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Presidente da AJOC. Nenhum Governo deveria assenhorear-se da RTC como uma coutada
Entrevista

Presidente da AJOC. Nenhum Governo deveria assenhorear-se da RTC como uma coutada

Na semana em que a Oposição no Parlamento questionou o Governo sobre o estado da comunicação social, Carlos Santos, presidente da Associação dos Jornalistas de Cabo Verde, que também é sindicato da classe, faz o diagnóstico do sector, prognosticando tempos difíceis até o fim do mandato deste Executivo, alertando que “nenhum Governo deveria assenhorear-se da RTC como uma coutada, é um serviço público.”

Santiago Magazine - A liberdade de imprensa em Cabo Verde está agora mais em perigo, ou está sempre?

Carlos Santos - A liberdade de imprensa não é um dado adquirido nem uma conquista para a vida, tem que ser conquistada e preservada todos os dias pelo trabalho dos jornalistas, mas também pelo ambiente legislativo e pela actuação dos vários poderes, porque há vários campos que intervêm e concorrem para que tenhamos liberdade de imprensa em Cabo Verde. Neste momento estamos numa situação que requer alguma atenção porque vivemos um período de crispação entre os jornalistas e o poder político, alguma confrontação que, no fundo, também, é potenciada pelas redes sociais e nestas situações o risco de liberdade de imprensa regredir é bastante grande.

Estão todos, jornalistas e poderes, estão a cumprir o seu papel? Se não, o que está a falhar?

Do ponto de vista do ordenamento legislativo e jurídico deste sector, Cabo Verde está bem servido. De facto, avançamos bastante. Agora, a nível das políticas públicas temos um déficit e alguns aspectos terão que ser revistos. Os jornalistas têm feito o seu trabalho mas para os cidadãos a comunicação social precisa avançar um pouco mais. Temos recebido críticas de que temos uma comunicação social e um jornalismo que estão muito atrelados ao institucional, andam muito a reboque da agenda pública. Segundo os cidadãos, precisamos de um jornalismo mais de investigação e que cumpre a sua missão de vigilante. Já fizemos várias reflexões sobre o modelo de jornalismo que temos em Cabo Verde e chegamos sempre à mesma constatação: está na altura de rompermos com esse paradigma do chamado “jornalismo de pantufas” ou “jornalismo sentado”, em que a agenda do cidadão não é muito tida em conta e as suas preocupações não são reflectidas na agenda mediática. Por outro lado, em termos de políticas públicas há aspectos que têm de ser revistos, mas não é uma questão de rever a lei. Há sempre a tentação de qualquer governo, se calhar porque os ministros não têm trabalho a apresentar, de rever a lei, e nós estamos ter mais uma vaga de revisão e alteração do pacote legislativo para a comunicação social, sem que saibamos concretamente o que se vai mudar. Parece-nos que seria mais judicioso se se fizesse uma análise daquilo que já foi feito a nível de implementação das leis para a comunicação social, até porque estamos a falar de leis que foram revistas em 2010 e, portanto, só teríamos que ver se a lei foi aplicada, ou se não foi, os déficits que nós temos e só depois avançar para a alteração ou revisão desse pacote legislativo.

O trabalho dos jornalistas não reflecte a agenda social devido a limitações financeiras ou é um problema de formação filosófica ou académica?

