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Praia Leaks – XIII. Por um Estado cumpridor de regras legais e éticas
Ponto de Vista

Praia Leaks – XIII. Por um Estado cumpridor de regras legais e éticas

Caro leitor, este texto pretende referenciar algumas realidades simples e fundamentais da nossa vida coletiva, numa perspetiva até histórica, traduzidas em “pequenos” pormenores legais e práticos de grande relevância e que ou bem sujeitam a todos por igual – se estamos num Estado de Direito e já nem falo de democrático -, ou então que sejam revogados.

Comecemos por lembrar que a pessoa ter uma matriz não leva a presumir nela o direito de propriedade. A matriz sempre foi um documento que sinaliza a posse da terra para efeitos de pagamento de impostos.

O mesmo terreno que está registado na conservatória em nome de alguém, que o comprou, deve estar descrito na matriz predial em seu nome para efeitos de ele pagar impostos.

Mas a matriz é só para isso! O que leva a presumir o direito é o registo predial na conservatória.

Existem, por exemplo, aqueles casos em que alguém chega e ocupa o terreno, ou seja, toma posse dele, sem mais burocracia. O ocupante vê o terreno abandonado, não sabe se ele pertence ou está registado em nome de certa pessoa, ocupa-o e vai matriciá-lo em seu nome só para oficializar a ocupação.

Como é evidente, se o proprietário – aquele que comprou ou herdou de quem comprou, ou adquiriu de algum outro modo legal como seja a doação ou a usucapião - deve pagar impostos ao Estado pela exploração da terra, o simples ocupante também deve pagá-los.

O Diploma Legislativo n.º 1544, de 12 de junho de 1963, que regulava a contribuição predial, dizia: “todo o possuidor, por qualquer título, de prédio ou prédios omissos na matriz é obrigado a solicitar a inscrição imediata (…)”.

O ocupante declara às finanças (agora é à Câmara Municipal e as regras são confusas, se é que existem), obtém matriz para a área ocupada – que pode ser para pastorícia, agricultura, de sequeiro ou regadio, por exemplo - e vai pagar impostos em conformidade com o valor fiscal do terreno.

É evidente que ter uma matriz é um sinal de posse, pois só um louco comunicaria ao fisco para efeitos de pagar impostos sobre um terreno que não quer explorar. Seria como aquele sujeito pouco dotado de inteligências, mas que, repentinamente rico e “chique”, encomendou duas piscinas para a sua casa, sendo uma com água para quem gostar de nadar e outra sem água, para quem não quiser nadar.

De todo o modo é sempre bom saber que matriz é matriz e posse é posse. A posse confere alguns direitos. Basta pensar que depois de eu possuir durante um ano e um dia, mesmo contra a vontade do dono, este perde a posse, embora não perca o seu direito de propriedade – e isso mesmo pode acontecer contra mim, que não sou proprietário, se um terceiro exercer posse por um ano e um dia contra minha vontade sobre o terreno que eu vinha possuindo.

Quer isso dizer que quem só tenha uma matriz, não sendo proprietário, não pode vender direito de propriedade. O que pode fazer é passar a sua exploração (a sua posse), simbolizada na matriz, ou não, para outra pessoa, que vai começar outra posse.

A simples posse do titular só da matriz pode ser objeto de herança, porém não se herda a propriedade, mas só a posse efeviva.

Por exemplo, se eu tenho uma hortinha vedada há dez anos, morro e o meu filho continua a cultivá-la, ele herda-me mas apenas nesse meu direito de possuir, isto é, ele não fica proprietário. É claro que se eu a tiver declarado para a matriz a situação ficará mais clara para ele, mas a posse é que realmente interessa e é diferente da matriz, que não passa dum documento para o fisco.

O Código Civil de 1857 dizia que se eu entrego uma coisa e recebo um preço estou a vender. Dizia: “O contrato de compra e venda é aquelle em que um dos contraentes se obriga a entregar certa cousa, e o outro se obriga a pagar por ela certo preço em dinheiro”.

O Código Civil atual (que é de 1968) diz que eu vendo é o direito e não a coisa em si: “Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito real, mediante um preço

Vem a dar no mesmo? Os doutrinadores discutem se a posse é um direito ou só a situação de facto de apoderar-se duma coisa. Mas para mim se eu matriciar um terreno cuja exploração só me dá despesa e chatice e aparecer alguém a dar um bom troco eu passo-lhe, preto no branco, tudo e ele vai desenrascar-se, porque o Fisco põe a matriz em seu nome e passa a cobrar-lhe impostos. Bom proveito!...

