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O meu irmão Frederico Hopffer Almada/Nhonhô Hopffer
Colunista

O meu irmão Frederico Hopffer Almada/Nhonhô Hopffer

"... o Nhonhô sempre teve muito jeito para o desenho. Por isso, era solicitado pelas autoridades municipais encarregadas da gestão do cine-teatro da Assomada para re-desenhar os cartazes dos filmes que eram exibidos nessa mesma sala de espectáculos e que eram transportados por toda a Riba Somada e, até, Nhagar denominado Nhaga Baxo por nós todos de Riba Somada, que incluia a zona de Cutelo, onde passámos a morar depois de termos residido na zona do Portãozinho, perto dos cafezais de Lém Vieira, já que na boca dos assomadenses mais antigos o primeiro e verdadeiro nome da vila erigida no planalto do Mato Engenho fora Nhaga (Nhagar) em razão de a nascente povoação ter-se iniciado com a construção de alguns edifícios públicos, entre os quais uma prisão, na actual zona de Nhagar. O efeito pretendido com o calcorreamento das ruas com o cartaz de cinema redesenhado pelo Nhonhô era dar conhecimento a todos os interessados das tão esperadas estreias e matinés dos filmes, exibidos durante a semana entre as 18h00 e as 23h00 horas da noite, quando se apagava a luz eléctrica jorrada nas casas abastadas e mais remediadas e nos postes colocados nas ruas da vila, graças às habilidades de Nho Mário Patú, assim chamado devido a um defeito seu num dos pés que o fazia parecer um pé de pato e que o obrigava a usar uma bengala para se locomover..."

À memória do meu irmão Nhonhô
À memória dos meus pais António e Júlia, 
dos meus irmãos Rui, Orlando e Benny, 
dos meus sobrinhos Guey e Samory, das 
minhas avós Tuna e Suzana, das minhas tias 
Bia e  Nhara, do meu primo Pira, dos meus 
tios Henrique Furtado Semedo e  Mano Lopes,
do meu amigo Carlos Moreira chamado Carlos 
Nhonhô de Cabeça Carreira
À memória de Pedro Martins, Lineu Miranda, 
Carlos Tavares e dos  demais presos políticos 
do Tarrafal já falecidos
 
Às minhas sobrinhas Nhara Santiago e Frederika 
Santa Maria e à minha cunhada  Maísa Salazar
Ao meu irmão David e às minhas irmãs Mariazinha, 
Tuginha e Lurdes
Aos meus sobrinhos e sobrinhos-netos e às minhas 
sobrinhas e sobrinhas-netas
Aos meus cunhados e às minhas cunhadas, incluindo 
os maridos das minhas sobrinhas e as mulheres dos 
meus sobrinhos 

Em homenagem ao Centenário Natalício de Amílcar Cabral 
e ao Cinquentenário do 25 de Abril de 1974

                                                                                                  PARTE I

INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA DOS IRMÃOS VINDOS DE POMBAL PARA A VILA DA ASSOMADA

1. Desde que me lembre, o Nhonhô, o Benny e eu sempre fomos muito chegados e unidos. Isso deve-se talvez ao facto de nós os três sermos os filhos mais novos dos nossos pais. Isso determinou que crescêssemos juntos, fazendo o Nhonhô o papel de irmão mais velho com direito a repreender-nos, ao Benny e a mim, e a dar-nos esporádicas caqueradas. Por sua vez, o Nhonhô era sujeito às repreensões e eventuais caqueradas do Lalam (Orlando), o irmão mais velho e um pouco distante de nós os dois mais pequenos e imediatamente anterior ao Nhonhô na linha ascendente e que habitualmente acompanhava o pai na sua gestão das nossas propriedades do Pombal. Os nossos dois outros irmãos mais velhos estavam ausentes, o Rui na cidade da Praia, antes de, em 1972, integrar a grande vaga da emigração caboverdiana para a cidade de Lisboa no Portugal continental e metropolitano de então, e o David no Seminário de São José, também localizado na cidade da Praia, e, depois de sair do Seminário, a trabalhar e a estudar no Liceu da mesma cidade-capital da provincia ultramarina portuguesa, antes de seguir, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, para os estudos universitários de Direito na cidade de Coimbra na então Metrópole colonial, de onde regressaria de férias em 1969 e definitivamente em 1973.

Na minha lembrança tudo isso teria ocorrido primeiramente na Vila da Assomada para onde a nossa família mudara, deixando o nosso amplo, seguro e aconchegante sobrado e as nossas propriedades de Pombal tinha eu quatro anos, o Benny seis anos, o Nhonhô nove anos e o Lalam (Orlando) onze anos. Apesar da diferença de dois anos de idade, eu e o Benny tivemos quase sempre o mesmo tamanho, pois que o Benny sempre foi um magricelas a quem todos chamavam Merinha. O Nhonhô também era relativamente magro, ao contrário do Orlando, que, no dizer do Henrique (Dick) Oliveira Barros, que o conheceu já jovem adulto em Coimbra, era um verdadeiro touro que infundia respeito pela sua envergadura. O Lalam (Orlando) nasceu depois das nossas três irmãs Mariazinha, Tuginha e Lurdes, que por sua vez seguiram-se ao Rui e ao David, tendo esses dois irmãos mais velhos sido precedidos cada um deles respectivamente por um irmão falecido em muito tenra idade. Enquanto que o Benny sempre foi traquinas e gozão, o Nhonhô distinguiu-se desde muito cedo por ser considerado um rapaz valente e, até, brigão, porque  não aceitava abusos de ninguém. 

2. Além disso, o Nhonhô sempre teve muito jeito para o desenho. Por isso, era solicitado pelas autoridades municipais encarregadas da gestão do cine-teatro  da Assomada para re-desenhar os cartazes dos filmes que eram exibidos nessa mesma sala de espectáculos e que eram transportados por toda a Riba Somada e, até, Nhagar denominado Nhaga Baxo por nós todos de Riba Somada, que incluia a zona de Cutelo, onde passámos a morar depois de termos residido na zona do Portãozinho, perto dos cafezais de Lém Vieira, já que na boca dos assomadenses mais antigos o primeiro e verdadeiro nome da vila erigida no planalto do Mato Engenho fora Nhaga (Nhagar) em razão de a nascente povoação ter-se iniciado com a construção de alguns edifícios públicos, entre os quais uma prisão, na actual zona de Nhagar. O efeito pretendido com o calcorreamento das ruas com o cartaz de cinema redesenhado pelo Nhonhô era dar conhecimento a todos os interessados das tão esperadas estreias e matinés dos filmes, exibidos durante a semana entre as 18h00 e as 23h00 horas da noite, quando se apagava a luz eléctrica jorrada nas casas abastadas e mais remediadas e nos postes colocados nas ruas da vila, graças às habilidades de Nho Mário Patú, assim chamado devido a um defeito seu num dos pés que o fazia parecer um pé de pato e que o obrigava a usar uma bengala para se locomover, sendo que, por isso, ele tinha os pés sempre descalços, apesar de ser um cotado e respeitado funcionário público. Mesmo assim, o nosso pai, um cinéfilo inveterado que, tal como o Sr. Dâmaso Enfermeiro também chamado Sr Damas da Dona Elisa, não faltava a nenhuma estreia no cinema local, não gostava que nós, os três filhos mais novos, fôssemos ao cinema, em razão das alegadas más influências que os filmes exibidos, habitualmente de aventuras e de guerra, podiam exercer sobre nós. Por isso, o Nhonhô, o Benny e eu esperávamos que o pai saísse de casa para ir ao cinema e depois de ter tomado lugar na parte do cinema reservada às pessoas consideradas como integrantes das elites locais e estava por isso guarnecida de cadeiras e apagadas as luzes do recinto para os devidos efeitos de projeccão do ansiado filme,  entrávamos no escuro espaço fechado na parte reservada aos pés-descalços e igualmente aos meninos, mesmo se filhos de gentes abastadas e remediadas, e chamada geral porque guarrnecida somente de bancos corridos.

