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Estórias e comportamentos dos Bichos - Capítulo sexto - Origem do nome camaleão - (Primeira parte)
Cultura

Estórias e comportamentos dos Bichos - Capítulo sexto - Origem do nome camaleão - (Primeira parte)

O Piolho saltou da cabeça do puto, caiu no meio da sala e estrondeou uma gargalheada. Os deputados ficaram todos apavorados. Deram, por sua vez, um estrepitoso berro, depois ajoelharam-se, elevaram o dedo polegar à testa e fizeram o sinal da cruz. Pensaram que fosse uma granada do tipo F1, pronta a detonar, que tinha sido arremessada por algum terrorista para o meio dos parlamentares. Havia razões mais do que óbvias para aquele tamanho pasmo. Numa das anteriores sessões parlamentares, não presidida pelo Leão, um deputado da situação e Líder Parlamentar da sua bancada, havia alertado para a eminência de um assalto ao Parlamento, perpetrado pela Oposição, de modo que, aquela exibição do deputado Piolho fez que todos pensassem que o dia «D» ou a hora «H» havia chegado. Aquela sessão Parlamentar foi de muito solavanco. As acusações ou insinuações proferidas pelo deputado e Líder Parlamentar do Partido que sustentava o Governo era demasiado grave. E para acalmar os ânimos, valeu a pronta intervenção do Presidente da Assembleia que, não obstante ser do mesmo Partido, pediu contenção ao deputado da situação e advertiu-o a moderar a linguagem, admoestando-lhe em como há limite para tudo, embora ter reconhecido em simultâneo a liberdade de opinião e de expressão como um direito plasmado na Constituição. Mas o deputado havia dito ainda mais. Que a Oposição estaria por detrás dos inúmeros raptos que atrás aludimos. Amainou um pouco o solavanco no salão do hemiciclo, mas a Oposição se posicionou a favor de apresentar uma queixa-crime contra o Líder Parlamente do Partido da situação.

Quem ficou toda escamada pela constante e gratuita menção do nome de sua filha foi a Mãe-de-Cabra. Ela não queria acreditar que a Zeza, sua mimada codezinha, ou alguma das suas vergônteas fosse capaz de praticar aquela ignominiosa e impúdica ação, tão vil quanto indecorosa. As suas cabritinhas não eram piratas nem ratoneiras, muito menos vagabundas ou caloteiras. Ela era uma Cabra pobre, mas sempre soube criar as suas proles com decência e confortamento que um pobre filho de Deus merece, sem falta de nada. Nem do pasto, nem de bons ensinamentos. Ensinou-as a respeitar o próximo e a amar a toda a gente como Deus ama seus filhos e Jesus Cristo amou os seus irmãos. Ela tinha uma forma de educar um tanto ou quanto rígida, muito peculiar, característica própria das pessoas do interior de Santiago, mais concretamente da localidade dos Picos São Salvador do Mundo, de onde veio morar para um dos arrabaldes da Cidade da Praia, depois de se casar com o seu bode. Infelizmente ficou viúva ainda antes de se abeirar dos 40, o que a forçou a exercer o papel de mãe e pai ao mesmo tempo. Uma das recomendações que fazia sempre às filhas e lhes exigia o religioso cumprimento era a de não aceitar nada de nenhum Bicho, sobretudo de um Bode, pior ainda daqueles que não conheciam, em troca de nada e em nenhuma situação ou circunstância. Ela tinha um chicote de vergalho de boi que o batizou com o nome de Coruja, para quando as filhas se portassem de forma desadequada, nas suas costas ficassem sulcados alguns vergões. Ela levantou-se e saiu em defesa da sua progénie.

– Basta de falar da minha filha. Vocês são intrujões, caguetes e caluniadores. As minhas filhas não fogem do carro porque alguma vez a minha Zeza não pagou ao condutor. Mentirosos, língua comprida são o que vocês são.

Do cimo da teia e com uma calmaria impressionante, andando-se na linha, a Aranha questionou:

– Então por que é que elas fogem quando vêm um carro a passar?

– Elas fogem porque têm medo do condutor – ripostou a Cabra-Mãe. – Têm medo do maldito chofer de carros, macaco, gatuno, ratoneiro e porco. As minhas filhas, também como tu, andam na linha. A educação que lhes transmiti não as deixa pisar o risco, muito menos sair da linha.