Nós respeitamos essa leitura, que não é geral, mas temos que relativizar essa crítica, porque quando se diz que não há jornalismo de investigação as pessoas tomarão como referência outros países e meios de comunicação social que têm recursos que nós não temos em Cabo Verde, e apontam como exemplos quedas de ministros, de governos, de presidentes da República, o que no nosso país não acontece muito. Mas isso não depende apenas do jornalismo, porque já houve e continua a haver jornalismo de investigação que traz para a praça pública escândalos, actos de má gestão e até mesmo de corrupção, e não há consequências. Quer dizer, o poder judicial depois não actua. Ou seja, não há responsabilização dos próprios titulares dos cargos políticos. Mas não estou com isso a tentar desculpar os jornalistas ou a comunicação social. O nosso país é pequeno e o acesso às fontes de informação não é muito fácil, a lei pode obrigar as entidades públicas e a administração pública a disponibilizar informações para a comunicação social, mas há depois muito secretismo. As pessoas que deviam dar informações não o fazem porque têm medo de represálias, e não falam abertamente e, por isso, encontramos várias fontes confidenciais no jornalismo de investigação em Cabo Verde. Além disso, o meio é pequeno, todos nos conhecemos e as pessoas têm medo de dar informações aos jornalistas, basta ver que o jornalismo de investigação consegue vingar mais na imprensa escrita, onde há recurso às fontes confidenciais, o off funciona muito bem, mais do que na rádio ou na televisão. Depois, este tipo de jornalismo que está a ser demandado pelos cidadãos requer recursos financeiros. Fazer jornalismo de investigação requer dinheiro. Quando uma redacção/um meio de comunicação social dispensa um jornalista para fazer uma investigação sobre um tema qualquer de interesse público durante dois meses, por exemplo, isso deixa um vazio e porque esse trabalho implica muitas vezes viagens que têm custos para o órgão de comunicação social. Não creio que seja um problema de formação dos jornalistas, pois o panorama mudou consideravelmente de há uns anos a esta parte, a maior parte dos jornalistas que estão a exercer a profissão tem formação superior, e os outros têm formação profissional. E não podemos esquecer que em Cabo Verde o Estado ainda domina o campo da comunicação social, é ainda o grande grupo político, económico e ideológico da comunicação social nacional.

Vamos analisar casos concretos. Comecemos pela RTC (Rádio e Televisão de Cabo Verde). O que mais o preocupa em relação ao anunciado Plano Estratégico para a RTC: o facto de os trabalhadores e, em particular, os jornalistas não terem sido envolvidos no processo, ou o financiamento desse plano?

A AJOC esteve reunida há dias [21 de Fevereiro] com o Conselho de Administração da RTC e este foi um dos pontos que levamos para essa reunião, porque preocupa-nos enquanto sindicato que representa praticamente todos os jornalistas da RTC que não tenhamos sido envolvidos, ou pelo menos informados, sobre esse plano estratégico. Depois nós ouvimos declarações do ministro da tutela de que vem aí uma nova empresa, às vezes diz dentro daquilo que é a RTC, mas num debate no Parlamento disse que é uma nova empresa, que não tem nada a ver com o que nós temos neste momento e, obviamente, os jornalistas ficam preocupados. O Conselho de Administração (CA) disse à AJOC que ainda não tem nada para partilhar. Encomendou um estudo a alguns consultores, que, de resto, já fizeram outros estudos sobre a RTC, sobre o que pretende para a empresa do ponto de vista da reorganização e do modelo de negócio, no fundo, o redimensionamento da empresa. O CA acha que não deve apresentar esse plano porque ainda é cedo. Disseram-nos apenas que estão a mobilizar os recursos, e estamos a falar de recursos avultados, à volta de 4 milhões de euros (perto de 450 mil contos cabo-verdianos), e quando os tiverem irão partilhar as várias etapas desse estudo e obter contribuições dos trabalhadores para a sua implementação. Obviamente, para a AJOC enquanto sindicato, isto é preocupante porque nós já vivemos outras experiências na RTC de os jornalistas serem chamados quando já há planos de despedimento e o interlocutor já não é mais o CA, mas uma comissão liquidatária. Mas a RTC deve partilhar a sua visão, pois isto é básico: os trabalhadores devem saber onde é que nós estamos e para onde vamos, portanto, no mínimo, o CA devia partilhar a sua visão. Dizem que não querem socializar o plano para não haver o risco de acontecer o que já aconteceu: fez-se estudos, partilhou-se com os trabalhadores, e depois nada foi implementado. Para nós, AJOC, isto não deixa de ser preocupante porque paira no ar uma reestruturação que pode ter contornos políticos, e pode haver despedimentos e isso preocupa qualquer jornalista que trabalha na RTC.

