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Praia Leaks – II. Capital Estrangulada
Ponto de Vista

Praia Leaks – II. Capital Estrangulada

A interatividade destas comunicações online leva-me a adiar o capítulo que seria o II, sobre a visita ao tempo colonial.

Agora irei direto ao corpo das denúncias e mais adiante cumprirei o prometido, para talvez vermos aí certa afinidade entre as causas das revoltas de rendeiros da ilha de Santiago nos sécs. XIX e XX e esta especulação fundiária urbana em que a revolta é do munícipe com dignidade.

Convido o leitor, sem mais delongas, a lançar um olhar para o mapa anexo, onde se vê o “Plateau” no seu cantinho, rodeado (afogado) por prédios rústicos com seus números de descrição (ver mapa).

Veremos que:

- A propriedade dos prédios 3.561, 3.562 e 5.210 (grande parte deste, que é da Câmara Municipal da Praia) não foi jamais adquirida pelo particular que deles se apoderou, Fernando Sousa;

- O prédio 18.220, da Câmara Municipal da Praia, nunca foi adquirido pela família Grepne, que dele se apoderou;

- Dentro do prédio n.º 2255, da Câmara Municipal da Praia, Tecnicil roubou mais de 340 hectares (13 “Plateaus”);

- O prédio 12.834, adquirido pelo Estdo em 1946 para o aeródromo, acabou por ser ocupado, nomedamente pela Tecnicil, em circunstância que referiremos.

Se se quiser, foram todos terrenos registados – não adquiridos - pelo mecanismo tradicional e fraudulento da retificação ampliadora dum registo inicial, invadindo prédios já antes registados em nome de terceiros (incluindo da Câmara Municipal da Praia).

Tais invasões não têm poder legal para anular os direitos e registos existentes, que até hoje permanecem. Na verdade, a lei dá prioridade ao direito inscrito em primeiro lugar. Mas, na prática, quem tem dominado é o invasor, com grandes apoios – de juristas que foram membros do Governo, ex-procuradores da República, deputados, etc., usando toda a sua influência política.

O objetivo dos dois cidadãos sempre foi só a especulação fundiária. Já quanto à Tecnicil, trata-se dum caso complexo, que no fundo é muito mais que simples especulação, e sendo ela promotora de urbanizações, até hoje nunca apresentou uma urbanização minimamente condigna. Tecnicil vem vivendo de avultadíssimas indemnizações e compensações (com terrenos) extorquidas à Câmara Municipal da Praia, através de absurdas arbitragens levadas cabo por um grupo de juristas organizado para o efeito, e de outros meios.

Deixando para outros capítulos os casos de Grepne e Tecnicil, vejamos Fernando Sousa, analisando os prédios invasores e os invadidos:

Prédios 5.779 e 5.780 (eram de João de Deus Tavares Homem, falecido em 1950 e foram à praça, tendo sido arrematados por Fernando Sousa em janeiro de 1954): Fernando Sousa registou-os em seu nome, mas logo depois, sem ter arrematado nem comprado nada dos outros prédios, nem adquirido qualquer parcela anexa aos arrematados, retificou o registo alargando o 5.780 para cobrir os prédios 3.561, 3.562 e 5.210 (neste com exceção apenas de Achada de Santo António) e cobrir ainda parte do 18.218, pertencente à Câmara Municipal.

Só a partir de 1995, com cumplicidades diversas, começou o processo de invasão física, com vendas de parcelas de terreno nas áreas dos prédios invadidos, dadas como sendo do 5.780 (o falso, resultante da retificação fraudulenta).

Assim, cada parcela vendida ficou com duas inscrições, em duplicação – uma, legítima, em nome do titular inscrito do prédio invadido e outra posterior, em nome de quem comprou em Fernando Sousa.

Sobre como foi adquirida a matriz correspondente a essa fraude registal falaremos no próximo capítulo.

Prédio 3.561 (Aguada ou Pedregal): Desde 1907 e ainda hoje registado na Conservatória em nome de João de Deus Tavares Homem. Invadido fisicamente em 2002, pelo titular dos prédios 5.779 e 5.780 falsos, resultantes da retificação ilegal.

Prédio 3.562 (Actual “Cidadela” da Tecnicil, e mais a urbanização decente, logo a seguir, de Palmarejo Grande, da IFH, onde fica a Escola de hotelaria, Jean Piaget, etc.): Desde 1909 e ainda hoje registado na Conservatória em nome de Cândida Tavares Silva, prima de João de Deus, mas de 1995 em diante invadido nos termos atrás referidos pelo titular do 5.780, fazendo aí um autêntico regabofe de venda de parcelas a grosso e retalho.