Mas o conservador sabe que não pode inscrever o direito de propriedade em nome de quem tenha apenas uma matriz.

A posse tem muita importância, especialmente quando associada a uma matriz. Toda a gente sabe que passado um certo número de anos posso invocar usucapião para me tornar dono, ou usufrutuário, ou superficiário, sem mesmo ter comprado o direito de propriedade, de usufruto ou de superfície.

Mas atenção, já disse em outro lugar e repito aqui, não só por ser de lei, mas porque de contrário desregula-se tudo:

Primeiro, a usucapião não é possível se o terreno for do Estado. O Estado permite-me largar umas cabras num descampado, eu pago impostos e até posso querer comprar uma área. Mas contra o Estado não é permitido usucapião e isso foi reafirmado em leis de 1997 e de 2007. Ponto final parágrafo!

Isso tinha muita lógica, até pela política prudente nessa matéria no tempo colonial acerca da área de terrenos a atribuir a uma pessoa, em função da própria natureza do solo.

Um Regulamento de lei de 1901 previa quatro formas de concessão de terrenos do Estado: venda, aforamento, arrendamento ou em regime de prazos da coroa. A venda apenas recaía sobre os “terrenos já cultivados e os próprios para construções civis”. Dizia ainda essa lei que “A superfície de cada lote não poderá exceder 50 hectares, quando a venda for resolvida pelo Governo (isto é, na Metrópole) e não excederá 5 hectares, quando for resolvida pelo governador”.

Já num outro capítulo foi dito que as concessões feitas pelo Governo não podiam exceder 2 hectares de terrenos na área das povoações e 5 hectares nos subúrbios das mesmas povoações; e que o governador só cedia um décimo dessas áreas. Isso era para esconjurar a especulação fundiária, estranguladora das urbanizações.

Também vimos que tudo isso era diariamente violado pelos “grandes” (latifundiários e morgados), com todas as cumplicidades locais, em grande promiscuidade entre os poderes e até corrupção da máquina administrativa, mas é sempre bom repetir.

As leis de 1901 foram de certo modo reconfirmadas num diploma legal estendido a Cabo Verde em 1969 (5 anos antes da Independência), o qual só foi revogado (sem, a meu ver, ser substituído por nada de útil), em 2007.

Estes apontamentos são importantes quando se lembra que em Cabo Verde um Decreto de 1 de agosto de 1981 previu a área urbana da Praia em zonas (Palmarejo Pequeno, Terra Branca, Achada Grande e outras), que seriam expropriadas progressivamente (com indemnização, claro!) na medida em que pertencessem a algum particular.

Esse diploma aguçou todos os apetites dos antigos donos, reais ou aparentes, da terra, tudo reforçado depois pela Lei da Reconciliação Nacional de 2005 prevendo (a meu ver irresponsavelmente e sem estudo prévio nenhum), a devolução das terras. Terras no fundo abandonadas por alturas da Independência ou muito antes disso e possuídas pelo Estado desde então, com políticas públicas (posse) sobre elas.

Deu-se, assim, sequência a um caos fundiário que, como veremos, começou logo em 1991.

Adiante:

Outro aspeto quanto à usucapião é que se o terreno estiver já inscrito na conservatória em nome de alguém eu só posso invocar usucapião por um processo em que o titular inscrito é ouvido. O cidadão tem de poder pôr a cabeça no travesseiro e dormir tranquilo sabendo que no dia seguinte não acordará com a notícia de o seu terreno (ou seja lá o que for dele) já estar também em nome de outra pessoa, em duplicação, que até já tratou dum projeto de arquitetura.

Dito isto, relato dois factos ocorridos em Achada Grande, contrariando essas regras, para se ver as consequências:

Em 1994 uma Advogada promoveu uma justificação notarial duma área no miolo do prédio 2.255 da Câmara Municipal, sem se ouvir esta e acabou por registar em nome do seu Cliente uma área declarada de 16,5 hectares – que, entretanto, medida no terreno tinha, na verdade, 49 hectares.

Uma justificação notarial ilegal não só pela não audição da Câmara Municipal, como porque promovida pelo método da certidão “negativa” absurda denunciado numa “carta aberta aos conservadores, aos notários e aos juízes”, que publiquei em 14 de maio de 2010, mas que infelizmente se continua a usar. Na quase totalidade dos casos, essa certidão negativa é uma falsidade porque o conservador que a emite não pode garantir que a área a justificar não esteja já inscrita no registo predial em nome de alguém.