O ambiente vivenciado no cinema e muito marcado por comentários, alertas, avisos, risos, gargalhadas, lamentações e, até, choros, lembrava o ambiente retratado no filme Cinema Paradiso que viria a ver muitos anos depois com o meu filho Z’hay numa vídeo-cassete alugada num dos muitos clubes de vídeo que então, nos anos oitenta e noventa do século passado, pululavam na cidade da Praia, era eu já um adulto regressado dos estudos universitários e morador no meu T3 do bairro da Terrra Branca com o meu filho Sven e a sua mãe Isabelle Clémence Andriamaheninarivo, minha companheira de muitos anos na Alemanha e em Cabo Verde e minha segunda mãe-de-filho. Atentos aos sinais de que o filme ia findar, saíamos da sala de cinema  a correr para casa, ainda a tempo de nos deitarmos e o pai nos encontrar supostamente adormecidos quando chegasse e controlasse se tudo estava em ordem connosco. 

O pai era também um frequentador assíduo do muito reservado clube da Vila da Assomada, o qual funcionava à noite no mesmo edifício do cinema onde funcionava o cinema da Vila do Planalto, aliás, ainda existente no centro histórico da actual Cidade da Assomada, por isso pomposamente denominado Cine-Clube da Assomada. No Cine-Clube podia-se jogar bilhar, ping pong e cartas, consumir refrigerantes, bebidas  alcoólicas, bolos e pastéis e ler o semanário provincial denominado O Arquipélago bem como revistas e jornais vindos do então chamado Portugal Continental com semanas e, até, meses, de atraso. O pai e os seus amigos proprietários agrícolas, comerciantes e funcionários públicos residentes na Vila da Assomada entretinham-se a ler os jornais e revistas e a jogar as cartas, enquanto nós, os filhos, já cescidinhos, jogávamos o ping pong, e os mais crescidos, já jovens adultos ou homens maduros, jogavam o bilhar. Mais tarde, o Cine-Clube mudou-se para uma casa vizinha servida exclusivamente para o efeito. Era também no Cine-Clube e depois na sua nova sede que eram organizadas as grandes festas do fim do ano reservadas a alguns poucos privilegiados integrantes das famílias das elites locais normalmente sócias do mesmo Cine-Clube.

Nessa altura, o Nhonhô fez desenhos inspirados em figuras típicas e marginais da Assomada e dos seus arredores e em cenas de batuco e de bailes tradicionais de ferro e gaita que tinham lugar em vários recantos mais populares da Vila, como a taberna do Djodje de Nha Donita,  durante as célebres feiras das quartas-feiras e dos sábados que traziam multidões à vila da Assomada e que eram marcados por brigas amiúde resolvidas a lanhos de navalha, como prova da máscula valentia dos intervenientes, comummente chamados  de badios brabos pelas gentes da vila da Assomada, muito ciosas das suas supostas urbanidade e civilidade.

Foi nessa altura que o Nhonhô também fez retratos a lápis de carvão de grande número dos sócios do Cine-Clube da Assomada, incluindo do Sr. Serra, o seu temido e distante presidente e morgado de má fama que chegava à tardinha ao clube sempre acompanhado da esposa, do filho Carlinhos e do enteado Cacá, todos impecavelmente vestidos e calçados com sapatos fechados e bem engraxados, ao contrário dos outros meninos que ou andavam descalços ou andavam calçados com as famosas e comuns sandálias de plástico, sendo os sapatos fechados reservados para as ocasiões muito festivas e solenes, como as cerimónias de baptizado, de crisma ou de casamento e as subsequentes festas. Eu proprio só passei a calçar-me regularmente porque uma minha professora da quarta classe da instrução primária mandou dizer aos meus pais que não me deixava entrar nas aulas se não fosse devidamente calçado.

O Carlinhos Serra passava o tempo confinado em casa alegadamente a usufruir dos brinquedos trazidos de Portugal continental onde ia regularmente de férias com os pais e o seu  irmão mais velho. Nunca ou muito raramente participava nos nossos jogos de futebol nas ruas da vila, sempre atentos aos polícias de serviço, e nas nossas brincadeiras de sukundida, sport-bandido, soldado-cabo-furriel, salta corda, mamãe e papai, etc, geralmente feitas à tarde e à noitinha depois de feitos os deveres escolares, os trabalhos de casa e os muitos mandados da nossas mães. Tudo isso mudaria com o decurso do tempo. Ocupadas e nacionalizadas as terras do pai, o Carlinhos tornar-se-ia um reputado mecânico casado com uma das filhas-de-fora do Nho Bebeto, um conhecido comerciante origário da ilha do Fogo, como, aliás, grande parte dos comerciantes da Assomada, que tinha a sua loja instalada dentro do recinto do mercado municipal da Assomada e o Cacá não regressaria da ilha de São Vicente onde, depois, foi fazer o serviço militar obrigatório, se integrou na sociedade mindelense  e constituiu família. 

Foi nessa época que o Nhonhô começou a desenhar e a escrever histórias em quadradinhos de cowboys e índios, muito apetecíveis na altura. Isso deve-se certamente ao facto de por esses tempos o Nhonhô receber do seu amigo Fausto,  então residente em Portugal Continental,  centenas de livros de quadradinhos (bandas desenhadas na linguagem actual) que devorávamos ainda com maior e mais inusitada voracidade que como líamos e consumíamos as fotonovelas da Corin Tellado e outras obras cor-de-rosa do mesmo teor que as nossas irmãs compravam ou traziam emprestadas das suas amigas para a nossa casa da Assomada. Com efeito, o Fausto mudara a sua residência juntamente com toda a família, incluindo a sua irmã Amália, minha professora da escola primária, para Portugal Continental em virtude de o seu pai, polícia de segurança pública, ter sido transferido para essas longínquas e míticas paragens então chamadas Metrópole.  

