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Nha Cidália: segunda parte
Cultura

Nha Cidália: segunda parte

IV CENA

NHA CIDÁLIA – São Vicente está uma saudade. Antigamente esta terra tinha movimento. Alzira ouviste falar da guerra de Transval? Oh, rapariga, as libras andavam atrás da gente. Não sei como se está vivendo nesta terra. Cá em casa, o que vale é a mesada que Eusébio manda, senão tínhamos de sair pedindo por caridade. Hoje nem um vestido aparece para a gente coser. Parece que todo o mundo anda nu.

ALZIRA – Se eu não fosse casada, saía para qualquer parte. Ia, por exemplo, para a Argentina, para donde Eusébio.

NHA CIDÁLIA – Casada? Podes dizer que és casada? Estás é amarrada a um pau bichado. O que é que o casamento te tem rendido?

ALZIRA – Nada absolutamente.

NHA CIDÁLIA – Estás a ver?! Nunca gostei da cara daquele ranhoso. Não sei porque não tratas do divórcio. Vai ter com advogado, já te tenho dito tantas e tantas vezes.

ALZIRA – Divórcio é coisa feia, mana; demais não sei direitamente onde Amâncio mora hoje.

NHA CIDÁLIA – Não tem importância. Dizem que estando o marido ausente não é preciso ele dar assinatura no divórcio. Ana de Brito ganhou o divórcio assim. Terias a tua liberdade. É triste ver uma pessoa sem uma esperança na vida. Ainda és nova, apesar de estares amarrada há tantos anos àquele ranhoso… (Andrezinho escreve, com uns óculos que lhe dão um ar de pessoa velha) Já te disse tantas e tantas vezes que faz mal estar a escrever depois da comida. Depois sabes que a tua vista não é muito católica.

ANDREZINHO – Você largue-me da mão, mamãe; você não pode deixar uma pessoa trabalhar com sossego?

NHA CIDÁLIA – Pensas que já não sei açoitar de lato, atrevido? Deixa estar que qualquer dia te ponho na ordem.

ALCIDES – Deixe-o, por favor, está a escrever para o jornal.

NHA CIDÁLIA – Ainda vocês estão com essa ideia do jornal? Para quê jornal, Chiquinho?

ALCIDES – Serve para muito. A gente defende os interesses da terra. É sempre uma força.

NHA CIDÁLIA – Agora é força! No tempo do Sr. Augusto Ferro não havia jornal, mas esta terra conseguia tudo o que queria. E ele não tinha mais que o 2º grau. Vocês aprendem hoje tanta coisa, e no fim ao cabo não servem para nada. Eles não falavam tanto, davam uma saltada em Lisboa e arranjavam as coisas lá na fonte.

CHIQUINHO – Havia dinheiro então. Hoje ninguém poderia fazer o mesmo.

NHA CIDÁLIA – Isso é verdade, muitas vezes penso que futuro vocês poderão ter.

ANDREZINHO – Chiquinho, larga as donas da mão e escreve o teu artigo. Lembra-te que precisamos reunir os originais para a tipografia.

CHIQUINHO – Eu publico este poema.

ANDREZINHO (pega no poema) – Isto é uma poesia feita a uma mulher de imaginação! Já vos disse que vocês precisam aterrar, dar um ambiente… estamos fartos de ouvir cantar a beleza abstrata nestes rochedos de seca e fome! Dou-vos material, vocês realizem!

NHA CIDÁLIA – Oh, rapazes, para quê tanto escrever? Não vale a pena, vocês não melhoram a situação desta terra. Daí a dez anos não haverá gente aqui.

ANDREZINHO – Mamãe, você está pior que Jeremias.

NHA CIDÁLIA – Só conheço um, Jeremias Profeta Lopes, moço de São Nicolau, que era um futra na guitarra. (Para Alzira) Lembras-te, Alzira?

HUMBERTO – Nha Cidália, Jeremias é um maluco que fala muito e não diz nada de jeito.

NHA CIDÁLIA – Mas é o que tu andas sempre a dizer, filho.

ANDREZINHO – Eu digo certas coisas, ou, por outra, não sou eu; apenas dou a reacção da minha inteligência perante o nosso caso. Sou uma retorta em que se dão determinadas reacções, com certos e determinados reagentes.

NHA CIDÁLIA – Não te entendo. Dizes coisas, parece que é alma que está a falar em ti.

ANDREZINHO – Nem você pode entender.

