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Chiquinho – Primeira parte
Cultura

Chiquinho – Primeira parte

Adaptação do romance homónimo,

do escritor cabo-verdiano

Baltasar Lopes da Silva

I CENA

Numa casa com mobília americana do século XIX, com gramofone e os quadros na parede. Chiquinho, Mamãe e Mamãe Velha acabam de jantar. Chiquinho depois do último bocado faz o pelo-sinal e abala-se para fora.

MAMÃE – A Virgem Santíssima há-de dar-te juízo e governo na cabeça! Pareces o cavalo de Nhô António Aninha, não para nunca na manjedoura…

MAMÃE VELHA – Deixa o menino!

MAMÃE – Não sei como deu o teu pai na cabeça a ideia de embarcar.

MAMÃE VELHA – Minha filha, a seca de novecentos e quinze… os sequeiros não deram nada e no regadio a água quase secou.

MAMÃE – É verdade. Ainda ouço a voz dele dizendo: "Maria, eu preciso dar uma ordem na vida. Este tempo não está capaz…" Perguntei-lhe: "Ordem de que maneira, criatura?" Ele respondeu-me: "Estou a pensar em embarcar para a América. Precisamos criar esses meninos. Hortas não estão a dar nada".

MAMÃE VELHA – António Manuel foi sempre um burro de carga. Antes de embarcar andava sempre para riba e para baixo, ora no trabalho das hortas, ora no tráfego da vida, conforme Deus fosse servido. Rico não era, porque não estava na linha do destino, mas, maior ainda que as riquezas do mundo são a consolança de sentir o coração limpo e a cabeça livre de pensamentos de maldade.

MAMÃE – Pensamentos de maldade não têm lugar no coração dele. António Manuel apenas teve aquela zaragata com Joca por causa de uma horta que o Joca licitava quando, muito mais tarde, combinaram partir a herança do meu pai. – Partilha dá sempre agravo – Mas quando foi da grande doença do meu marido, Joca levantou-se da Praia Branca e não largou a cabeceira do doente, dando ordens como o único homem da casa. A zanga acabou-se.

MAMÃE VELHA – Todo o mundo diz que ele é um chefe de família exemplar. Tanto que anos depois voltou com licença de seis meses. Foi bom porque veio trazer-te a Nanduca. Bem merecido. Nanduca veio ficar no lugar da Nina.

MAMÃE – É verdade. Coitadinha da Nina. Era a minha única filha. Morreu com três anos. Hoje eu teria quem me ajudasse no governo da casa...

NHÔ ROBERTO (entra de repente) – Boa tarde, Nha Júlia… boa tarde Maria. (As duas respondem “boa tarde” ao mesmo tempo) Como vai o nosso António Manuel? Sempre tem dado notícias?

MAMÃE – Em todas as cartas que recebemos a primeira mantenha é sempre para Nhô Roberto Tomásia

Maria mostra-lhe uma fotografia do marido.

NHÔ ROBERTO (com fotografia na mão) – António Manuel está um americano perfeito…

MAMÃE – Dizem que Tuta Melo está na ilha. Vou tirar um retrato à Nanduca para ele conhecer a sua codé.

MAMÃ VELHA – Nhô Roberto, mesmo muito longe, António Manuel preocupa com família. Na última carta que ele escreveu ele fez esta recomendação… (com uma carta na mão. Entra Chiquinho e cumprimenta Nhô Roberto) Chiquinho, lê tu, naquela parte de Pitra, tu que tens a vista mais clara.

CHIQUINHO – "Maria, diga Pitra para ter cuidado com as cabras para não estragar planta no Trás de Pico. No Daisy mando-vos umas pranchas para um portal novo. Se houver algum problema com a água da rega da Ribeira de S. João, se for preciso demanda, consultem para S. Vicente um lawyer bom, eu mando dinheiro para as despesas…"

NHÔ ROBERTO (abana a cabeça) – É a vida.

MAMÃE VELHA – Vocês dão-me licença, vou agradecer Nosso Senhor por me ter dado prazer de viver mais este dia.

MAMÃE – Eu também vou aproveitar para lavar a minha loiça e arrumar as coisas antes que Nha Rosa Calita chegue.

MAMÃE VELHA

posta-se diante dum pequeno altar armado ao canto da casa e faz as suas orações –

Pai-nosso que estais no Céu,

Santificado seja o Vosso nome

Venha a nós o Vosso reino

Seja feita a Vossa vontade

Assim na Terra como no Céu…

Ofereço este Pai-nosso pela segurança dos que andam sobre as águas do mar, a trabalhar no braço da Virgem Maria.