Toda essa ambiência, aliada ao facto de a nossa mãe ter sido uma leitora assídua de romances românticos e de aventuras amorosas, de o nosso irmão Rui ter sido um  leitor impenitente de romances policiais e de o nosso pai ter sido um leitor diário e atento da Bíblia Sagrada, de jornais e de outras publicações periódicas provinciais e metropolitanas, sobretudo as relacionadas com a agricultura, a sua área de actividade profissional, devem ter contribuido para a qualidade de leitor inveterado em que me fui tornando e hoje continuo a ter o prazer de ser. 
As habilidades artísticas do Nhonhô não se limitavam somente ao desenho. Lembro-me de nessa altura ele ter esculpido em pedra vermelha um busto do Rei Dom Carlos I de Portugal que o nosso pai se apressou em colocar sob a mesinha onde estava instalado o nosso grande aparelho de rádio, na altura considerado um autêntico móvel, para que todas as visitas pudessem admirar as qualidades artísticas do seu filho Nhonhô. É claro que, com os acontecimentos posteriores e a nossa acelerada consciencialização política anti-colonial, o mesmo busto teve o seu inevitável e irremediável sumiço, à semelhança, aliás, do busto do Infante Dom Henrique primeiramente colocado sobre um plinto nas vizinhanças da Igreja Paroquial de Nossa Senhora de Fátima na entada da Vila da Assomada pelos lados que vinham da zona da Achada Galego e , depois na Praça Grande em frente do imponente edifício da Câmara Municipal do Concelho de Santa Catarina. 

 

E DE REPENTE ECLODIU A REVOLUÇÃO DO 25 DE ABRIL DE 1974

3. E de repente eclodiu o 25 de Abril de 1974, considerado pelo Nhonhô numa entrevista à RTC (Radio-Televisão de Cabo Verde) sobre o seu percurso de vida como “uma autêntica revolucão”. E de facto foi a festa infinita que começou com a caça aos informadores da PIDE/DGS na cidade da Praia e na qual o Nhonhô e os seus amigos estudantes da Assomada residentes na cidade-capital da colónia/província ultramarina portuguesa participaram activamente, o lançamento de panfletos políticos na vila da Assomada dirigidos aos militares aquartelados no antigo edifício da SAGA e para o qual fui mobilizado pelo Betinho de Nho Bebeto (Alberto Lopes Barbosa) (sendo essa a primeira acção política, ademais clandestina, de toda a minha vida, depois muito marcada pela intrervenção política e cívica, se bem que em larga medida fora do quadro político-partidário), e, logo depois, com a libertação dos presos políticos do Tarrafal, prosseguindo com os frequentes comícios, reuniões e sessões de esclarecimento, os saraus culturais e as muitas e acaloradas discussões políticas nas quais nós, adolescentes, também nos envolvíamos entusiástica e freneticamente. Nessa altura, o Nhonhô, primeiramente, e, posteriormente, o Benny, depois de ambos terem concluido os estudos no Ciclo Preparatório da Assomada inaugurado em 1969 (diga-se que por forte pressão do nosso irmão David e de outros estudantes liceais e universitários oriundos do concelho de Santa Catarina), residiam na cidade da Praia para absorver os primeiros anos do Curso Geral dos Liceus, seguindo os passos da nossa irmã Lurdes e do nosso irmão Orlando.

Foi durante a sua estadia na cidade da Praia para a prossecução dos estudos liceais que o Nhonhô e o Benny devem ter tomado contacto com as células clandestinas do PAIGC. Foi nessa altura que o Nhonhô iniciou as suas actividades como cantor em tocatinas, serenatas e outros convívios e tertúlias de amigos, colegas e camaradas do Liceu e não só. As minhas irmãs Mariazinha, Tuginha e Lurdes, sendo que esta entretanto tinha deixado o liceu para se empregar como professora primária, tal como as outras duas irmãs mais velhas, que na altura residiam na cidade da Praia, devem também ter tomado contacto com as estruturas clandestinas do mesmo PAIGC, depois de terem sido frequentemente chamadas à sede da PIDE-DGS da Assomada para interrogatório por suspeita de actividades subversivas contra a nação, que era como eram denominadas as actividades clandestinas dos militantes da luta para a independência, acintosamente desqualificados e aterrorizados como turras e, por isso,  sempre sob a ameaça de serem encarcerados e aprisionados no famigerado campo da morte lenta do Tarrafal ou de serem deportados para Angola e confinados no campo de concentração de São Nicolau no deserto de Moçâmedes na foz do rio Cunene. No ano anterior ao 25 de Abril, isto é, em 1973, o David tinha regressado dos estudos universitários de Direito na prestigiada Universidade de Coimbra e aberto o seu escritório de advogado no platô da cidade da Praia e no qual a nossa irmã Lurdes se tornou funcionária. O David tinha jogado um importante papel como advogado de presos poliíticos e, depois, no processo de libertação dos presos políticos do Tarrafal, conjuntamente com os seus colegas advogados Felisberto Vieira Lopes e Arlindo Vicente Silva. Foi a libertação dos presos políticos do Tarrafal que me proporcionou a ocasião e a oportunidade de dar a minha primeira volta, por assim dizer, à ilha toda de Santiago, ademais sem a autorização e sem ser acompanhado pelo nosso pai, como fora da primeira vez que, muito cedo e no autocarro Albion do sr João de Fábrica, fora à cidade da Praia para ser vacinado no Hospital provincial e obter alguns documentos necessários para o meu ingresso no Ciclo Preparatório da Assomada.