NHA CIDÁLIA – Isto agora é moda nova… a mãe não pode entender os filhos… no meu tempo não era assim…

ANDREZINHO – Escute, mamãe, é que nós, os novos, pertencemos a um mundo diferente. Você, a tia Alzira e Também Nuninha são de outro mundo.

NHA CIDÁLIA – Isto é muito engraçado. Eu não sabia que nós já tínhamos morrido.

ANDREZINHO – É isso mesmo! Vocês já morreram… mas deixe-me escrever, por favor.

NHA CIDÁLIA – E Eusébio, também morreu?

ANDREZINHO – Não, papai é um herói…

ZECA ARAÚJO (acaba de entrar) – Como é que as coisas estão a andar, meus rapazes?

ANDREZINHO – Olá, Zeca Araújo! Estás a angariar as assinaturas para a renovação da cidade? Temos que contar muito com Praia e Santo Antão. Para Santo Antão devemos escolher como representante Joca Pires, que completou o liceu no ano passado e agora é professor de posto no Paul. Ele estenderá a rede de assinaturas pela ilha toda.

ZECA ARAÚJO – Garanto que vos arranjo, da minha parte, mais de duzentas assinaturas.

ANDREZINHO – Não aspiramos a tanto. Umas cem chegariam…

ZECA ARAÚJO – Arranjo mais, moço, olá se arranjo! Vocês não me conhecem. Tive pouca escola, mas língua doce na boca como eu há poucos.

NONÓ – O que não impediu-lhe que desse com o negócio em pântanos.

ZECA ARAÚJO – Azares… qualquer está sujeito… negócio é fêmea, rapaz. Estive bem, vocês devem ter ouvido falar. Mas depois veio a crise e lambeu-me tudo. O que vale é que não dou parte de fraco. Haja alegria e tudo vai bem. Aqui onde me vêem para riba dos cinquenta, estou em tudo como se tivesse vinte.

NONÓ – Deve ser bazofaria.

ZECA ARAÚJO – Juro!

NONÓ – Palavra de honra?

ZECA ARAÚJO – Palavrinha escorrida. Tenho muita experiência no lombo.

HUMBERTO – Mas vamos aos pormenores. Você arranja as assinaturas. E a percentagem que leva?

ZECA ARAÚJO – Deixo isso na vossa consciência.

HUMBERTO – Mas diga sempre, homem.

ZECA ARAÚJO – Vocês são rapazes, dinheiro não têm. Eu levo pouco. Só preciso de trabalhar. Apesar de ter sido dos primeiros negociantes da terra, não enjeito trabalho que me dê dois vinténs.

HUMBERTO – Para terminar: dez por cento. Valeu?

ZECA ARAÚJO – Valeu. Não paga o castigo, mas vocês são bons rapazes. Agora uma patrícia para tio Zeca; vocês sabem, não há nada como um grogue para abrir as ideias. Quando bebo dois cacos, até me sinto orador.

ALCIDES – Lábia você tem.

ZECA ARAÚJO – Não é para me gabar, mas é deveras. Vocês não reparem eu pedir-vos uma patrícia. Podia ser vosso pai, mas façam de conta que sou um tio mais velho. Dêem-me a groguinha, rapazes. Depois titio faz vocês um brinde bonito pela felicidade do jornal. Então, entendido. Dez por cento. Entretém, e de mais a mais é sempre bom ajudar a rapaziada.

NONÓ – O homem chega amanhã.

ZECA ARAÚJO – O homem? Qual homem?

NONÓ – Deves ser a única pessoa que não sabe quem é: Sexa, rapaz…

ZECA ARAÚJO – Vens logo dizer homem… Não adivinho…

ANDREZINHO (conserta os óculos) – Estou a pensar em o grupo promover uma conferência com o Governador. Será a jornada para a mocidade. Precisamos ir em peso manifestar-lhe a nossa vontade de viver.

ALCIDES – Com que elementos contaríamos?

ANDREZINHO – Ora essa! Mas com a gente do liceu. É necessário arrancar esta malta da indiferença em que vivem por coisas que interessam profundamente ao seu destino.

NHA CIDÁLIA – Foi sempre assim, rapazes. Desde que me conheço, todos vêm com as melhores intenções de trabalhar… Vocês têm algum programa definido?

HUMBERTO – Todos têm dado a sua opinião sobre o porto.

CHIQUINHO – Há um que defende calorosamente o Plano João de Almeida. Mindelo transformava-se numa base naval, e de trânsito formidável. A Inglaterra convinha ter uma base amiga, numa posição estratégica admirável, para a sua política no Atlântico. E os ingleses são libras a correr.