Os adjetivos proferidos pela Mãe-da-Cabra não caíram bem aos deputados Chico, Gato, Porco e Rato. Quiseram arranjar balbúrdia, mas olharam uns para os outros e acabaram-se por dissuadir. Refletiram, claro, monologaram interiormente. O deputado Chico desentesou o gigantesco rabo, deixou-o cair e fê-lo arrastar pelo chão, grasnando por fim:

– Eu?!… Não me meto nisso. Não sou macaco! E depois ela não está sem razão. O Rato de facto…!

O deputado Gato também, por sua vez, alisou o bigode e preparou-se para chamar a atenção da Mãe-da-Cabra. E queria fazê-lo num tom bastante austero, mas arrependeu-se e disse para os seus botões:

– Eu não sou ladrão. Sou um caçador de ladrões. De Ratos malvados. Por isso não me meto nessas questiúnculas. Se o Macaco e o Rato, que todos sabemos que não são sérios, se abdicam, quem sou eu, um pobre Gato sem botas, para vir resmungar?! Vou também calar a minha boquinha, deixo-a sossegadinha, só para comer os ratitos aldrabõezitos.

Vendo os deputados Chico e Gato a resignarem-se, o eleito dos Ratos disse, igualmente, num profundo solilóquio:

– Pra já, eu também não vou dizer népia. Se o Macaco que passa a vida a fugir da Polícia, do Cão e até dos vizinhos por causa das suas macaquices, não quer reclamar, por que tenho que ser eu a queixar-me?!

O deputado Porco empinou o focinho, olhou para todos os Bichos e deu um mergulho numa poça de água suja que havia num canto do quintal, enfestada de Mosquitos. A deputada Aranha voltou a questionar a Mãe-da-Cabra:

– E ela, entretanto, a tua Zezinha desceu do carro e pirou. Certo?

A Mãe-da-Cabra tuntunhiu um coxi e, um tanto quanto vilipendiada, deixando-se vislumbrar um inevitável e, igualmente, indisfarçável nervosismo. Sem jeito, engasgou-se com a saliva que a fez retumbar uns espirrozinhos cujo sonido foi escutado numa mescla duo som, isto é, o som do espirro e de alguns peidos capridos. O deputado Cão levantou a mão e corroborou, mesmo antes de receber a autorização:

– Eu estava lá. E chequei tudo. Ela fugiu por que é pirata. Para não pagar o frete. E agora, todas elas já têm medo dos condutores. Aldrabonas!

Com a testa franzida e molhada de suor, os olhos lacrimejados, a Mãe-da-Cabra contou uma condoída, mas verdadeira e trágica estória do que lhe havia acontecido, um certo dia, numa achada, quando acompanhava suas cabritinhas num doce e delicioso repasto. Foi uma tragédia que mais parecia comédia.

– Há uns meses atrás, estava eu com as minhas filhinhas a pastar, na paz, sossego e misericórdia de Deus. Enquanto elas se deliciavam o pasto, aproveitei para rezar umas preces e suplicar ao Nosso Senhor que lhes desse muita sorte e um bom marido quando fossem Cabras. Um marido que não lhes batesse, não lhes falasse alto, não bebesse, não fumasse, não arranjasse amantes nem fizesse filhos fora; não tivesse chulé nos pés nem cheirasse mal da boca. E que lhes compreendesse e perdoasse, se uma vez ou outra, caíssem na tentação, já que a carne é fraca, de beijarem um outro Bode, ou de passarem uma noite fora do seu curral. Porém, eis que chegou um táxi e parou ao lado delas. Um vagabundo que ocupava o banco do lado do despudorado condutor desceu, com uma cara de pouca vergonha, pior que políticos ou alguns juízes da nossa praça, dirigiu-se a uma das cabritinhas e mostrou-lhe uma mão cheia de milho. Uma cabritinha que nem tampouco era codé, mas que era um pouco mimada desde que nasceu da minha barriga, posso até assumir que às vezes era um coxi malcriada, esqueceu-se, ou simplesmente ignorou a deontologia que lhes inculquei, a regra de conduta que sempre lhes impus, para que não aceitassem nada de nenhuma criatura, foi ao encontro do intruso, já com a boquinha aberta para mandar o milho ao bandulho e ruminá-lo depois para mastigar. O larápio, sem uma pitada de vergonha naquela sua cara desbarbada, agarrou-a calmamente, entrou com ela no táxi e desapareceram num ápice. Enquanto assistia à cena, assustada, dizia somente:

– Solta a minha Cabrita, rapaz; solta a minha Cabrita.

Um intenso e fúnebre silêncio dominou o recinto e até os arredores. A dor da Mãe-da-Cabra, permitindo o pleonasmo, é por demais dolorosa. Até mesmo a Aranha chorou. E a Mãe da Cabra concluiu:

– Foi por isso que as outras irmãs ficaram carrofóbicas e fogem sempre que vêm um carro a aproximar.

