estão a acontecer?

Desde segunda-feira que estamos a fazer isso.

E desde então descobriram casos de Covid-19 a pacientes antes das cirurgias?

Não, de Covid-19 não. Já descobrimos casos de doentes crónicos que fazem tratamento regular aqui no Hospital deram positivo para anticorpos para coronavírus, mas não quer dizer que se trata de Covid-19, isso o PCR dirá. Isso pode significar que essa pessoa adoeceu e já se curou sem sentir nenhuma sintomatologia. Este é que é o perigo. Neste momento, já fizemos testes rápidos para todos os doentes de diálise e nos trabalhadores da diálise, a todos os doentes em tratamento oncológico e estamos a generalizar para os trabalhadores os testes rápidos. Se o teste rápido der positivo, avançaremos para o PCR que leva dois a três dias. É isto que estamos a fazer e está a ajudar-nos muito. Se tivéssemos esses testes desde o início a situação seria completamente diferente.

Relativamente ao paciente que referimos no início, ele iria ser transferido para operação no Hospital Baptista de Sousa por causa de uma avaria num equipamento no bloco operatório do HAN.

De facto, temos um problema nos intensificadores de imagem. É tipo raios-X. Temos três desses equipamentos, mas desde Janeiro dois deles avariaram infelizmente, mas é bom referir que são equipamentos para ajudar em determinados tipos de cirurgia. Os nossos técnicos não conseguiram repará-los pelo que tínhamos de trazer engenheiros do estrangeiro para fazer a manutenção, só que como o país está ‘fechado’ não temos como. Portanto, um problema simples de manutenção que fazíamos com técnicos que vinham de fora não conseguimos desde Janeiro porque não há como virem. Assim que forem abertas as ligações aéreas trazemos os técnicos para consertar esses intensificadores de imagem. Antigamente fazia-se cirurgia sem intensificadores de imagem, mas as pessoas não querem correr riscos. E se em São Vicente está a funcionar podemos sempre recorrer aos seus serviços para fazer certas operações, portanto não é por falta de consumíveis ou outra coisa, é um equipamento específico que está avariado.

Muitos enfermeiros com seis, sete anos de serviço que estão na linha da frente no combate à Covid-19 ainda estão sem enquadramento, estando inclusive a auferir um salario (35 contos) muito inferior aos recém-contratados (88 contos) e que por inexperiência ficam praticamente a assistir, apesar de já serem do quadro.

Isso já é um problema mais da estrutura central do Ministério da Saúde. Já tinha dito isto várias vezes: enquanto não mudarmos os estatutos do HAN não podemos contratar nem ter quadros próprios de médicos, enfermeiros, etc. Só podemos ter quadro operacional, e mesmo quadros de apoio operacional quem recruta é o Ministério da Saúde, quer dizer a DGPOG do Ministério com a Direcção Nacional da Administração Pública. Por isso é que temos dificuldades mesmo com ajudantes de serviços gerais, que não podemos sequer lançar concurso para recrutar. Isso cria de facto constrangimentos. É preciso ver com o Ministério da Saúde para ver o que se passa.

Voltando aos testes. Falou da pouca fiabilidade dos testes rápidos e a verdade é que muitos países devolveram kits por baixa qualidade. Está a acontecer o mesmo em Cabo Verde?

Isto é complexo. Não sei se em Cabo Verde temos capacidade de fazer testes com fiabilidade muito grande. Não temos essa capacidade. Mas, de qualquer forma, acho que Cabo Verde está a adquirir testes em empresas em empresas minimamente idóneas, com grau de segurança muito grande, razão pela qual estes testes ficam caríssimos. Acho que o MS está a comprar através de empresas que dão garantias de qualidade, são idóneas, que sempre trabalharam com Cabo Verde. Mas pronto é um risco que às vezes corremos.

Esse risco de podermos adquirir testes de baixa qualidade estará a condicionar o número de infectados no país, sobretudo aqui na Praia?

Não. O problema que aconteceu em Espanha ou Itália é porque esses testes davam muitos falsos negativos. Ou seja, muitas pessoas estavam positivas e os testes davam negativo. Em Cabo Verde não temos esse problema, porque os nossos testes foram adquiridos na Alemanha através de uma empresa credenciada.

O Hospital Agostinho Neto está com capacidade neste momento para atender a um eventual surgimento de mais casos graves que necessitem de ventiladores?

Neste momento só temos um doente ventilado e vários ventiladores disponíveis e espero que não tenhamos muitos casos para ventilar.

Há quantos ventiladores?

Nós podemos ventilar até 15 doentes, mas 15 doentes seria uma catástrofe completa. Não pensamos ventilar mais do que 4/5 doentes de uma só vez. Temos pessoal preparado para fazer a ventilação, fizemos essa preparação e já fazemos ventilação desde há muitos anos. Temos anestesistas, pneumologistas, etc. que estão preparados para ventilação mecânica invasiva, não-invasiva. Portanto, estamos seguros, desde que não surjam números catastróficos temos capacidade de resposta.

Admite que tenha havido falhas nos protocolos de segurança sanitária nos casos da Trindade e de outros profissionais de saúde no HAN que contraíram Covid-19?

Não, nada disso. Vamos lá ver: tem noção de quantos mil profissionais de saúde em todo o mundo que já foram infectados?

Sim, sei, pergunto-lhe é no Hospital Agostinho Neto. Houve falhas?

