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Pátria soletrada à vista do Hermatão - V
Cultura

Pátria soletrada à vista do Hermatão - V

TXONBON

                                                               1.

Nasceste para nascer, filho das montanhas altaneiras e dos vales profundos (ó rubon grandi de todos os medos e todas as promessas), para me dares o ser e a sabedoria, sentado entre aqueles que consagraram a alma ao pronunciar do nome e a desenhar na poeira o que foi sonho de perenidade - um alto delírio de criança.

Não me pedes palavra nem pão, mas dou-te a água simples duma mão, fincado na secura que humildemente me desembarca nas tuas ruas, onde os nomes familiares brotam numa rememoração dolente: kunpi, maró, lilalu, teteia, furná, olina, pedro, ti djon, brentxa, ina, fifi, nhima, kaká, juditi, putxuka, jirmina, totinha, ngrásia, bandoti, pazinhu, txota, e essoutros, tantos, que não nomeio, mas evoco aqui à beira dos campos secos, para que o coração não se esqueça quantas as levadas que dessedentam, quais os néctares que embriagam, os cântaros que nunca secam e os aromas que não enganam.

Compreendo que me peçam os matizes dos horizontes largos, o tumulto das caravanas na sua febre do longe, mas que sei eu senão os passos que se perdem sobre a areia, o cieiro que sepulta casas e colinas, semeia a solidão pelos campos salitrados da beira-mar?

Eis o tempo dos náufragos. Se dilecto filho foste, homem perdido te tornaste. Mas promete: não pedirás perdão por te entregares à vida das palavras, nem falarás aos homens do poder do desespero. Se se espantam porque choras na hora da partida, é porque, sendo eles deste comum mundo natural, nem cuidam de saber que os teus pés precisam da potência da terra para testemunharem o poder da perseverança no avesso do paraíso.

Mas sabes tu, como eles, como terminam as vidas aqui às portas da promissão; e embora chegues no tempo do alarido, estás sozinho entre esses homens da comum ascendência. Eles que sabem pelas sombras nos terraços e pelo piar das corujas que a hora é de cerrar as portas e janelas e recitar o nome que traz toda a potência do infinito.

E uma pergunta, esta, roda perpétua na tua cabeça, como castigo da ousadia: quando te perdeste na lucidez que não liberta, mas lança-te à funda inquietação, mãe de todos os pavores?

Entendes agora como tudo é pouco para o grande enigma da vida, para a paciente escuta do absoluto, ou o percutir das perguntas que recrudescem o teu desespero de jamais aportares à praia da salvação, ao limiar dessa alegria que procuras aos tropeções pelos dias de nunca mais.

Pelas sendas obscurecidas, inocente, encontrarás a morada dos avós, as duas cruzes de madeira tosca já devoradas pelo tempo e pelo cieiro. Mas não chorarás porque nunca os deixaste ou esqueceste. Sempre entraste pela porta grande cruzando o batente ao som de da-m benson, à poalha peregrina dos serenos fins de dia. Por isso não entristeces, pois voltas ao lugar onde tudo recomeça: pó ao pó, pronuncias, e encaminhas-te, como só tu podes, direcção do persistente azul onde recordas mais uma vez o infante que foste, com a bilha ou o feno à cabeça, o fio e o crucifixo sobre o peito, o vento largo conduzindo-te desde o patamar da memória ao limiar da casa antiga.

Na solidão da noite ajoelhas aguardando a mão consoladora da escuridão. É outubro e hás-de subir sem tropeços os degraus da porta, em nome dos que partiram, inchallah.

                                                            2.

Regressas (ou apenas chegas?) e páras à porta da casa derruída, na rua ampla de ventos, na embocadura do mar, e sabes que estás vivo porque no último instante os faróis varreram a escuridão e uma mão te arrebatou para a berma da estrada, para a borda do precipício, o terreiro da salvação.

Estamos em novembro e evocas os mortos para exaltares a vida.

O ar está molhado como a tinta sobre o papel em que escreves. O dia ainda não tem sombras nem reflexos. Apenas o teu vulto se estende entre a vereda de ontem e a estrada de amanhã. Mas não penses que o passado te ensina: o passado nada sabe, e o futuro não pode ser pronunciado nesta rua de ventos desabridos, chão desta comum certeza: de cada vez que chegas, sabes que não existe terra prometida. Que a aventura das palavras governa a tua vida. Que elas te aproximam e afastam do calafrio das coisas concretas, do sopro que retiveste, ou dos atributos que vives para contar em vigília vertiginosa, sem mapa ou guia, porquanto todos os teus caminhos, ó precário peregrino demandando a pátria soletrada à vista do harmatão, são sendas para o infinito encontro ou a infinita perdição.

E porque amanhã é outro dia, as velhas casuarinas douram-se dos matizes duma outra vida, essa que perdura para além do elo que conduz ao naufrágio profetizado no obscuro panteão dos deuses desconhecidos.

                                                               3.

Faz-se a noite ainda mais noite e nenhuma outra porta te aguarda no sopé da escuridão. Não te queixas do frio, da sua setentrional ferocidade, porque um poço te espera aqui para te banhares da planta ao cocuruto; para que os olhos, agora habituados ao fulgor da geada e da neve, voltem a mergulhar nessa poeira que, a cada tarde, a mão do harmatão semeia como uma rude promessa, para que nunca o teu corpo se esqueça das mil agulhas que são a cama de quem fica.

Fizeste-te homem de palavras, mas esqueceste o rumor da oração nos pátios fuscos do entardecer. Ensina-me tu, ó inderrotado, a dizer outra vez o nome, para que, afogado entre rogos, penetre de novo nesta pobre morada de eleitos.

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Redação