Há dias, em declarações à comunicação social, o ministro que tutela o sector, Abraão Vicente, comparou o número de trabalhadores e o grau de produtividade da RTC com os da SIC, de Portugal, dando a entender que, com menos trabalhadores, a SIC, que tem vários canais, consegue fazer mais do que a RTC. Essa declaração tornou ainda mais real a possibilidade de vir a haver despedimentos de jornalistas na empresa pública de rádio e televisão?

Essa possibilidade é real. De facto, paira no ar uma vaga de despedimentos. O que é que esse estudo prevê em termos de redimensionamento da RTC e da sua estrutura? Fizemos esta pergunta há dias ao CA e perguntamos ainda se podia garantir que não vai haver despedimentos de jornalistas e a resposta foi que não podia nos dar essa garantia, não estará ainda em condições de fazer isso, só começando a implementação desse plano é que poderá dizer se haverá ou não despedimentos. Mas, de facto, ouvindo todas as declarações que o senhor ministro tem produzido – estou a lembrar-me agora que ele disse que a delegação do Mindelo tem 63 funcionários, deixando depois no ar a ideia de que há muita gente para tão pouca produção ou produtividade - a gente fica com a ideia de que temos uma empresa que é “gorda” e que terá que emagrecer pela via do despedimento dos trabalhadores. Pode-se aumentar a produtividade sem haver despedimentos, mas todos os sinais apontam claramente para o despedimento de jornalistas. E ficámos preocupados quando o próprio ministro desvaloriza o serviço público, sobretudo o da televisão, e nega que a Televisão de Cabo Verde seja o órgão de maior audiência no país, mas nós temos estudos que foram feitos pela Afrosondagem, pelo menos dois estudos, sendo o último em 2011, que dão à TCV cerca de 74% de audiência, e há um estudo do INE, encomendado pelo CA da RTC, presidido na altura por Marco Oliveira, e que dava a TCV como líder de audiência. Há, portanto, uma tentativa de desvalorizar a TCV, inclusivamente dizendo que a televisão pública continua a emitir conteúdos piratas. Ora, isto dito pelo ministro que tutela o sector é muito grave.

A AJOC tem recebido queixas de associados seus que trabalham na TCV de perseguição política no ambiente de trabalho? Tendo isto em conta, no âmbito do Plano Estratégico para a RTC, poderão acontecer despedimentos que têm por base motivações políticas?

Referi-me há pouco ao facto de o estudo de reestruturação da RTC que está a ser preparado ter sido encomendada pelo CA mas depois foi “comprado” pelo Governo, ou seja, foi aprovado pelo Conselho de Ministros e o ministro Abraão Vicente está agora a tutelar, a comandar este processo e qualquer pessoa que esteja atenda vê que o CA da RTC praticamente ficou para trás. O ministro praticamente se transformou no presidente do CA da RTC e fala desse estudo e do que vai acontecer e deixar de acontecer. Referi-me, de facto, a essa reestruturação do ponto de vista político, uma vez que é o ministro que está a dar a cara e vai deixando escapar algumas informações em relação a isso. A AJOC não tem recebido do ponto de vista formal queixas sobre pressão política exercida por parte do Governo. O que tem chegado à AJOC, e isso é público, são casos de censura, e pelo menos dois casos já foram sancionados pela Alta Autoridade para a Comunicação Social. Mas, no geral, os jornalistas queixam-se sobretudo desse confronto permanente com o ministro que tutela o sector. Há dois anos e tal que estamos confrontados com declarações do ministro, umas vezes na comunicação social e outras vezes nas redes sociais, que levam a que haja um braço de ferro constante entre o ministro e os meios de comunicação social. É um mal-estar desnecessário, mas há, de facto, uma tentativa de desvalorizar a credibilidade dos meios de comunicação social e dos jornalistas, com o Governo a vir a público, quando surgem certas notícias, de classificá-las como fake news. Até já houve situações em que nos passaram um atestado de incompetência, dizendo que os jornalistas teriam que aprender inglês porque interpretaram mal um relatório do Departamento de Estado.