Prédio 5.210 (designado Palmarejo Pequeno, confrontando sempre com a orla marítima; abrange, além de Palmarejo Pequeno, Achada de Santo António, Terra Branca e Tira Chapéu): Desde Nov. de 1974 e ainda hoje registado na Conservatória em nome da Câmara Municipal da Praia, que o urbanizou em parte. Invadido desde 1999 (com exceção de Achada de Santo António) pelo 5.780, os cúmplices de Fernando Sousa passaram a obrigar quem tivesse comprado na Câmara Municipal da Praia a ir comprar de novo “no Naná”.

Breves esclarecimentos:

Nos livros B das conservatórias (destinados à descrição dos prédios), anota-se quem é dono, isto é, quem está num livro G (estes são só para a propriedade perfeita) ou tem outro direito, no livro F (estes são para usufruto, mera posse, aforamento, etc.).

Se o dono do prédio o transmitir para outra pessoa ou se o tribunal declarar que outra é a proprietária, o conservador anota e inscreve o nome da pessoa para quem passou, cancelando o nome antecedente.

Assim, por exemplo, os n.º 5.779 e 5.780 estavam em nome de João de Deus e esse nome foi cancelado para passar a vigorar o nome de Fernando Sousa, porque foram arrematados.

Aqui a única coisa estranha é que estavam em nome de João de Deus no Livro F (mera posse) e foram postos no Livro G (propriedade perfeita) em nome de Fernando Sousa, quando é certo que quem arremata mera posse toma é mera posse (gato) e não propriedade perfeita (lebre).

Mas num outro capítulo veremos que nem por isso Fernando Sousa passou a ser proprietário, pois o registo dum direito só por si e sem suporte numa aquisição legal não dá direito nenhum.

Já quanto aos prédios 3.561, 3.562 e 5.210, o conservador não podia cancelar e não cancelou nada, pois a sentença nada dizia sobre eles.

A tomada de Palmarejo Pequeno, urbanizado pela Câmara Municipal com dinheiros públicos (de todos nós) e em que os cúmplices de Fernando Sousa afastaram bruscamente aquela entidade pública, é vitupério revoltante.

Quando, em 1890 a Grã Bretanha, potência mundial, deu a Portugal um ultimato para se retirar do território entre Angola Moçambique que já estava desenhado no “Mapa Cor-de-Rosa”, de nada valeu a Portugal invocar direitos históricos de ocupação.

Profunda tristeza abateu-se sobre a Nação, que pouco depois era cantada como valente e imortal, de egrégios avós, em palavras de incitamento à valentia (“contra os bretões, marchar, marchar!”). A expressão “bretões” viria a ser substuída por “canhões”, mas o hino manteve-se quase intocado, apesar de profundas mudanças políticas, dando ao país, simbolicamente, a profundidade das “brumas da memória”. Que beleza!

Aqui não foi precisa uma potência mundial para a submissão da capital: Bastou um antigo contratador de gente para trabalho quase escravo nas roças de Santomé, com apoio dum jurista pátrio laureado pela Democracia e com o status de ex-membro do Governo (Naná)!

Das brumas da memória só nos gritam os ecos de Kodê di Dóna, na voz profunda de Zeca de nha Reinalda, evocando papeladas “na scitorio di Fernandu Soza” e depois o sofrimento sofrido “na poron di Ana Mafalda ..., séti dia ku séti noti/, séti dia sen kebra djudjun/ ... e no cais do desamparo e da orfandade um menino gritando de dentro da Alma Crioula: “Oh Naná! Ô Nanáá! Ô Nanááá”!.

Ah Kodê! Ah pruféta! Saberias tu que em 1946 outro da tua estirpe humana chamado Osvaldo Alcântara se referira, no poema “Panfleto”, a “esse gado humano que chegou hoje no vapor da carreira de São Tomé”?

Mas não há que lamentar. Importa agir e para isso há que saber que direitos podem ainda ser exigidos, mesmo depois de em 2017 a Câmara Municipal da Praia ter comprado tudo o que ainda não estava vendido por Fernando Sousa, incluindo terrenos pertencentes à própria Câmara.

Veremos isso ....

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Redação