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Ativismo de Conveniência. No rescaldo das celebrações do 10 de junho em Cabo Verde
Colunista

Ativismo de Conveniência. No rescaldo das celebrações do 10 de junho em Cabo Verde

A mega-operação “comemoração do dia de Portugal a sul” foi preparada com largos meses de antecedência e divulgada nos media de forma pontualmente estratégica.

A ambiciosa dimensão do evento envolveu inúmeros intervenientes, uns de Portugal outros de Cabo Verde, uns com relevância mediática, outros com responsabilidades de estado, todos se mobilizaram em uníssono, para cumprir a operação engendrada por Marcelo e Fonseca e suas vastas equipas de influenciadores, oriundos dos mais diversos quadrantes da vida pública.

O sucesso da mega-celebração, repleta de atos simbólicos, exigiu um intenso e longo trabalho de campo, executado por um séquito de agentes que, aquém e além-mar, actuaram no sentido de recolher um vasto leque de informações – activo fundamental para a compreensão do tecido social, que terá norteado a seleção dos lugares mais propícios ao sereno acolhimento dos palcos das festividades, em pátria alheia! Assim, convictos da inexistência de vozes dissonantes, os guardiães do mega-evento avançaram com as decisões – Praia e Mindelo – foram eleitas porto(s) seguro(s) para assentar os arraiais do dia de Portugal.

O programa integral das festividades foi divulgado horas antes da sua concretização, minimizando assim a possibilidade de surgimento de qualquer ocorrência de última-hora, que pudesse melindrar ou manchar as imperiais celebrações!

Cabo Verde, parceiro oficial das festividades, fez-se representar pela sua figura de Estado maior – o Presidente da República, que acompanhou Marcelo em todas as iniciativas de celebração da efeméride que celebra “o culto da pátria”. Esta afirmação de Marcelo, proferida no seu discurso a par de outras mensagens, observações, arruadas e tantos outros trejeitos imperiais, típicos de um chefe de um estado ex-colonizador, atribuem um infeliz simbolismo à operação 10 de junho.

Os múltiplos eventos, que preencheram o programa das celebrações, em solo Cabo-verdiano, protagonizados pelos Srs. Presidentes e suas amplas comitivas, certamente ficarão inscritas na memória contemporânea, de ambos os países, como um dos mais deploráveis exercícios de humilhação do povo cabo-verdiano, na era pós-independência. Para esse deliberado ato de submissão contribuíram diversos factores, nomeadamente a cobertura mediática da mega-operação, que num registo saudosista, criou uma narrativa luso-tropicalista usando e abusando de estereótipos, expressões, gestos e atitudes, reportando, sem rigor histórico, a um tempo que não honra o livre e democrata cidadão português e não serve ao povo cabo-verdiano, que lutou árdua e penosamente pela conquista da independência do seu país.

Os tiques nacionalistas, os discursos repletos de expressões de duvidosa irmandade, como “territórios espirituais”, “povos irmãos”, “pátria de carácter universal”, “exaltação do povo e de Portugal” e tantas outras subtis formas de expressão verbal, proferidas pelo Presidente da República Portuguesa nos órgãos de comunicação social, atribuíram dimensão de estado ao exercício dessa humilhação.

Com desalento se observou o corridinho festivo dos governantes cabo-verdianos, alinhados e inspirados por uma celebração “portugalista” que, ao invés de lhes provocar profunda tristeza, pela pesada herança histórica que carrega, os encheu de alegria; a atitude pátria-paternalista protagonizada pelo PR de Portugal que, recorrendo a um registo pseudo-afetivo, foi cumprindo a agenda da exaltação do império(zinho); a condecoração dos ditos atores culturais, agentes ao serviço da consolidação da pátria linguística, projeto sobejamente apoiado por uma política europeia expansionista que, se serve da promoção da língua como estratégia de aproximação abusiva a outros territórios e domínios fora das suas fronteiras; a emissão televisão da pátria lusa, instalada na capital cabo-verdiana, repleta de clichês e narrativas que encheram de graça e saudosismo os famintos espectadores lusitanos.

Os discursos e as mensagens de estado, em linha com as orientações estratégicas da mega-operação, repletos de temas de penetração fácil na opinião pública, foram delineados com rigor mediático, mas sem qualquer exactidão factual, são disso exemplos: a facilitação de vistos, nem uma palavra sobre o incumprimento do acordo celebrado em 2012; no que concerne aos transportes aéreos, nem uma só referência à responsabilidade oportunista da TAP sobre os constrangimentos de que Soncente padece.

Findo este tempo de “festa”, repleto de boas intenções e serenas relações, por tudo aquilo que sucedeu e também por tudo o que não ocorreu, terá servido esta mega-celebração para colocar em evidência a pertinência das seguintes questões:

  • Porque razão esta operação comemorativa se estendeu a Mindelo, aquela que é muitas vezes indicada, pelas elites, como “a ilha mais portuguesa de Cabo Verde”?

  • Porque não se registou qualquer ação de contestação expressiva e suficientemente mediática, liderada pelos ativistas de serviço, a propósito do simbolismo devastador destas iniciativas comemorativas? Porque se confina essa oposição a uns parcos e pouco esclarecedores comentários nas redes sociais, numa espécie de ativismo frouxo e inexpressivo?

  • Tendo sido esta operação delineada com tantos meses de antecedência e anunciada em tempo oportuno nos media, porque não edificaram os agentes sociais qualquer iniciativa cívica de critica e esclarecimento, tanto na Praia como no Mindelo?

  • E aqueles motivados investigadores ativistas, sempre prontos a defender a “verdade do passado”, a identificar os fantasmas que pairam no subconsciente da “alma lusitana”, confinada a uma esclerosada elite das metrópoles mais a sul de Portugal… a esses não ouvimos uma única palavra de indignação!

  • Estará o silêncio dos ativistas comprometido com o poder corrompido?

  • Será o “ativismo de conveniência” uma profissão alimentada por subsídios, financiamentos e outras ajudas de custo, desempenhada por experts em identificar o momento certo para falar baixo ou recuar?

  • O que motiva o silêncio dos estudiosos do pós-colonialismo, perante a enormidade desta mega-operação?

Perante este quadro de cumplicidades estratégicas, é difícil distinguir quem mais mal faz às causas do povo – se os poderosos que detêm o capital, se os profissionais do ativismo feito à medida, fundado em falsas mensagens de esperança e de luta!

Mindelo, junho de 2019

Contos da Macaronésia

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Redação