Com que intenção estará o actual Governo a promover essa crispação?

Não lhe sei dizer e não gostaria de cair nesse discurso que me parece banal, de que o ministro não gosta dos jornalistas e de que há aqui uma relação de ódio entre as partes, mas é um caso de estudo. Porque, de facto, com este ministro temos tido uma situação de confronto permanente. E isso não é bom. Para já leva ao desgaste do próprio Governo, não há serenidade para a gente analisar e resolver os problemas do sector. A direcção da AJOC, logo que tomou posse, mostrou-se completamente aberta para dialogar com o Governo e para colocar as questões em cima da mesa e para irmos resolvendo-as paulatinamente. Inclusive, a primeira pessoa com quem esta direcção se reuniu foi o ministro Abraão Vicente, que disse que ia envolver a AJOC no processo de revisão do pacote legislativo para o sector e que a associação integraria uma comissão constituída pela senhora Directora Geral de Comunicação Social e pelo assessor jurídico, mas nós nunca fomos chamados, daí que nós não sabemos absolutamente nada sobre o que se passa com essa reforma legislativo e isso é preocupante, pois estamos a falar de leis estruturantes. Vai haver uma nova lei-quadro da comunicação social, um novo estatuto dos jornalistas e outras leis (de rádio, de televisão), o contrato de concessão da RTC e um primeiro contrato de concessão da Inforpress. Portanto, estamos a falar de questões estruturantes para este sector e para os jornalistas e nós devíamos ser envolvidos. Nós também levamos essa mensagem de abertura ao Primeiro-Ministro, dizendo que a AJOC está disponível para entendimentos e que esta crispação permanente não interessa a nenhuma das partes. E não interessa aos cabo-verdianos, porque estes querem usufruir desse direito constitucional de ter informação, e informação de qualidade. Dessa reunião com o PM saiu a ideia de identificarmos os pontos críticos da comunicação social em Cabo Verde e que têm emperrado a nossa progressão no ranking da liberdade de imprensa e a partir daí faríamos um plano e começaríamos a trabalhar para resolvê-los, mas não fomos nem tidos nem achados.

Fala-se num “buraco” financeiro na RTC, inclusive de dívidas avultadas. Entretanto, este Governo já aventou a hipótese de a empresa pública de televisão e rádio sair do mercado publicitário. Ora, se isso vier a acontecer será menos uma fonte de renda ao dispor. A acontecer, qual seria a situação da RTC?

Há entretanto um relatório de contas que pode ser consultado na página do Ministério das Finanças na internet, mas seria interessante disponibilizar ou partilhar essas informações com os trabalhadores, acho que não custava nada ao CA no início de um ano económico partilhar o plano de actividades, o orçamento, o relatório do exercício do ano transacto. Portanto, em relação à divida da RTC o que posso dizer é aquilo que todo o mundo já conhece, esteve a rondar 1 milhão de contos. Essa hipótese de a RTC sair do mercado publicitário já se colocou várias vezes, e tem havido muitas críticas por parte dos operadores privados que dizem que há concorrência desleal por parte da RTC porque, sendo concessionária do serviço público, já beneficia da taxa do audiovisual que é paga pelos utentes através da factura de electricidade e recebe a indemnização compensatória, portanto, não devia estar a concorrer com os privados no mercado publicitári num mercado que é muito diminuto e escasso e que já tem muitos players. Se a RTC sai sair e ter problemas a nível de tesouraria e da sua sustentabilidade, isso não lhe sei dizer, mas o Governo não faria isso sem acautelar a indemnização compensatória, porque nós estamos a falar de um valor que vem desde 1997, que está no Orçamento de Estado e que é dado em regime de duodécimos, salvo erro, de quatro mil contos por mês. Portanto, se o Estado quiser tirar a RTC do mercado publicitário teria de fazer bem as contas, até porque, por aquilo que já foi dito, o Estado pensa atribuir à Cabo Verde Broadcast, empresa que gere a Televisão Digital Terrestre (TDT), mais de 20% do montante da taxa do audiovisual, ou seja, a RTC vai perder receita e deverá receber alguma contrapartida. Agora, se me pergunta se é justo a RTC estar a beneficiar dessas fontes todas, acho que há, de facto, aqui uma situação que terá se ser revista pelo Estado. Aliás, andamos a discutir o financiamento do sector privado e esta foi uma das questões que os privados querem ver resolvidas, que a RTC deixe esse bolo publicitário, que já é diminuto para os privados, uma vez que estes não recebem qualquer subsídio por parte Estado. Portanto, é um debate que teremos de continuar a fazer. Eu não defendo a retirada total da RTC do mercado publicitário. A RTC deve-se manter no mercado, mas apenas com a publicidade institucional e pro bono, com campanhas sociais, mas quanto à publicidade comercial devia deixar isso aos privados.