Com efeito, capitaneados por Toco Tavares, um ex-preso político da Cadeia Civil da Praia e do Tarrafal, fomos para o Chão Bom, localidade tarrafalense onde estava localizado o famigerado campo de concentração-presídio político  e onde assistimos ao momento único da libertação dos presos políticos caboverdianos, entre os quais sobressaía nítido e agigantado o Pedro Martins, e dos presos políticos angolanos, onde se destacavam o branco angolano António Cardoso, o negro Mendes de Carvalho, depois celebrizado como Uanhenga Xito, e os irmãos Pinto de Andrade, cuja mãe era caboverdiana. Libertados os presos políticos e feito o comício apropriado para a ocasião na qual falaram o Pedro Martins, o mais jovem preso político do Tarrafal, o angolano António Cardoso, o Carlos Tavares, um antigo e muito barbudo preso político caboverdiano libertado, conjuntamente com Luís Fonseca e Jaime Schofield, logo depois do assassinato de Amílcar Cabral, permanecendo todavia encarcerado no Tarrafal o Lineu Miranda, então considerado mais velho e veterano, porque o mais antigo preso político caboverdiano. Depois do comício realizado no largo defronte do famigerado campo de concentração/presídio político do Chão Bom do Tarrafal, onde pela primeira vez ouvi gritar vivas ao PAIGC e à memória de Amilcar Cabral pela voz sonora e embargada de Pedro Martins, e, depois de darmos uma ruidosa volta à Vila de Mangue do Tarrafal, seguimos todos para a cidade da Praia, sempre festejados pelas numerosas multidões das localidades por onde passávamos, como a Calheta de São Miguel, a vila de Pedra Badejo, Milho Branco, São Domingos, São Filipe, Vila Nova, Fazenda e, finalmente, o platô da cidade da Praia. Aqui no platô da cidade da Praia assisti pela segunda vez  na minha vida a um comício político e no qual se proferiu publicamente e se deu vivas à liberdade, ao PAIGC e à memória da vida e da obra de Amílcar Cabral, confusamente misturados com vivas  à Junta de Salvação Nacional e ao General António Spínola, levados ao poder em Portugal Continental pelo golpe de estado militar do 25 de Abril de 1974 perpetrado pelo MFA (Movimento das Forças Armadas). Da Praia, seguimos para a Assomada, com paragens nas várias localidades por onde passávamos para que as respectivas populações pudessem cumprimentar e vitoriar os presos políticos libertados, na sua esmagadora maioria oriundos do concelho e da freguesia de Santa Catarina. As paragens, sobretudo aquela na localidade dos Órgãos, serviu também para ajustar contas com o padre Arlindo, um missionário metropolitano que se dizia ter sido informador da famigerada, odiada e agora extinta PIDE-DGS. Parece que a população dos Órgãos, muito conhecida pela sua extrema religiosidade católica, em especial aquela vizinha da igreja local e da residência do padre Arlindo, não gostou desse gesto de alguns integrantes mais velhos, afoitos e destemidos da comitiva dos presos políticos e veio armada com catanas, facas e pedras em socorro do padre Arlindo, pondo em sério risco a integridade física e a vida dos seus ajustadores de contas, incluindo do meu irmão Nhonhô,  considerados blasfemos porque assumidos agressores de um representante de Deus na Terra.

Ultrapassado o percalço, seguimos para a Vila de Assomada onde nos reunimos a uma multidão de pessoas em festa e delírio em frente da casa-vivenda do Sr Damas e da Dona Elisa, os pais do agora libertado ex-preso político Pedro Martins. Nessa noite, tomaram a palavra o Sr Damas bem como o próprio Pedro Martins e, finalmente, o Peta (Armando Araújo) que recitou um poema  clamando por sangue e vingança por todas as atrocidades cometidas pela PIDE-DGS e por todas as iniquidades devidas à opressiva dominacão colonial-fascista portuguesa. Nessa sequência, todas as atenções viraram-se para algumas pessoas presentes, mais ou menos discretamente, no meio da multidão sobre-excitada e imediatamente apontadas como suspeitas de terem sido informadoras da odiada  e extinta PIDE-DGS. Devidamente interpeladas e açoitadas as pessoas apontadas como tendo sido  galinhas da PIDE-DGS, as atenções concentraram-se na sede da PIDE-DGS domiciliada do outro lado da mesma rua numa casa vizinha da moradia do Sr Damas cujas vidraças foram totalmente estilhaçadas a pedrada. Depois, o grupo de jovens vingadores, encabeçados por um jovem adulto oriundo de Nhagar e acolitados por alguns de nós adolescentes, dirigiu-se para as casas de outros supostos informadores da PIDE-DGS, as quais foram igualmente cercadas e as vidraças das respectivas janelas devidamente estilhaçadas. A caminho foram abordadas, sempre de forma assaz violenta e agressiva, outras pessoas acusadas no momento, nem sempre com razão, de terem sido bufos da famigerada polícia política colonial-fascista portuguesa. 

4. O restante ano de 1974 foi de total emersão nas actividades da luta pela independência de Cabo Verde e em grande medida dirigidas contra os então denominados partidos fantoches, um assumidamente federalista e que era a UDC (União Democrática de Cabo Verde, dirigida pelo advogado João Monteiro, fundada a partir da Associação Democrática de Barlavento, implantada sobretudo nas ilhas do norte do arquipélago caboverdiano e conotada com alguns letrados e intelectuais claridosos e neo-claridosos, como Baltasar Lopes da Silva, Manuel Lopes e Henrique Teixeira de Sousa, e defensora das teses spinolistas de autonomia política e de federalismo no seio de uma suposta Comunidade Lusíada ou Luso-Africana), o outro, abertamente conotando-se  com a esquerda revolucionária radical e anti-soviética e que era a UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde, fundada em 1959, em Boston, nos EUA, por Aires Leitão da Graça e refundada em 1962 em Dacar, no Senegal, pelo seu irmão mais velho José André Leitão da Graça e conotada com uma extrema-esquerda maoísta alegadamente posicionada contra o imperialismo americano e euro-ocidental e contra o social-imperialismo soviético e totalmente avessa ao princípio cabraliano e paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde). Os simpatizantes dessas duas últimas organizacões político-partidárias e os seus parentes próximos no Liceu que passámos a frequentar eram muito causticados e fustigados por nós, adolescentes e jovens paigcistas, o mesmo tendo ocorrido com os parentes próximos dos seus aderentes e nossos colegas na Vila da Assomada.  

Tudo viria a culminar com a  total neutralização política da UPIC-UDC em Dezembro de 1974 mediante o encarceramento, ainda que  “em regime de recreio”, como vazado no livro Os Bastidores da Independência, de José Vicente Lopes, de alguns dos seus mais proeminentes militantes e simpatizantes no ex-campo de concentração do Tarrafal pelo MFA local e com a cumplicidade da Direcção do do ramo caboverdiano do PAIGC, sendo  alguns deles acusados de terem sido agentes e informadores pagos da PIDE-DGS e outros de activamente obstruirem o processo de descolonização então em curso. Dessa vaga de prisões salvou-se o líder da UPICV, porque em viagem pela Europa alegadamente para angariar fundos e aliados. A neutralização política da UDC e da UPICV foi facilkitado pelo conveniente amalgamamento sob o rótulo de partidos fantoches e spinolistas, tanto mais que, depois dos acontecimentos de 28 de Setembro de 1974 em Portugal e que lavaram à queda do General António de Spínola e à demissão do alto cargo de Presidente da República Portuguesa e da sua famigerada maioria silenciosa, grande parte dos militantes e simpatizantes passou a apoiar a UPICV que, assim,  transmutou-se num partido nominalmente d extrema esquerda nacionalista com militantes de extrema direita coloniasl-saudosista. Ademais, os militantes da UPICV/UDC foram acusados de prepararem atentados contra a vida e a integridade  física dos dirigentes do PAIGC presentes em Cabo Verde, como então denunciado mediante a difusão na Rádio da gravação de uma das suas reuniões alegadamente infiltradas por um agente do PAIGC e que deram azo e foram o pretexto para a realização de grandes e histéricas manifestações dos simpatizantes do PAIGC exigindo ao MFA local a prisão imediata dos alegados reaccionários spinolistas  e impenitentes e inveterados saudosistas do obsoleto e defunto regime colonial-fascista português. Foi também nessa altura, que os militares portugueses estacionados na ilha de Santiago sairam em massa em manifestação política, aliás,  muito aplaudida pelos militantes e simpatizantrtes do PAIGC, a exigir o seu rgresso imediato a Portugal. Nunca mais me esquecerei, assim como certamente o Nhonhô e outros presentes nessa ocasião,  dos slogans/gritos/clamores proferidos por esses miltares portugueses nas ruas da cidade da Praia: “Esta terra não é nossa! Queremos regressar *à nossa terra!”.