Não. Olha, no mundo mais de 200 mil profissionais de saúde foram infectados. Só em Espanha 40 mil. Isso não é questão de falha de protocolo, é impossibilidade técnica de não ter infectados. Primeiro, pode-se infectar na comunidade, e depois as pessoas estão a trabalhar com doentes. E estes chegam muitas vezes sem máscaras, que lembre-se, não estava generalizada. Uma pessoa sem máscara pode contaminar outra ainda que esta tenha protecção. Por isso que desde o início qualquer pessoa com problemas respiratórios oferecíamos máscaras cirúrgicas para evitar contaminação do profissional. Mas não se trata de falha. As pessoas têm de perceber que na Trindade as pessoas não estão na prisão, os doentes estão livres, interagem entre si e com os trabalhadores. E Trindade tem capacidade de internamento de 40 doentes e desde o início aceleramos a compensação dos doentes e demos alta. Mantivemos ali os doentes que estavam muito descompensados e os que estavam internados por razões judiciais. E é bom referir que há vários doentes mentais que não têm onde ir, não têm família, estão ali porque Trindade virou a casa deles. São esses doentes que ficaram na Trindade.

 

Muitos fugiram e vagueiam nas ruas em interacção com as pessoas, logo, aumenta o perigo de contágio.

Sim, mas nós já estávamos cientes disso. Fizemos um plano de contingência, um plano de isolamento… o que aconteceu foi um profissional de saúde que apareceu com sintomas, fez teste, deu positivo e de imediato fizemos teste a toda a população no hospital da Trindade onde para nosso espanto encontramos todo esse número de infectados que estavam e continuam assintomáticos. E o vírus mesmo em pessoas que não têm sintomas contamina outras, daí não ser previsível. Não houve falha, falha é quando há descuido, ou seja se uma pessoa estiver com tosse durante uma semana não for isolada, não ser submetida a exame, essas coisas.

Se é assim tão natural, por que se falou na eventualidade da abertura de um inquérito?

Nós estamos livres para qualquer inquérito. Temos um plano bem elaborado. Por exemplo, os doentes que estão negativos estão isolados, os que estão positivos também isolados. Até os trabalhadores quiseram ficar na Trindade porque sabem que fizemos um bom trabalho. Foram eles que elaboraram o plano de contingência. Inclusive familiares de trabalhadores da Trindade, alguns que deram positivo, estão na Trindade, pois sabem que criamos as condições mínimas para funcionar na normalidade. Na próxima semana vamos convidar a comunicação social a visitar a Trindade para ver que o que estamos a falar é verdade, não temos nada a esconder.

Nesse caso foi desnecessária essa tensão patente entre a direcção do HAN e a Direcção Nacional da Saúde, pois não?

Sobre isso, nós já pusemos uma pedra em cima e não quero falar mais.

Como assim? Como chegaram a entendimento?

Neste momento, todos nós estamos numa situação de stress, Cabo Verde e o mundo. Todos nós precisamos de ter calma, ponderação… mas o ser humano às vezes reage, né. Às vezes, repito, as pessoas quando se sentem injustiçadas reagem, mas nós já ultrapassamos esta fase, estamos tranquilos. Muitas vezes as pessoas não têm noção do funcionamento do hospital. Começamos a funcionar às 5 horas para ir buscar cerca de 600 trabalhadores porque o transporte público não funciona – só para mobilizar isso é tremendo -, temos de ter a funcionar toda a logística desde roupa lavada, o serviço de urgência está a funcionar 100%, já recebemos mais de 100 doentes evacuados de fora durante esse período, a diálise, a oncologia, tudo está a funcionar na normalidade dando a assistência que já dávamos mais a questão da Covid-19. Tudo isso foi um stress que nos obriga a trabalhar mais de 12 a 14 horas por dia. Às vezes as pessoas sentem-se injustiçadas, reagem… mas, epá, da minha parte está encerrado esse assunto.

Quem se sentiu injustiçado e reagiu de forma inadequado?

(Pausa) Estou a dizer que estamos todos em situação de stress… (pausa) Temos que ultrapassar essa fase, o nosso foco tem de ser a luta contra a Covid-19.

Nesta luta contra a Covid-19, acredita que tem tudo sob controlo?

Quem é que controla o coronavírus? Se alguém disser que tem sob controlo o coronavírus está a ser um pouco infantil, ingénuo. Estamos a ver EUA, França. Espanha, Rússia, foram apanhados de surpresa e não conseguiram dar resposta… Os EUA chegaram a um ponto que nem conseguiam enterrar os seus mortos.

Estando a Praia numa curva ascendente e sem previsão de quando começar a achatar, este quarto Estado de Emergência de 13 dias decretado pelo presidente da República vai ajudar em alguma coisa?

Estou convencido que se generalizarmos o uso de máscaras e se houver um pouco de reforço da educação da população, mantendo as pessoas em casa, não teremos situações dramáticas. É impossível eliminar o vírus a 100%, a OMS já disse isso. Vamos ter de conviver com o vírus. O objectivo de plano de contingência também não é não ter casos ou ter zero casos. O que não poderá acontecer é que o número ultrapasse a capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde, porque tem de continuar a dar assistência à população que não tem Covid e à que tem. O SNS não pode entrar em ruptura como aconteceu em Espanha. Mas ter mil casos por dia já entraríamos em colapso total. Agora, ter dois casos, 5, 6, isso não vai desestruturar o SNS. Se protegermos a população na terceira idade corremos menos riscos.

E nos assintomáticos, sobretudo jovens, haverá sequelas pós-Covid?

Pode, pode, pode. Quer dizer, isso é uma incógnita, não se sabe ainda o que poderá acontecer com essas pessoas. Vamos ver dentro de um, dois anos quais são as consequências. Por exemplo, no caso do Sars-Cov (outro tipo de coronavírus) várias pessoas ficaram com fibrose pulmonar, doença pulmonar crónica. Mas ainda é muito cedo para tirar ilações.

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Redação