Se a remuneração compensatória não é actualizada desde 1997 e a RTC vai ter de pagar uma taxa à Cabo Verde Broadcast e pode vir a sair do mercado publicitário, não ficará a RTC numa situação, digamos desconfortável? Não são demasiadas limitações para gerir?

Concordo consigo. Mas devo lembrar que por muito menos os trabalhadores da RTC já fizeram greve. Lembro-me que em 2012 os trabalhadores paralisaram as emissões da rádio e da televisão durante dois dias porque houve um atraso no pagamento dos salários de 15 dias. Se vai haver algum problema a nível da tesouraria, a sustentabilidade deverá ser acautelada. Só diria que, e isto não é surpresa para ninguém, a sustentabilidade da RTC baseia-se sobretudo no produto da taxa do audiovisual. Eu diria que quem financia e garante o serviço público de rádio e televisão são os cidadãos, através dessa taxa que pagam e também de impostos indirectos, por via do Orçamento de Estado, e é por isso que eu acho que nenhum Governo deveria assenhorear-se da RTC como uma coutada, é um serviço público. Portanto, deve haver algum distanciamento entre a RTC e os governos. Defendemos que o financiamento deve ser de facto substancial e basear-se na previsibilidade, ou seja, devia ser um financiamento não em regime de duodécimos, mas, por exemplo, dado por três ou quatro anos, para que a RTC pudesse pensar e realizar investimentos. Da maneira como o financiamento é feito torna-se muito difícil, quase impossível fazer isso. Basta dizer que neste momento, 80% das receitas da RTC vão para os salários, mas sempre foi assim. Portanto, não sei até que ponto, mexendo na taxa do audiovisual, ou seja, retirando uma fatia e entregando-a à Cabo Verde Broadcast, e saindo a RTC do mercado publicitário, a empresa terá condições para continuar.

Mas há ou não há excesso de pessoal na RTC?

Bem, eu não falarei de outras categorias profissionais, mas dos jornalistas que a AJOC representa. Há dias, o ministro Abraão Vicente, tentando desvalorizar o papel e o poder dos jornalistas da RTC, disse que estes profissionais representam “apenas” 25 por cento dos trabalhadores da empresa. Não lhe sei dizer se nós estamos a falar de produtividade, ou de produção nacional, mas nós constatamos que a RTC poderá ter muita gente noutros sectores, mas não necessariamente nos sectores que produzem conteúdos, que, no fundo, é a missão da RTC. Portanto, eu não lhe sei dizer se a RTC tem gente a mais. Por outro lado, há déficit de pessoal em outras áreas. Tem déficit de profissionais para fazer programas que requerem produção e realização. Eu não estou a dizer que a RTC tem de produzir ficções nacionais, telefilmes e séries, mas pode terceirizar, pode contratualizar com produtoras independentes. Agora, do ponto de vista do jornalismo a RTC precisa de mais gente para corresponder e responder às obrigações ao nível do serviço público. Não é uma questão só de saber gerir o pessoal, como algumas vezes ouvimos os CA dizer. A RTC precisa de mais jornalistas. Até porque se introduzir editorias especializadas, que é uma necessidade, terá que ter mais jornalistas. Há na RTC uma redacção que cobre a rotina informativa, e depois tem editorias, grupos de três a quatro jornalistas para economia, política, etc. Se se fizer essa reorganização das redacções eu tenho a certeza que os jornalistas que estão lá não chegam, portanto, temos que meter mais gente. Agora, se a RTC é “gorda” ter-se-á que ver onde é que está a “gordura”.