Estavam assim reunidas as condições para, na sequência dos Acordos de Alger nos quais Portugal aprazou para 10  de Setembro de 1974 o reconhecimento solene e de jure da  República da Guiné-Bissau, unilateralmente proclamada a 24 de Setembro de 1973, bem como o direito à autodeterminação e independência de Cabo Verde, tendo o PAIGC sido anteriormente reconhecido como o único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, tanto pela OUA (Organização da Unidade Africana), como pela ONU (Organização das Nacões Unidas), passo também que viria a ser dado por Portugal com o encetamento e a conclusão com o PAIGC dos Acordos de Lisboa que instituiram um Governo do Estado de Cabo Verde dirigido por um Alto-Comissário português nomeado pelo Presidente da República Portuguesa e constituido paritariamente por ministros portugueses indicados pelas autoridades portuguesas e ministros caboverdianos indicados pelo PAIGC, sendo todos nomeados pelo mesmo Presidente da República Portuguesa, com vista à  transição para a proclamação da sua independência política e da sua  soberania nacional e internacional aprazada para o dia 5 de Julho de 1975 por uma Assembleia Legislativa soberana e constituinte e eleita por sufrágio directo, secreto e universal por todos os caboverdianos, residentes no território e residentes no estrangeiro, incluindo os emigrantes, em listas de candidatos apresentados em cada círculo eleitoral por grupods de cidadãos, na prática totalmente controlados e monopolizados pelo PAIGC.

Deste modo, ficou instituído o regime de partido único socializante desde o mês de Dezembro de 1974, valendo as eleições legislativas de 30 de Junho de 1975 como autênticas consultas referendárias para ratificar os acontecimentos de Dezrembro de 1974, acima referidos, e, assim, plebiscitar i. a independência política e a soberania nacional e internacional de Cabo Verde; ii. O projecto paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde; iii. o regime de partido único socializante; iv. o triunvirato dirigente do novo país e constituído por Aristides Pereira; Pedro Pirres e Abílio Duarte. E com o regime de partido único veio a aparente paz político-social, intermitentemente  quebrada pelas dissensões  abertas e latentes entre as diversas correntes político-ideológicas presentes no ramo caboverdiano do PAIGC e nas lutas estudantis nos dois liceus de Cabo Verde e que viriam  a culminar com a auto-exlusão/aexpulsão no mês de Abril de 1979 da chamada corrente trotskista do PAIGC.

Com a implantação de facto do regime de partido único, protagonizada pelo MFA local e as diferentes correntes polúitico-ideológicas do ramo caboverdiano do PAIGC,  encerrou-se a prolongada  festa iniciada com o  25 de Abril de 1974 com os seus diferentes partidos políticos em luta aberta e pública pelos seus ideários e programas políticos e patentes em panfletos, comunicados, comícios e sssões de esclarecimento e manidfestações, a sua quase liberdade irrestrita da palavra dita, escrita e radiodifundida, concentrando-se doravante o nosso entusiasmo na construção de um novo país nas nossas ilhas,  isto é, de “uma outra terra dentro da terra”, bem  como no país africano continental irmão. E foram  realmente muito altas a euforia e as expectativsas postas pelo Nhonhô e por todos nós na concretização desse magno desiderato, necessariamente envolto num manto de muita e maravilhada utopia revolucionárisa que, aos   poucos s foi desvanecendo  ou salicerçada em bases mais realistas e pragmáticas. 

2. Nessa altura de grande entusiasmo com a causa da independência política de Cabo Verde no quadro catártico e emancipatório da unidade Guiné-Cabo Verde e da unidade africana, o Nhonhô desempenhou um importante papel na difusão da imagem de Amílcar Cabral e na disseminação dos slogans políticos do PAIGC que, com a técnica adequada própria para esse efeito, fazia ostentar em camisolas e t-shirts de propaganda do partido da unidade e luta e da bandeira ouro-rubra e verde da estrela negra, bem como nas paredes e nos muros das avenidas, das ruas, das ruelas, das  praças e dos largos da cidade da Praia, da vila da Assomada e de todas as demais vilas e localidades mais importantes da ilha de Santiago. Conhecidos ficaram também os seus desenhos, muito bem elaborados, de outras figuras míticas e heróis revolucionários, muito em voga na altura, como Marx, Engels, Lenine, Che Guevara, Patrice Lumumba, Kwame Nkrumah, Domingos Ramos ou Titina Silá.  

Foi nessa altura que o nosso irmão Orlando e o seu amigo de peito e companheiro das tertúlias musicais coimbrãs Carlos Moreira, mais conhecido e chamado por Carlos Nhonhô de Cabeça Carreira, regressaram dos seus estudos de regente agrícola, interrompendo-os, para darem o seu contributo na mobilização política para a luta para a independência política do nosso país. E foi deveras valioso o seu contributo, pois que eram  eles que animavam musicalmente os comícios, as sessões de esclarecimento e os saraus culturais na vila da Assomada e nas suas redondezas. Nessa altura, era imenso o nosso orgulho no nosso irmão Orlando, que também contava com a complacência do nosso pai que o tinha feito deixar o Liceu da Praia e o tinha enviado para encetar os estudos de regente agrícola em Coimbra, a conselho do nosso irmão David que já nesse tempo se encontrava a estudar na célebre cidade universitária portuguesa.

Nessa  altura o nosso pai estava totalmente comprometido e entusiasmado com as actividades da luta pela independência política do nosso país, ele que, segundo testemunhos oculares fidedignos, designadamente do nosso primo Bentura (Alexandre de Deus Monteiro), sempre fora um admirador de Amílcar Cabral, do seu incomum percurso e da sua luta, tendo sido por isso um assíduo ouvinte clandestino da Rádio Libertação do PAIGC, emitido a partir de Conacri, fora testemunha abonatória do Toco Tavares e dos seus companheiros no seu julgamento político na ilha de São Vicente e vira as suas filhas serem amiúde chamadas para interrogatórios na sede da PIDE/DGS sob a batuta do vermelhusco e famigerado Sr. Eusébio. 