Pai-nosso que estais no Céu,

Santificado seja o Vosso nome

Venha a nós o Vosso reino

Seja feita a Vossa vontade

Assim na Terra como no Céu…

Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

Ofereço este Padre-nosso e esta Glória ao Pai pela alma do meu irmão, morto na flor de idade.

Enquanto Mamãe Velha reza, entra Nha Rosa Calita acompanhada de Tói Mulato. Tói vai reunir-se ao Chiquinho num cantinho, enquanto Nha Rosa Calita vai ajudar a Maria a lavar a loiça.

CHIQUINHO (para Tói) – Que lábia que Nha Rosa Calita tem! É um gosto ouvir-lhe referir aqueles casos todos, contos de meninos presos, a engordar, dentro de caixas grandes, por velhas feiticeiras; pastorinhos que se casavam com a filha do Rei, rapazotinhos sabidos que tinham enganado Aquele Homem – pelo sinal da Santa cruz – e as das feiticeiras que iam ao Esponjeiro tomar ordem do seu chefe, um Diabo trocista, de cara descarada, e depois saíam, transformadas em bichos, a agourentar a vida da criatura.

Juntam-se todos ao Chiquinho e Tói Mulato.

NHA ROSA – "Estória, estória!"

TODOS OS OUTROS – "Fartura do Céu, amém!"

NHA ROSA – Era uma vez uma princesa que andava a correr mundo à procura de Passo-Amor, seu noivo, mas para o alcançar tinha de furar a sola de sete sapatos de ferro. Chegou à casa da mãe do Vento, e esta escondeu-a dentro de um "cancarã". Entrou o filho, muito malcriado, com grande barulho, "catã, catã", e disse: "Aqui cheira-me a sangue real…" A mãe do Vento chamou o filho e disse-lhe: "É o teu sangue que cheira. Tu és o único real nesta casa. Traga a cabecinha e coloca-a no meu regaço para catar-te os piolhos". O Vento encostou a cabeça no regaço da mãe e adormeceu. A mãe do Vento foi tirar a princesa do dentro de "cancarã", deu-lhe um banho com urina de um cão solteiro, fez-lhe um chá de bosta de galinha viúva e mostrou-lhe o caminho para encontrar o Passo Amor.

TÓI MULATO (baixinho para Chiquinho) – Ouvir Nha Rosa Calita a contar "estórias" o sono foge-me totalmente.

CHIQUINHO – A mim também. Mas as "estórias" de feiticeiras, tão cheias de cantigas aziagas e fachas de lume a voar, aqui e ali, na noite, põe-me um medo tal no corpo…

TÓI MULATO – Eu também, ontem, quando eu vinha para cá ouvir "estórias", sozinho, vi uma sombra de bombardeira, parecia-me lobisomem de chapéu na mão a cumprimentar.

CHIQUINHO – Nha Rosa, se você contar mais "estórias" dou-lhe uma mãozada de erva para você encher de melaço o pito do seu cachimbo… dou-lhe ainda um litro de farinha para você fazer pirão.

TÓI MULATO – Gosto muito de ouvir "estórias" de Carlos Magno. Mas que homem mofino, aquele Galalão!

CHIQUINHO – Nha Rosa, você conte a história de sexta-sábado…

NHA ROSA – Nhor, não. As bruxas são amigas do nosso inimigo, e se eu mentar o nome dele "Aquele Homem" aparece…

TÓI MULATO E CHIQUINHO – Figas, canhoto, mar de Espanha, beldroegas, rabo-de-gato preto…

Mamãe Velha dormita numa cadeira de baloiço. Mamãe entretém-se na sua renda. Os meninos de olhos crã ouvem a estória, ao lado de Nhô Roberto.

NHA ROSA – Bem, meninos, amanhã eu conto-vos uma "estória" do Lobo e do Chibinho.

TÓI MULATO E CHIQUINHO – Fixe

TÓI MULATO – Vamos ver Chibinho a fintar Tilobo.

NHA ROSA – Nha Júlia já está a dormitar. Hoje não lhe apetece lembrar os nossos tempos nem do ano da ventona.