Este governo prometeu a desgovernamentalização da RTC, mas, cerca de três anos depois de entrar em funções, o que se ouve são sobretudo queixas que vão no sentido contrário. Ou seja, a desgovernamentalização não aconteceu ainda. Concorda?

A desgovernamentalização do serviço público foi assumida por este Governo. Ainda em campanha eleitoral o MpD teceu várias críticas em relação à governamentalização dos serviços públicos e aos comissários políticos que o anterior Governo, no seu entender, colocava na gestão desses órgãos, e prometeu que, quando chegasse ao poder, ia mudar, tanto é que isso consta no próprio programa deste Governo. Um dos compromissos é desgovernamentalizar o serviço público, estudar com a sociedade civil e com as organizações que representam a classe dos jornalistas outras formas de nomeação das chefias dos órgãos e da administração da própria RTC. E esse processo de desgovernamentalização é importante, inadiável, sob pena de continuarmos a ter a eterna suspeita sobre o serviço público. É importante que haja um mecanismo que garanta outras formas de nomeação das administrações. Por este mundo fora há vários exemplos de governança de serviço público em que não é apenas o Governo a nomear, devendo intervir outros actores ou entidades, como o Parlamento, a Presidência da República, uma associação de defesa dos direitos do consumidor, as universidades, as associações de produtores de cinema. Enfim, pode-se criar um modelo plural e misto mas que, de facto, assegure, a autonomia da RTC, que é o que não está a acontecer neste momento. Devo lembrar que este caminho praticamente já esta traçado. O anterior Governo, do PAICV, que fazia as mesmas críticas nos anos 90, prometeu também, e é bom dizê-lo, em 2001, quando assumiu o poder, que iria desgovernamentalizar, que assim que chegasse ao poder encontraria uma forma de tirar da RTC os comissários políticos. Ora, durante 15 anos, estivemos a bater sempre na mesma tecla, e o PAICV não fez essa reforma, que é inadiável e vital para a independência e até para a qualidade do serviço público de televisão e rádio. Em 2015, criou-se a RTCI, com um estatuto que tem soluções que são boas, desde logo a nova forma de nomeação das administrações da RTC, porque esse estatuto criava um Conselho Independente, que escolheria os administradores para a RTC, no qual teriam assento o Governo, que escolheria duas pessoas, a ARC também duas pessoas e os trabalhadores, através de uma assembleia, escolheria uma pessoa. Fomos contra a participação da ARC nesse conselho independente, porque a ARC é um órgão regulador, e não pode pertencer a uma estrutura de uma regulada, e a própria ARC tem esse entendimento. Ora, é uma questão de resgatar o estatuto da RTCI pelo menos nessa parte que assegura a desgovernamentalização, recompor-se o Conselho Independente e já está. Penso que isto é pacífico no Parlamento, e é uma questão de regime, e é vital para a democracia, mas infelizmente as pessoas não estão a encarar isso com seriedade.

A AJOC enviou uma carta ao ministro da tutela, no dia 12 de Fevereiro, em que, tendo em conta as recentes declarações que ele fez, pede esclarecimentos sobre a eventualidade de a RTC vir a ser privatizada.