Ademais, o Orlando trouxe na sua bagagem de Coimbra uma parte da rica e diversa biblioteca da estudantil república dos mil y onários que foi de imensa valia para os meus primeiros contactos e a minha iniciação na leitura de obras marxistas e revolucionárias, com destaque para o famoso livro O Processo Histórico, de Clemente Zamora, os livros sobre o materialismo histórico, de Marta Hanecker, as obras dos clássicos do marxismo, designadamente de Marx, Engels e Lenine, bem como obras de cultura geral, como alguns livros de Wilhem Reich, que depois aprofundei com a leitura e a devoração dos livros da biblioteca pessoal do meu irmão David. A biblioteca trazida de Coimbra pelo Orlando era da minha particular afeição e foi deixada em grande parte na nossa casa da Assomada quando fui continuar os estudos liceais na cidade da Praia e fazer os estudos  universitários em Leipzig, na Alemanha de Leste. Ela deve ter sido toda lida pelo nosso sobrinho Samory que, apesar de, em razão de vicissitudes e atribulações várias, não ter podido concluir os estudos liceais e, assim, encetar e concluir os estudos universitários, ostentava uma grande cultura geral que fazia questão de exibir e lhe valeu o epiteto de rapaz inteligente que todos lhe atribuiam. 


3.  Entretanto, poucas semanas depois do 25 de Abril de 1974, compareceu na nossa casa da Assomada um senhor que se dizia chamar Henrique Furtado Semedo. Reconhecido imediatamente pela nossa mãe que nele viu o seu primo embarcado há vários anos para São Tomé e Príncipe e/ou Angola, o nosso tio de há muito desaparecido esclareceu ter fugido para o Congo e, depois, para Dacar e Conacri para se juntar a Amílcar Cabral e aos combatentes do PAIGC. Daí o seu desaparecimento de todos os radares familiares islenhos, tendo ele sido todavia visita assídua aos filhos da tia Minda e do tio Nezinho, da Arribada, nossos parentes Furtado de há muito embarcadods para Dacar, onde,aliás, nasceu um dos filhos do tio Henrique. E agora, com a eclosão do 25 de Abril de 1974 regressava acompanhado de Zezé Manco (José  Galina Monteiro), um assomadense ex-preso político do Tarrafal com Toco Tavares, Emanuel Braga Tavares e José Maria (Zéqui) Querido, num pequeno contingente de combatentes do PAIGC para apalpar o terreno e participar na mobilização popular para a independência política de Cabo Verde. Foi visível e incomensurável a alegria dos primos Furtado reencontrados depois de tantos anos em que até se pensava que o tio Henrique Furtado Semedo já tinha falecido na Terra-Longe.

Esse mesmo contingente do PAIGC seria constituído por outros combatentes e militantes caboverdianos regressados da luta político-armada e da sua rectaguarda logística e diplomática nas duas Guinés e enviados para as respectivas ilhas para os fins de mobilização política acima referidos. A partir daí as vagas de combatentes, militantes, responsáveis e dirigentes políticos regressados da luta nas duas Guinés e nas diásporas iam assumindo contornos cada mais elevados na hierarquia partidária, como foram os casos sucessivamente de João Pereira Silva, Osvaldo Lopes da Silva, Silvino da Luz, Pedro Pires e, finalmente, Aristides Pereira. O interessante é que tanto nós, os filhos, como também o nosso pai, sempre participámos de forma entusiástica na recepcão apoteótica no aeroporto e nas ruas da cidade da Praia desses responsáveis e altos dirigentes do PAIGC, se bem que sempre situados em lugares diferentes dos desfiles, manifestações, comícios e saraus culturais. 
Curiosamernte, a recepção a Aristides Pereira no Aeroporto da cidade da Praia e o subsequente comício na Praça Grande do platô da mesma cidade foi a última oportunidade que tivemos de ver o nosso pai com e em vida. 

 

3.  Cena idêntica à passada com o tio Henrique Furtado Semedo ocorreu pouco tempo antes da festa da proclamação da independência política de Cabo Verde, tinham já passado alguns meses sobre a morte repentina do nosso pai António, mais conhecido por Totó de Suzana. Um belo dia, surgiu na nossa casa da Assomada, um homem alegre e muito janota carregando uma pasta diplomática e que se apresentou como o tio Mano Lópi (Lopes), irmão da nossa mãe Júlia Furtado Lopes, filho do nosso prematuramente falecido dono (avô) o papai David Lopes, mais conhecido por Dionísio,  e  criado pela nossa dona (avó) a mamãi Tuna Furtado Lopes. Como habitual nessas inusitadas ocasiões de quase ressurreição de uma pessoa tida por morta ou desaparecida ou, melhor ainda, de re-aparição de um filho da terra considerado pródigo,  houve uma choradeira geral, sobretudo por parte da nossa mãe Júlia e da nossa tia Zulmira, as duas  completamente emocionadas e comovidas  por poderem rever o irmão de pai de ambas e mais novo que a nossa mãe Júlia e a nossa tia Candinha, também presente e testemunha da feliz ocasião, e mais velho que a nossa tia Zulmira. A tia Candinha era uma prima mais velha da nossa mãe Júlia que, tal como o tio Mano e a tia Zulmira, foi também criada em Fonteana pela mamãi Tuna, irmã do pai da tia Candinha, embarcado no mesmo dia que o papai David para os Estados Unidos da América, de onde não mais regressou, ao contrário do seu cunhado que veio morrer muito jovem na sua terrra natal.  

O tio Mano dizia ter vindo expressamente de Angola para assistir a esse momento único e irrepetível na História das nossas vidas e das vidas de todos os caboverdianos residentes nas ilhas e emigrantes por todos os cantos do mundo e que seria a proclamação solene da independência política de Cabo Verde, previamente marcada para o dia 5 de Julho de 1975. Por issso e por outras coisas mais, o tio Mano concitou imediatamente a simpatia de todos nós, especialmente do Orlando e do Nhonhô, já com idade suficiente para comprenderem a transcendência do gesto do tio Mano e, ademais, para parodiarem à vontade com ele. Contrariamente a outros parentes próximos como o tio Braz e a família que tinham abandonado Angola em fuga dos violentos distúrbios que assolavam a cidade de Luanda e outras cidades angolanas e da guerra civil que entretanto eclodira ou estava prestes a eclodir, o tio Mano tinha vindo de livre vontade e com data marcada para o seu regresso a Angola. A partir daí foram muitos os regressos do tio Mano e da sua filha e nossa prima Mena, vindo o nosso tio Mano a casar-se com uma prima nossa, a tia Tomásia da Arribada, agora, depois do falecimento do tio Nezinho Pereira, residente na cidade da Praia, juntamente com a toda a família da tia Minda, filha do famoso padre Joaquim Furtado, irmão de mamãi Tuna e do pai da tia Candinha e que deixou descendência por todos os recantos e freguesias da ilha de Santiago.