MAMÂE – Nha Rosa, da ventona é para esquecer. Se tudo o que a Mamãe Velha conta sobre esse ano é mesmo devera…

NHA ROSA – Se é mesmo devera? A cólera, Maria… naquele ano encheram-se os cemitérios e tiveram de fazer enterros fora do sagrado. Eu era ainda menininha, Nha Júlia também. Mas tenho na lembrança os horrores daquela quadra maldita da cólera. Na mesma casa morriam três e quatro pessoas num dia. Não havia lei, nem rei nem roque. Muita gente foi enterrada viva.

CHIQUINHO – Nha Rosa, enterrada viva como? Eu correria.

NHA ROSA – Chiquinho, não podiam correr. Não tinham força para nada. Como os homens que sepultavam os mortos ganhavam por cada corpo que enterravam, como sabiam que um moribundo era seguramente um futuro cadáver, aproveitavam logo de o levar e receber o seu vintém.

CHIQUINHO – Por causa de uns vinténs os homens são assim tão maus?

NHA ROSA – Chiquinho, tu nem imagina! Olha, tenho que ir porque já está muito noite e os teus olhinhos parecem morrer de gana dormir. Vai para cama e amanhã conto-te mais. Vamos embora, Tói. Até amanhã se Deus quiser.

Sai juntamente com o Tói.

NHÔ ROBERTO – Eu também vou-me embora, criaturas. Deus nos dê uma boa noite.

II CENA

CHIQUINHO – Mamãe Velha, ontem a noite Nha Rosa contou que quando vocês eram ainda crianças muitas pessoas foram enterradas vivas.

MAMÃE VELHA – Oh, meu menino! Nessa altura os homens sãos tinham-se tornado verdadeiras feras sem entranhas. Ouviste falar de Nhô Manito Bento?

CHIQUINHO – Foi um capitão de navio...

MAMÃE VELHA – Ele foi um grande negreiro, capitão de navios de escravatura. Ele ia buscar os negros à costa de África para Cabo Verde, Brasil e Oeste-India. Durante a viagem muitos morriam no caminho e os botavam ao mar.

CHIQUINHO – Esse Nhô Maninho não tinha alma dentro do corpo dele.

MAMÃE VELHA – Tinha alma sim, meu menino. Dizem que na casa onde ele morreu há todas as noites grande arrastar de correntes e gritos agoniados. É a alma dele, remorsada pelas judiarias com os negros. Nhô Quinquim Soares também era outro senhor cruel com os escravos. Botava-lhes correntes nos pés para o trabalho. Por qualquer coisa dava-lhes de "rebém" e nas cortaduras punha sal, pimenta e malagueta. Mas teve um fim triste.

CHIQUINHO – O que é que lhe fizeram?

MAMÃE VELHA – Acabaram por enterrá-lo vivo.

CHIQUINHO – Os negros também eram maus. Enterrar uma pessoa viva…!

MAMÃE VELHA – Meu anjinho, eu ainda não te contei o que é que Nhô Quinquim Soares fazia aos seus negros.

CHIQUINHO – Seja como for não deviam ter feito a justiça pelas suas mãos.

MAMÃE VELHA – Era a única justiça que eles podiam fazer. Eles não podiam queixar-se dos seus donos. Podiam ser espancados até a morte que a justiça considerava que morreram enquanto estavam a ser educados.

CHIQUINHO – Por que agora não é assim? Os negros já não são tão maltratados. Alguns até são ricos!

MAMÃE VELHA – Os tempos passaram e as coisas mudaram-se. Sabes, a América – onde o teu pai está, e para onde foram vendidos sem números de negros – deixou de pertencer a Inglaterra; Napoleão Bonaparte tomou França; Brasil tornou-se independente e Portugal trocou a monarquia pela república.

CHIQUINHO – Só porque Napoleão era bom na parte, tomou França?

MAMÃE VALHA – Bonaparte era o nome… aliás, o apelido dele.

CHIQUINHO – Ah! E o que é que isto tem a ver com aquilo?

MAMÃE VALHA – Era por estas bandas que os negros eram vendidos para irem trabalhar nas minas e nas plantações. Com essas mudanças, muitos deles conseguiram liberdade. Isto é, podiam comprá-la. Quando chegou a S. Nicolau a lei que alforriava os negros houve grande festa na escravatura. Os negros cantavam de satisfação, com palavras que ninguém da ilha entendia. Jireco, negro de Nhô Miguel Lopes, foi à casa do senhor quando lhe deram alforria: "Senhô, já tenho a minha liberdade..." O senhor respondeu-lhe: " para que queres a liberdade, Jireco?" ele respondeu outra vez: "para ir beber vinho de palma à minha terra, nhonho". Nesse mesmo dia Jireco apanhou uma grande bebedeira e queria trocar a alforria por uma garrafa de grogue.