O Piolho saltou da cabeça do puto, caiu no meio da sala e estrondeou uma gargalheada. Os deputados ficaram todos apavorados. Deram, por sua vez, um estrepitoso berro, depois ajoelharam-se, elevaram o dedo polegar à testa e fizeram o sinal da cruz. Pensaram que fosse uma granada do tipo F1, pronta a detonar, que tinha sido arremessada por algum terrorista para o meio dos parlamentares. Havia razões mais do que óbvias para aquele tamanho pasmo. Numa das anteriores sessões parlamentares, não presidida pelo Leão, um deputado da situação e Líder Parlamentar da sua bancada, havia alertado para a eminência de um assalto ao Parlamento, perpetrado pela Oposição, de modo que, aquela exibição do deputado Piolho fez que todos pensassem que o dia «D» ou a hora «H» havia chegado. Aquela sessão Parlamentar foi de muito solavanco. As acusações ou insinuações proferidas pelo deputado e Líder Parlamentar do Partido que sustentava o Governo era demasiado grave. E para acalmar os ânimos, valeu a pronta intervenção do Presidente da Assembleia que, não obstante ser do mesmo Partido, pediu contenção ao deputado da situação e advertiu-o a moderar a linguagem, admoestando-lhe em como há limite para tudo, embora ter reconhecido em simultâneo a liberdade de opinião e de expressão como um direito plasmado na Constituição. Mas o deputado havia dito ainda mais. Que a Oposição estaria por detrás dos inúmeros raptos que atrás aludimos. Amainou um pouco o solavanco no salão do hemiciclo, mas a Oposição se posicionou a favor de apresentar uma queixa-crime contra o Líder Parlamente do Partido da situação.

O Piolho virou-se para Mãe-da-Cabra e disse-lhe tão naturalmente como se o alarido que havia provocado no Parlamento não fosse nada:

– Toma cuidado para o taxista não lhe vir cobrar o frete por lhe ter transportado a filha – dá uma olhadela para a mesa que preside a sessão. – Lembrem-se de que o líder Parlamentar da Situação havia dito que a Oposição está por detrás de todos os raptos ocorridos. Sendo certo, os raptores estão bem guarnecidos, podem muito bem vir cobrar o frete à esta pobre mãe.

Aquela parva tolice do deputado Piolho não foi levada muito a sério. Pois, já havia acontecido tantas coisas naquele Parlamento… até um deputado havia esmurrado a boca de um outro colega sem que tivesse havido consequências. Por isso, aquele teatrinho do deputado Piolho não poderia suscitar qualquer catarse que pudesse moldar os sentimentos nefastos daquela corja inimiga dos Bichos. Consequentemente, o medo que aí se instalara foi ultrapassado porque os deputados aperceberam-se que aquele susto fora apenas uma encenação de um Piolho, tão palhaço quanto deputado. Mas quase todos ficaram tristes, pelo menos assim o pareciam, e alguns até choraram, porque o que se passou com a Mãe-da-Cabra era demasiado pesaroso. Só o deputado Peru é que não foi muito na cantiga da Cabra Mãe. Depois de uma histérica casquinada, ela abriu as suas mini asas de poucas penas, acompridou o rabo em forma de leque, alongou o enrugado pescoço e disse, como se fosse arrolado para depor na qualidade de testemunha acusatória numa audição em Direito Processual Penal:

– Eu também vinha no mesmo carro que o Cão. Primeiro foi a Vaca que desceu e não arranjou qualquer sarilho ou desacato. A Cabra, como não tinha dinheiro para pagar o frete, desceu e pôs-se em fuga, desceu ladeira abaixo e foi-se esconder entre as bananeiras do Ernesto Sanches, Djonzinho Borodjada ou Beja Alves e Chã de Oril. A dissertação da Mãe-da-Cabra, discursivamente ela é perfeita, mas substancialmente não tem conteúdo, ou seja, está despida da verdade. Não passa de um vaníloquo, de um embuste, uma falácia para ver se convence os mais incautos e granjear o nosso pesar.

A Mãe-da-Cabra levantou-se a uma velocidade que, certamente, suplantaria a de qualquer das rápidas e aladas flechas que Deus Apolo tivesse disparado durante os dez anos que esteve envolvido na guerra de Tróia. Mas antes de ela abrir a boca, o Leão deu-lhe um bigode. Ela ficou a resmungar por dentro, com os olhos inundados do lacrimoso e salobro líquido ocular. A Aranha levantou o dedo indicador da mão esquerda ao Leão, que, por sua vez, fechou os quatro dedos da mão direita, esticou o polegar e a autorizou a fazer o uso da palavra.