O tio Mano tratou de levar a tia Tomásia, juntamente com o Quinzinho, o seu filho único, para o seu país adoptivo e que tanto lhe deu. Mais tarde e depois do meu regresso dos estudos universitários na Alemanha, quando fiz uma visita ao mítico país para uma gorada reunião da LEC (Liga dos Escritores dos Cinco) pude vê-los a todos e ao primo Quinzinho numa Angola mergulhada na guerra civil e na penúria de bens essenciais com recurso obrigatório de todos ao grande mercado a céu aberto do Roque Santeiro, que, depois de várias vezes visitado por mim na companhia ora do tio Mano, ora do Pira,  nosso primo pelo lado paterno dos Almada, comparei a um acampamento do exército hitita antes da invasão do antigo Egipto…Quando voltei pela segunda vez a Angola, agora para participar em Luanda,  em nome do INAC (Instituto Nacional da Cultura) e acompanhado do Danny Spínola, num Seminário Internacional sobre a Tutela dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos nos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) promovido pela OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), o tio Mano já não era vivo, tendo falecido em circunstâncias até então não esclarecidas, presumivelmente envenenado, segundo me contou na altura a prima Mena.

 

4. Depois de, por minha vez, eu ir frequentar o Liceu na cidade da Praia a partir de Setembro/Outubro de 1974, o Nhonhô, o Benny e eu morámos num quarto arrendado num prédio da actual rua 5 de Julho conhecido por Prédio da Dona Elvira, mãe do falecido Sr Filinto Anastácio Silva, e fazendo as nossas refeições numa casa vizinha também localizada na mesma rua, juntamente com os filhos do Sr Manelinho Pina e da Dona Palmira, também nossos vizinhos e companheiros do liceu, dos jogos de cartas e de monopoly e das discussões políticas e futebolísticas no Prédio da Dona Elvira. Foi nesse prédio que conhecemos o Antero Simas, filho mais velho do Sr Filinto e neto da Dona Elvira, e a Arminda Barros, sobrinha da Dona Elvira, ambos por ela criados e por conseguinte moradores do prédio, bem como o Jacob, o papagaio da Dona Elvira que, para além dos impropérios típicos dessas aves falantes, também se divertia devorando o forro das nossas maletas. Regressávamos à casa paterna para o carinho e o acoonchego do lar materno todos os meses e o  pai visitava-nos todas as semanas, até ao seu falecimento em 27 de Fevereiro de 1975.  A morte repentina do nosso pai fez vir de Portugal, para onde tinha regressado para retomar os estudos, um Orlando absolutamente desesperado, bem como o nosso irmão mais velho Rui, impecável no seu fato negro de luto. O Rui regressou pouco tempo depois a Portugal, enquanto que o Orlando permaneceu em Assomada com uma oinconsolável mãe Júlia. Era grande a esperança de todos nós, os filhos e filhas de António e Júlia, que o Orlando ficaria em Cabo Verde para tomar conta das nossas inúmeras propriedades no Pombal e não só. Infelizmente, não foi o que aconteceu, tendo o Orlando regressado  tempos depois a Portugal na companhia de uma namorada portuguesa que, morta de saudade do Orlando e também atingida pela morte de um familiar próximo, veio ter com ele a Cabo Verde e se tornou uma grande amiga da nossa família. 

 

                                               PARTE III

A MORTE DO NOSSO PAI, A NOSSA ESTADIA NA CIDADE DA PRAIA

E A NOSSA IDA PARA ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS NO ESTRANGEIRO

 

5. A morte do nosso pai marcou-nos  irremediavelmente e para todo o sempre. Por isso, no ano lectivo seguinte passámos os três irmãos a morar na casa da nossa irmã Mariazinha na rua dos Correios. Entretanto, o Nhonhô seguiria no ano lectivo de 1976 para a Roménia com uma bolsa de estudos que lhe permitiu concluir o ensino liceal na cidade de Timisoara, onde muito mais tarde viria a eclodir a primeira e decisiva revolta contra o regime dos Ceaucescu, e encetar o curso de Arquitectura na respectiva Faculdade da Universidade Ion Mincu, de Bucareste, curso esse que finalmente escolheu e a que pareceu sempre destinado desde a infância, depois de inicialmente ter optado no pedido de bolsa de estudos por Artes Plásticas. 

Depois de alguns dissabores no Liceu, o Benny entraria para as FARP (Forças Armadas Revoluicionárias do Povo) e, depois de cumprido o serviço militar obrigatório,  maioritariamente feito na ilha do Sal, empregar-se-ia como funcionário dos Registos e Notariado na ilha de São Vicente, onde conheceria a sua futura esposa Ivete e lhes nasceria a filha, Cathleen, seguindo todos, anos depois, para o Consulado de Cabo Verde em Roma, onde viria a nascer o filho Bennyzinho. Depois da sua transferência para Roma, o Benny era assiduamernte visitado pelo Nhonhô enquanto foi estudante universitário na Roménia. 

Pelo meu lado, passei a morar na casa do meu irmão David, era ele ainda divorciado da sua primeira esposa Fátima Dupret e mãe dos seus dois primeiros filhos, Ana Cristina e Davidinho, antes de se casar com a sua segunda esposa Ana Maria e, em 1977, lhes ter nascido a filha Janira e, já comigo estudante universitário no estrangeiro, a filha Romina. Nessa altura, desenvolvi intensa actividade política e cultural no âmbito da Secção Liceal Domingos Ramos da JAAC-CV (Juventude Africana Amílcar Cabral-Cabo Verde), bem como da Associação dos Estudantes do Liceu Domingos Ramos, depois intempestivamente extinta em 1979 na sequência da auto-demissão/expulsão do ramo caboverdiano do PAIGC de alguns dirigentes e militantes conotados com a chamada fracção trotskista. 


6. Concluido o Curso Complementar dos Liceus obtive uma bolsa de estudos para frequentar estudos de Direito na Alemanha de Leste, oficialmente conhecida por RDA/República Democrática Alemã (ou DDR/Deutsche Demokratische Republik, na sigla e na denomição alemãs), onde recebi uma visita do Nhonhô e da sua namorada sudanesa Nagwa, depois de o ter visto pela última vez em Agosto de 1981, em Lisboa, onde fomos sempre acompanhados pelo nosso irmão Orlando e morámos os três na casa do nosso irmão Rui, em Linda-a-Velha, para onde o nosso irmão tinha mudado, indo de Coimbra. Depois de uma longa viagem de comboio começada na célebre Estação Central de Leipzig e que me fez atravessar parte da Alemanha de Leste, a Alemanha Ocidental, a França e a Espanha, entrei em Portugal pela localidade fronteiriça de Vilar Formoso a caminho de Coimbra, onde esperava encontrar o meu irmão Orlando, desde há muitos anos radicado nesssa cidade e morador da república estudantil dos mil y onários. Chegado a esse mítico e auto-gerido lar estudantil qual não foi a minha surpresa quando o único morador aí presente nessa altura, o Manuel Onofre, que depois viria a ser juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde, me informou com alguma consternação que o Orlando se tinha mudado para Lisboa, desconhecendo ele a sua actual morada na capital portuguesa.