CHIQUINHO – Tói Mulato disse-me que sua avó contou-lhe que o velho Nhenhano Bandeira era escravo.

MAMÃE VELHA – Era… era escravo de Nhô António Sabina. Hoje ele é mestre de tenda e dono de trapiche.

PITRA (entra na sala com a sua fotografia na mão, embrulhada numa toalha) – Só pena eu não ter posto gravata. (Desembrulha e contempla-a) O meu padrinho passou isto em ponto grande, Chiquinho.

CHIQUINHO – O filho que a Zepinha pariu é a mesma cara de bolacha de Pitra.

MAMÃE – Pitra, tu é que fizeste filho em Zepinha?

PITRA – Nha, sim...

MAMÃE (fica vermelha de zanga. Pega num lato e bate rijo em Pitra) – Atrevido! Fazer pouca vergonha em minha casa! Esta casa é uma casa de respeito, ouviste?

Pitra recebe calado. Nhô Chic’Ana entra com ar alegre, fumando um cachimbo.

NHO CHIC’ANA – Ó de casa!

MAMÃE (um pouco atrapalhada) – Oi… Nhô Chic’Ana, entre e sente-se. Não repare porque estou atrapalhada… A Mamãe Velha está na sala a acabar de botar remendos numa saia.

NHÔ CHIC’ANA – Mulher firme, essa Nha Júlia. Com a idade dela não sei se serei capaz de meter colher na boca, quanto mais agulha nos farrapos.

MAMÃE VELHA – Chic’Ana, eu ainda consigo enfiar a linha na agulha: com os óculos, claro!

NHÔ CHIC’ANA – Resultado do vosso tempo. Tudo era a vontade.

MAMÃE VELHA – Maria prepara um cafezinho para o Chico.

NHÔ CHIC’ANA – Obrigado, Nha Júlia; obrigado, Maria. Notícias do António Manuel, vocês têm recebido? Quando é que ele pensa voltar para as ilhas?

MAMÃE VELHA – Ele não consegue esquecer-se de nós. Sempre foi muito apegado a família.

MAMÃE (entrega Nhô Chic’Ana uma xícara com café) – Nhô Chic’Ana, como vai a horta na Chã de Marcela? Não é por você estar presente, mas tomara que todos tivessem tanto luxo em trabalhar uma horta, Nhô Chic’Ana. Não é por acaso que eu queria que você tomasse também de meias o Tapadinho.

NHÔ CHIC’ANA (depois de uma golada de café) – Dois casais de terra são muita horta para um velho como eu, que só conto com a minha filha e com uma ou outra pessoa que consigo em mão trocada. Estou arrependido de não ter continuado a vida de marinheiro.

CHIQUINHO – Por que você largou o mar?

NHÔ CHIC’ANA – Já não podia ver azáguas a chegar e eu no mar, menino. Era marinheiro enquanto não via as rochas das lhas pintadas de verde. Largava tudo e vinha fazer azáguas. Até que me casei com Nhanha e vim morar de vez na casinha de campo. Fiz mal em não seguir os conselhos de Totone Menga Menga…

CHIQUINHO – Que lhe dizia Totone?

NHÔ CHIC’ANA – Totone dizia-me que desembarque é que matou embarque.

CHIQUINHO – Ainda hoje, se você encontrasse jazigo, embarcava outra vez?

NHÔ CHIC’ANA – Já não tenho pernas para aqueles caminhos, rapaz… Mal que eu fiz em não ouvir o que Totone me dizia…

CHIQUINHO – Você falava muito com Totone?

NHÔ CHIC’ANA – Há tempo como areia que o não vejo. Eu não posso mais ir ao Chamiço, e Totone nunca sai da sua casa.

CHIQUINHO – Explique quem é Totone, Nhô Chic’Ana…

NHÔ CHIC’ANA – Ninguém sabe, Chiquinho... Ele próprio não diz nada à gente. Ninguém lhe conhece parentes.

CHIQUINHO (para Mamãe) – Qualquer dia mamãe dá-me licença e eu vou visitar Totone Menga Menga…

MAMÃE – Se é para o explorares, não vás, que Totone lê no coração da criatura. Se queres ir para ele te dar bons conselhos, então sim, porque as palavras de Totone tornam clara a alma da gente.