ANDREZINHO – Não. O Plano João de Almeida peca por grandioso demais. Não temos dinheiro para tanto. Se a minha opinião fosse pedida, eu apresentaria bases mais modestas, mas mais viáveis. Supressão pura e simples das mil taxas e alcavalas que pesam sobre a navegação. Livre concorrência para o estabelecimento de depósitos de carvão e óleo. Repressão da mendicidade, afastando dos olhos dos estrangeiros a multidão que os assalta pedinchando, mal desembarcam. Para tanto, criavam-se receitas especiais à Câmara para albergues, recolhimentos e uma maternidade.

CHIQUINHO – São Vicente tem que fazer ao governador uma recepção que o impressionasse bem e lhe fizesse ver a importância capital do Porto Grande na vida económica e financeira do arquipélago. Por que é que a Praia consegue tudo? É que ela é mais diplomata. Faz a corte aos governadores. Lá Sexa sente-se verdadeiramente o chefe, a cabeça que manda e a mão que dispõe. É preciso receber Sexa condignamente.

HUMBERTO – Não esqueçam que ainda temos que discutir qual o discurso que convirá fazer ao governador.

ANDREZINHO – Deve ser um discurso recheado de factos, pondo todos os pingos nos ii.

ZECA ARAÚJO – Muita falta nos faz nesta conjuntura o Rebelo de Oliveira. Oh, rapazes, se ouvissem o discurso que ele fez quando Joaquim Nabuco passou em São Vicente… Nabuco ficou empolgado. Parecia hipnotizado pelo discurso.

NONÓ – É que Nabuco era surdo, homem…

ANDREZINHO – Vamos constituir uma comissão para organizar e executar o programa da recepção ao governador. A comissão estará em contacto com as forças vivas, a fim de se fixarem os pontos sobre que incidem as reclamações.

V CENA

Na sala de jantar de Nha Cidália.

ANDREZINHO – Nem com esporas esta malta se mexe.

NHA CIDÁLIA – Já te dizia. Não lhes interessa nada disto.

ZECA ARAÚJO – Se os convidássemos para um baile, não faltariam, garanto.

ANDREZINHO – No dia em que se verificar de vez que nesta terra não há energia para proclamarmos uma elementar vontade de viver, o que restará é uma obra de engenharia colossal: pôr uma bomba de dinamite na base da ilha e mandar isto para os ares!

NHA CIDÁLIA – Não te apoquentes, meu filho, não endireitas o mundo. Por causa destas e de outras é que não conseguiste ser nomeado professor de posto o ano passado.

ANDREZINHO – Mamãe, por amor de Deus, não fale nestas coisas, você não pode entender! Mamãe só pode compreender que uma pessoa trabalhe para um fim cuja utilidade imediata se veja. Você não tem culpa, assim é que a fizeram.

ALZIRA (costura em silêncio, um vestido para noiva. Tira os óculos e entrega Nha Cidália) – São muito fortes, faz dor de cabeça.

NHA CIDÁLIA – Não sei como há gente com coragem para casar num tempo destes… quando Alzira casou, o seu enxoval foi muito bonito. Amâncio mandou dinheiro para as despesas do casamento. Ela também, tinha com quê. Os tempos eram outros. (Olha pensativamente para Nuninha e ouve-se voz off dela) «Dezassete anos são já idade de casamento. Haverá alguém com coragem para casar num tempo de tão grande crise»?

VI CENA

Nuninha olha para Chiquinho com olhos muito profundos, sem dizer uma palavra, esconde a cabeça e fica a soluçar. Ouve-se uma voz imaginária do Chiquinho.

CHIQUINHO (VOZ OFF)«Meu velho Totone Menga Menga, será que tu me comunicaste o teu poder de amor imenso, só para eu querer Nuninha mais e mais? Amparo-lhe a pobre cabeça descaída. Corro-lhe os dedos pelo cabelo anelado. Sinto-me poeta de se afogar nas ondas dos teus cabelos».

NUNINHA – Chiquinho, lê para mim os poemas crioulos de Nhô Eugénio.

CHIQUINHO – Sol brandu ka ta kemâ

                       Péli di rostu di nha kretxeu

                         Sol brandu, el e sol di gostu

                        Pa ta lumia-nu pórta di Seu… [1]

NUNINHA – Outra vez, Chiquinho.

CHIQUINHO – Não; quero justamente que o sol da saudade queime a pele do rosto do meu bem.