De todo o modo, e de forma simpática, pôs as instalações dos mil y onários à minha disposição e indicou-me o nome do estudante de Direito Ilídio Cruz para me acompanhar e orientar durante a minha estadia nas minhas deambulações e nos meus contactos para um melhor conhecimento da cidade universitária tão conhecida e, até marcante, da nossa família. Permaneci em Coimbra por dois dias, um inteiro fim de semana se não me engano, e desconhecendo o endereço do meu irmão Orlando em Lisboa, mas tendo comigo o endereço do meu irmão Rui, de há muito radicado com a família na mesma cidade, por precaução e para evitar surpresas idênticas às vividas em Coimbra dirigi-me para a casa da família do nosso colega Tónio, também estudante na RDA, na cidade de Weimar, e uma pessoa muito amável, fiável e confiável,  cujo endereço da  família em Lisboa, na Praça de Espanha, eu trazia felizmente comigo.

Chegado a Lisboa, o Tónio levou-me de táxi à casa do meu irmão Rui, localizado no bairro de Algés. Cansado, fui muito bem recebido não só pelo meu irmão Rui, pela sua esposa Milú (Lurdes Spencer) e pelos seus dois filhos e meus sobrinhos, um do sexo feminino e mais velha e o outro  do sexo masculino e mais novo, mas também pela minha irmã Tuginha que, vindo de Bissau com uma bolsa médica, estava em busca de consulta e tratamento para um problema de olhos do seu filho mais novo Sedicoy. Foi deveras agradável esse meu reencontro com a Tuginha e o filho pequeno dela, depois de os ter visto pela última vez em Setembro de 1979, em Bissau,  quando, juntamente com o Rui Évora e o Afonso Semedo, passei em trânsito por essa cidade, na altura mergulhada numa grande penúria de bens alimentares  de primeira necessidade e visivelmente na expectativa de algo que iria brevemente explodir, para obter o visto na Embaixada da RDA na Guiné-Bissau, também com jurisdição sobre o território de  Cabo Verde, para poder seguir viagem e iniciar os meus estudos propedêuticos da língua alemã e os estudos universitários de Direito na cidade de Leipzig. Nesse mesmo dia, fui acordado a altas horas da noite por alguém e qual não foi a minha surpresa (mais uma!) quando me deparei não com um irmão, o esperado Orlando, mas com dois irmãos, o esperado Orlando e o absolutamente inesperado Nhonhô! Foi deveras comovente o nosso reencontro de irmãos e fizemos por passar juntos por excelentes e prazerosos momentos em companhia cada qual da sua miúda de circunstância, no meu caso e no caso do Nhonhô, da Guiné-Bissau, mesmo se vivendo ainda o rescaldo do golpe de Estado, dito reajustador, de Nino Vieira contra Luís Cabral, ocorrido a 14 de Novembro de 1990, pondo fim ao princípio cabraliano e paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde e ao titubeante e cada vez mais desacreditado processo de união orgânica entre as duas repúblicas irmãs independentes e soberanas.

No caso do Orlando, a namorada alemã-ocidental estava ausente no país natal, a Alemanha Federal.  Eu estava de passagem por Lisboa, tendo sido obrigado em razão do imprevisto encontro em Lisboa com os meus irmãos Nhonhô e Orlando a passar parte das férias de Verão do ano de 1981 na grande, luminosa e bela  cidade da beira-Tejo, até então desconhecida para mim, antes de seguir viagem para completar as mesmas férias de verão em Cabo Verde, onde ansiava por encontrar o meu filho primogénito Z’hay (Frederico José Correia Hopffer Cordeiro Almada, de seu nome completo), nascido em 1979 durante a minha ausência na Alemanha, a sua mãe e minha mãe-de-filho Venulda, a minha adorada mãe Júlia, os meus amados irmãos David e Benny, as minhas amadas irmãs Mariazinha e Lurdes, a minha prima-irmã Edna, a minha irmã de criação Veninha, os estimados sobrinhos e sobrinhas (filhos e filhas do David, da Mariazinha, da Lurdes e do Rui) e os demais parentes bem como os saudosos amigos que ficaram na terra-mãe. Encontrei a cidade da Praia e uma orgulhosa ilha de Santiago em plena euforia musical pela vibrante febre do funaná, cujas poderosas sonoridades propiciadas pelo génio musical de Catchás/Katxás (Carlos Alberto Martins) e pela mestria vocal e instrumental do conjunto Bulimundo já conhecia muito bem, em virtude de o nosso irmão David, um dos mais importantes promotores da Festa do V Aniversário da Independência Nacional de Cabo Verde e da correlativa ascensão ao estrelato musical do conjunto Bulimundo, ter-nos enviado, ao Nhonhô e a mim, a gravação do seu célebre espectáculo no Cineteatro Municipal da cidade da Praia  e que a partir daí era ouvida em todas as festas promovidas pelos estudantes  caboverdianos residentes nsa RDA (e suponho que também na Roménia) e tinha suscitado um geral entusiasmo nos estudantes caboverdianos e africanos nossos colegas e mesmo em outros estudantes estrangeiros em geral.

Nessa ocasião, o Benny veio expresssamente da cidade do Mindelo para passar a férias comigo. Doravante e a partir do reencontro com a Venulda, instalou-se irreversivelmente um dilema no meu coracão dilacerado que doravante se dividia por duas paixões igualmente repeitadas e amadas, uma o verdadeiro primeiro amor adolescentino e juvenil, a minha impetuosa, saudosa, resiliente e bela mãe-de-filho deixada e reencontrada em Cabo Verde, a outra, a minha doce, dedicada e igualmente bela companheira de Madagascar, deixada em lágrimas na amada e amputada cidade de Leipzig. Anos depois, seria o Nhonhô a desatar os nós, alertando-me primeiramente para certas situações menos próprias, se bem que esperadas, resolvendo-se os imbroglios e em seu devido tempo e cada um por sua vez, cada uma das vezes todavia sempre com imensa dor e a necessária dose de mágoa pelos dois amores inelutavelmente desfeitos e sempre com muita pena pelo desconsolo dos filhos tidos com as minhas duas outrora muito amadas mães-de-filho.  

De volta  de Cabo Verde, passei de novo por Lisboa para encetar a minha longa viagem de comboio de regresso a Leipzig, e atormentado e atanazado por esas duas saudades e duas paixões amorosas, ambas igualmente fortes, vibrantes e desejavelmente equitativas. Nessa altura, e com o Nhonhô já regressado à Roménia, encontrei o Orlando acompanhado  pela sua namorada alemã ocidental e doeu-me  muito deixá-los para trás,  sobretudo o Orlando que tanto teria a fazer em Cabo Verde, se se abalançasse a regressar para finalmente ajudar a nossa mãe e tomar conta das nosas propriedades do Pombal e não só.

Infelizmente, não foi o que aconteceu, tendo o Orlando regressado  tempos depois a Portugal na companhia de uma namorada portuguesa que, morta de saudade do Orlando e também atingida pela morte de um familiar próximo, veio ter com ele a Cabo Verde e se tornou uma grande amiga da nossa família. 

(...continua)

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