MAMÃE VELHA – Totone Menga Menga é um sábio. Seu coração é muito limpo e os seus olhos vêem para lá daquilo que nós todos enxergamos…

NHÔ CHIC’ANA – As palavras de Totone são como escuma do mar que bate nas rochas. Escuma do mar que bate nas rochas é muito branca porque não se sujou com a porquidade da terra da praia…

MAMÃE VELHA – Em eras de tribulação da vida, Totone rodeia a alma da gente num véu, branco assim como grinalda de noiva...

NHÔ CHIC’ANA – No coração de Totone tem tanta luz como o facho que o sol deixa no mar e como as estrelas que Nossenhor semeou no céu. Não dá boa sorte, não, troçar de Totone, rapaz…

CHIQUINHO – Porque é que a sua mulher se chama Nhanha Bonga… porquê Bonga, Nhô Chic’Ana?

NHÔ CHIC’ANA – Bonga é nome de gentio, rapaz.

NHANHA (acaba de entrar) – Gentio tem o seu dono, velho mofino. Eu não tenho raça de negro. (Para Mamãe Velha) Não me oiça Nha Júlia.

CHIQUINHO – Quantas meninas você desgraçou quando era moço, Nhô Chic’Ana?

NHANHA – Chic’Ana, graças a Deus, nunca desgraçou mulher. Só eu é que pari com ele.

NHÔ CHIC’ANA – Chiquinho, não ligas a conversa da Nhanha. Ela é assim. Há quase cinquenta anos que estamos casados, há quase cinquenta anos que ela vem-me descompondo sempre por qualquer motivo. Já estou acostumado. Se eu tivesse continuado marinheiro, a minha vida seria melhor. Não me teria amarrado a esta tranca velha...

NHANHA – Nem eu a este pau velho…

NHÔ CHIC’ANA – Cala a boca, criatura. É destino que a gente traz da barriga da mãe...

CHIQUINHO – Nhô Chic’Ana, quando você era menino não tinha medo de ser engordado e comido pela bruxa?

NHÔ CHIC’ANA – Não menino. Porquê?

CHIQUINHO – Nunca lhe meteram dentro de uma caixa grande e lhe disseram: "Meu netinho, deita o dedo mindinho de fora para eu ver se estás gordinho…?" Sabe, havia mocinhos sabidos que botavam de fora um rabo de lagartixa. Logo a velha acreditava na magreza do netinho, então dizia: "Ui, meu netinho, estás magro como cação! Come e engorda, Pelamba."

NHÔ CHIC’ANA – Não menino. Eu nunca passei por estas coisas. Mas sei que as há.

CHIQUINHO – Tói Mulato disse que Nhô João Joana contou-lhe que, no princípio do mundo, a Terra era uma mulher muito bonita e muito infeliz. Que vendo os seus filhos morrer por falta de comida, saía todas as noites a vaguear e ia chorar nos cumes das rochas os seus amores perdidos. Ela tinha-se casado com um moço leviano que nunca lhe parecia inteiro, mas sim partido em pinguinhos de água. Que a Terra ficava sempre com gana do amor incompleto do seu marido.

NHANHA – Leviano havia de ser como Chic’Ana.

NHÔ CHIC’ANA – Mas eu nunca te deixei com gana e nunca te apareci partido em pinguinhos de água.

JOCA (chega e senta na sala com uma barba de meter medo) – Oi minha gente, quem me dá um pinga de seca-suor?

MAMÃE VELHA – Joca, quando é que deixas esse vício da bebida? (Joca levanta-se e vai buscar ele mesmo a garrafa no armário) Peço-te por tudo, Joca, que não abuses da bebida, para estragares a tua saúde e mortificar os parentes.

JOCA – Pela próxima trago-lhe um menino para você vir abençoar.

MAMÃE VELHA – Quem é a gente dele?

JOCA – É seu neto…

MAMÃE VELHA – Meu neto? Mais outro? Porque estás a encher de filhos naturais?

JOCA – É planeta que está a mandar, mamãe.

MAMÃE – Trá-lo p’ra cá, Joca. Ao menos este há-de crescer entre gente, há-de ter modos, e não estar com os teus maus exemplos nos olhos…

Joca levanta e sai, depois de ter seco um cálice de grogue.

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