Aproveito aqui para repetir algo que escrevi em 2010 e é cada dia mais atual: embora muito crítico da situação e de muitos desses profissionais, não gostaria de estar na pele de notários e conservadores sérios, sabendo que são uma das classes mais pressionadas – mesmo internamente! - para ilegalidades a favor de gente importante e se não se corrompem são postos no facebook e imobilizados numa prateleira.

Voltando à vaca fria: a área do 2.255 da Câmara Municipal ficou amputada de 49 hectares (quase 2 “Plateaus”), em termos de disponibilidade real, embora no registo tenha ocorrido uma duplicação.

Juridicamente o registo em nome da Câmara era prioritário e continuaria sempre prioritário. Mas em 2000, antes de abandonar o cargo, o edil Jacinto Santos, que estava bem informado de que a Câmara comprara o terreno em 1983, preferiu fazer uma permuta com o particular que justificou o direito ilegalmente, a quem cedeu vários terrenos infraestruturados, nomeadamente em Chã de Areia e de quem recebeu parte do que, sendo da própria Câmara, estava ilegalmente em nome do particular.

Os terrenos cedidos em permuta, sem nenhuma identificação, por ter sido um negócio feito à pressa, foram registados pelo conservador que parece não ter tido dúvida nenhuma em fazê-lo, apesar de se tratar de negócio claramente nulo nos termos do art. 280.º do Código Civil, por o seu objeto não ser determinável.

De tudo isso viria resultar um caos enorme, com vários embargos de obras do edil que se seguiria, pois era impossível saber se a obra era executada sobre um terreno cedido em permuta. Mas disso e da atitude dos tribunais se falará em outro lugar.

Quanto à atribuição à matriz dum valor que ela legalmente não tem, refira-se o caso duma escritura pública de 21 de janeiro de 2000, pela qual TECNICIL comprou em Achada Grande Trás, dentro do prédio 2.255 da Câmara Municipal, um terreno de 42,75 hectares (71 campos de futebol), a quem não era dono de nada e se limitou a ganhar os seis mil contos com uma matriz.

Celebrada pelo notário a escritura de venda, sem exigir qualquer prova do direito de propriedade por parte do vendedor, o conservador descreve o prédio e inscreve-o em propriedade perfeita em nome da TECNICIL.

Ou seja, o conservador violou o princípio consagrado segundo o qual não se regista definitivamente em nome do comprador o direito que o não esteja em nome do vendedor (hoje em dia nem a venda é possível).

Tecnicil retificou esses 42,75 hectares para 250 hectares, indo incluir nessa retificação a urbanização de “Marrocos”, já iniciada pela Câmara, como referido no capítulo anterior e comprou ainda, por 14.000 contos, cerca de 95 hectares a FS/NANÁ – dizendo-se expressamente, na escritura pública de 10 de abril de 2000, que se vendia do prédio 2.255 (que, já o sabemos, era e é da Câmara Municipal).

Em suma, TECNICIL tornou-se dono, por esse processo de ilegalidades, de toda a Achada Grande Trás, de cerca de 14 “Plateaus”.  

Constou-me por estes dias que a referência ao prédio camarário (n.º 2.255) na escritura pública de venda de FS/NANÁ a TECNICIL, de 10 de abril de 2000, poderá ter sido lapso e que Fernando Sousa teria efetivamente um prédio nessa zona.

Estranho (mas eventualmente sintomático) lapso, numa escritura assinada por todos os presentes, incluindo o Advogado Arnaldo Silva! Mas tentarei investigar isso, se puder, e pelo benefício da dúvida suspendo o pronunciamento sobre este ponto.

Por ora, apenas digo que tudo me parece muito estranho, até porque quando alguém invoca perante o Estado ou a sociedade o direito sobre um prédio de dimensões tão relevantes como as do em referência, múltiplas da área do centro histórico da Capital, a atitude correta é a de ser rigoroso e provar o seu direito. O silêncio, particular e público, nessas matérias, pode ser tático e perigoso.

Sobre os frutos urbanísticos da aquisição de TECNICIL para a capital e para a nossa felicidade coletiva, passados 20 anos, quem for a Achada Grande Trás retirará as suas conclusões. Pessoalmente sinto a sensação de algo que não sai da cepa torta - “ta kati-kati, ka ta kati”.

Sobre a sangria financeira ou fundiária provocada à Câmara Municipal, prometi falar e falarei.

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