– A Mãe-da-Cabra disse que as suas filhas andam sempre na linha e que nunca pisam o risco. Então por que é que ainda tão jovens, já não têm os dentes na gengiva superior? Não foi por terem levadas tantas bofetadas e socos na boca?

Visivelmente nervosa, sem que, no entanto, fosse possível disfarçar o medo, a Mãe-da-Cabra olhou para o Leão como se quisesse pedir ajuda, mas que carecia da autorização do seu ego, do seu próprio orgulho ou feitio. Depois de observadas as regras constitucionais de um Estado de Direito Bichocrático, o Leão autorizou-a a responder conforme manda a lei que determina o direito de resposta e da defesa.

– Elas não têm dentes na parte superior da gengiva porque eu também não os tenho. Isto é da família. É genético. Está no nosso ADN.

– Tu já não os tem porque és velha – arguiu Aranha.

– Não é por eu ser velha – contrariou Mãe-da-Cabra. – Dizem que saímos aos nossos ancestrais. Que a tetravó da tetravó da minha tetravó, quando era cabrita, era gulosa e trincava rebuçados sem cuidado. Que os dentes dela ficaram cariados, o Bode, pai dela pagou a um dentista e lhe serrou os dentes.

– A mim, não me contaram assim – disse Barata. – Disseram-me que ficaram sem os dentes porque saíram da linha e pisaram o risco. Que andaram fora da linha, caíram e deram com a boca na pedra.

Inconformada, a Mãe-da-Cabra interferiu sem medo de represálias, de ser castigada ou até mesmo de ser comida pelo Leão naquele momento.

– Tens provas do que estás a insinuar, sua Barata vagabunda?

– Então não tenho?! – asseverou Barata. – Tu tens é bóka bedju [És teimosa, insistente, persistente].

O Galo que até ao momento tinha optado pelo silêncio, empoleirado no seu lugar, levantou a crista, bateu as asas, arremangou as duas pernas das calças, abanou o rabo e retrucou sem se infirmar as asserções precedentes:

– A verdade sobre a boca sem dentes das Cabras consiste no seguinte: Quando Cristo nasceu em Belém, uma estrela surgiu no além. Um Galo, o tetravô do tetravô do meu tetravô cantou e disse: Cristo já nasceeeeu! A Vaca perguntou: Ooonde? O Carneiro respondeu: Em Beléeem! A Cabra desmentiu: Mentiiiira! Deus deu-lhe um tabefe e os dentes caíram-lhe.

Depois desta explicação a Barata interferiu de novo:

– Tu esqueceste de que a história nos traz para o presente, qualquer passado. Senhora deputada? Afinal, há já dois mil e tal anos que ficaram quase todas desdentadas por andarem fora da linha! Estupora.

Após uma longa risada e chacotas pelo meio, Pardal não quis ficar sem mostrar o seu melodioso assobio. Pediu a palavra e expôs as verdades que sabia acerca da conflituosa viagem de Hiace entre Praia e o interior de Santiago:

– Eu também vinha naquele carro nesse dia. Estava sentado frente à frente com o Peru e ao lado da Aranha. A Cabrita fugiu porque não tinha dinheiro, senhora Mãe-da-Cabra.

A Mãe-da-Cabra sentiu-se coagida a calar-se. Pôs-se a olhar para o chão e ficou corada de vergonha. O deputado Peru retomou a sua elocução, interrompendo as continuadas gargalhadas que emergiam da sala sem ningen pa tadja [Sem ninguém para evitar].

– A Vaca desceu do carro em Chã de Níspre, em Renque Purga. Era a Vaca da Matilde da Veiga Monteiro, mais conhecida por Tela. Era uma Vaca calma, que não se preocupava com nada. Desceu do carro, dirigiu-se à cabine, meteu a mão no bolso, tirou umas moedas, contou-as e deu ao condutor o valor do frete. Foi andando com toda a calmaria, contornou-se à frente do Hiace em passos de Vaca, como se costuma dizer. O condutor fez umas quantas pedaladas no acelerador e deu umas tantas buzinadelas em sinal de que estava com pressa e que queria arrancar. Mas a Vaca, um tanto ou quanto desaforada, subiu os ombros e mugiu num monólogo quase impercetível: Passa por cima se está com pressa. Eu não estou com fadiga. Não te devo, para fugir de ti!

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