NUNINHA – Maldoso! E se amanhã tu embarcares, Chiquinho?

CHIQUINHO – Ficarias com uma saudade.

NUNINHA – Já começo tendo, só de pensar nisso. Ouve, não quero que vocês falem tanto da crise, da necessidade de saírem para fora… fico com uma tristeza no coração.

CHIQUINHO – Tudo vai dar bem. Lembras-te da bênção daquela velha de cara má…

NUNINHA – Que sempre de tardinha aparece pedindo esmola…

CHIQUINHO – Ela faz-me lembrar as velhas comedoras de meninos da estória de Nha Rosa Calita. Embora interrompe o nosso encontro, mas quando lhe dou um tostão, sai abençoando-nos: (Ouve-se a voz da velha) «Nossenhor fará vocês um casal bom, com muitos filhos.»

NUNINHA (nos braços do Chiquinho) – Só quero estar toda no teu coração.

CHIQUINHO – Gostaria de entrar no teu, devassar-lhe todos os segredos.

NUNINHA No – meu coração não tem segredos… Só tu vives lá dentro, Chiquinho.

CHIQUINHO – A tua alma ficaria escura como a noite ao ver-me lá para essas terras longe. E o meu coração também.

VII CENA

CHIQUINHO – Camaradas, Parafuso já tem um ror de tempo sem aparecer no liceu. Ele faz-nos muita falta, principalmente no latim.

NONÓ – Ainda bem que lhe puseram o nome de Parafuso… Latim é madeira rija, mas ele parafusa nele de verdade. Ele domina tanto o latim, que lhe trata por «tu». Sempre que lhe chamo para me ensinar a tradução, ele diz-me: «Oh rapaz, larga-me da mão… Pega de cábula e traduz. Aquilo é só saber ler.»

Gargalhada geral.

VIII CENA

Numa casa feita de lata e madeiras velhas, Nha Noca à porta estendendo roupas, olha para Chiquinho admiravelmente.

CHIQUINHO – Dá licença? Aqui é que mora Manuel de Brito?

NHA NOCA – É, é aqui, moço… (Os olhos dela estão medentos) Desculpe, mas quem és tu?

CHIQUINHO – Sou camarada de Manuel. Somos condiscípulos no liceu.

NHA NOCA – Ah, tu és camarada de Manuel? Muito contente… (Para Chiquinho) Parafuso não está nada. Febres não querem largá-lo. Sempre a tremer. Sou a mãe de Parafuso… (Pega num banco) Sente-se, moço. Vou num instante chamá-lo.

CHIQUINHO – Não se incomode. Não precisa chamar Manuel cá fora, pode fazer-lhe mal. Quero só saber como ele está…

NHA NOCA – Parafuso, chame-lhe Parafuso. É o nome que todo o mundo lhe dá. Não me zango.

CHIQUINHO – Sim, mas estou bem, não o incomode…

NHA NOCA – Incomoda nada. Febre precisa ser venteada. Já disse àquele moço que faz mal estar sempre dobrado no conchego da dormida. Assim o corpo não esperta nunca. Pena que Fernando não esteja, tu sabes, hoje ele pegou serviço na Shell. Chegou uma Tanca para descarregar muito óleo.

CHIQUINHO – Não, deixe estar o Manuel. Vim só saber como ele passa. Desejo-lhe melhoras.

NHA NOCA – Então entre e vai lá ter com ele. Não repares a casa. É pena que o meu marido não esteja. Mas também, com esta carestia, todo o trabalho que aparecer é pegar nele pelo cabelo para não fugir. Mas tenho esperança que as coisas vão melhorar. Temos esperança no Parafuso.

CHIQUINHO – Com essa boa cabeça que Deus lhe deu, será de certeza o amparo da família.

NHA NOCA – Deus lhe oiça, meu filho. Ele há-de arranjar depressa um emprego. Febrona já baixou, mas agora é uma tossinha que não acaba. À noite o desgraçado quase não dorme. Tosse não deixa. Mas ele acha que já não tem nada. Que só está fraco. Deus queira que o vapor se aguente no porto por alguns dias. Trabalho de óleo é rápido. É só máquinas. Deus há-de ter compaixão dos seus filhos, porque, senão, será o que Ele quiser. Podes entrar, ele está lá dentro.

Chiquinho entra na barraca.

[1] – Sol brando não queima / A pele do rosto do meu bem / Sol brando, é o sol gostoso / Para nos alumiar a porta do Céu…

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Redação