Sim, enviamos um pedido de esclarecimento. Tendo em conta aquilo que o ministro Abraão Vicente disse, respondendo a uma pergunta de um jornalista que o questionava se o Estado vai se engajar mais e meter mais dinheiro na RTC, que a empresa tem potencialidades, que chega a todo o país e à comunidade emigrada, e é uma marca. Deduzimos que há aqui sinais que podem indicar algum desengajamento do Estado na RTC. Não sei se ao Estado interessa manter o serviço público de rádio e privatizar a televisão, tendo em conta que há operadores no mercado. Não sei se é essa a intenção, pois estamos aqui e conjecturar, uma vez que não há dados e não há informações. Não sabemos absolutamente nada. Interpretando essas declarações do ministro, perguntamos-lhe se o Estado pensa privatizar a RTC. Aliás, essa questão da privatização da RTC não é nenhuma novidade, já houve quem tivesse trazido isso à baila, mas a questão foi descartada há bastante tempo.

É difícil imaginar Cabo Verde sem um serviço público de rádio e televisão, tendo em conta as suas características sociais, económicas e geográficas. Dito de outro modo, não é essencial que para a maioria da população cabo-verdiana ter acesso a informação de qualidade haja no país um serviço público de televisão e rádio?

Cabo Verde precisa e vai continuar a precisar de um serviço público de rádio e televisão. Nós já temos no mercado alguns privados na área da rádio, da televisão e no online, mas é responsabilidade do Estado garantir esse serviço, não apenas pela via da Constituição, mas também pelas especificidades do país, pelo seu carácter de arquipélago e pela vasta diáspora que nós temos. Mas não é só isso. Ainda estamos num estádio de desenvolvimento em que um serviço público de televisão e rádio pode contribuir para empoderar os cidadãos, reforçar a cidadania, levar valores e trabalhar questões culturais e de identidade. Nós precisamos de um serviço público que tem como referência a qualidade, a excelência. Assim, faz todo o sentido o Estado continuar a investir na RTC Aliás, os cidadãos confiam na RTC, tanto que não há grandes reparos da parte deles em relação à taxa que pagam, e têm expectativas, querem tudo o que é suposto um serviço público dar aos cidadãos. De quando em vez esta questão vem à baila, e há um ano ou dois estávamos a discutir se Cabo Verde precisa de uma agência de notícias, portanto, são debates recorrentes, mas, obviamente, não gostaria de fazer nenhum paralelo em relação a isso. Faz todo o sentido que o Estado continue a assegurar o serviço público de televisão e rádio.

Referiu-se à Inforpress. A tão prometida reforma da agência nacional de notícias já está a acontecer, ou ainda não chegou?

Foi afirmado há dias pelo próprio ministro no Parlamento que há uma reestruturação em curso na Inforpress. Nós não sabemos em que fase se encontra, apenas sabemos que foi feito um estudo sobre a sustentabilidade da empresa, o qual veio demonstrar que com investimento do Estado, sério e consistente, a Inforpress teria sustentabilidade e daria um salto para uma agência à altura da ambição deste país, indo para a diáspora, estando junto das comunidades, recolhendo informações e trazendo-as aos órgãos de comunicação social, estando nas ilhas, no fundo, fazendo aquilo que é uma agência, um grossista da informação e está à frente de todos os órgãos de comunicação social, porque é a fonte das fontes, uma espécie de fonte primária. Se bem me recordo o investimento inicial seria de 45 mil contos, montante que foi assumido pela própria tutela que, no Parlamento, disse que o Estado poderia até ir muito além desse montante. Ora, neste ano de 2019 o Orçamento de Estado não contempla nenhuma verba extra para os meios de comunicação social, mas apenas aquelas verbas que são consignadas para a RTC, a Inforpress e o que continuamos a chamar “subsidio de papel” para a imprensa e que, segundo o Governo, terá subido de 13 para 15 mil. Agora, do ponto de vista de investimentos não há absolutamente nada. De modo eu não sei como se vai chegar a esse montante de 45 mil contos, porque a Inforpress, por lei, não pode fazer publicidade, e pela via da cooperação internacional não é possível mobilizar todo esse dinheiro, as agências com quem a Inforpress tem relações de parceria ou cooperação, tipo a Lusa, não estão em condições de injectar dinheiro na Inforpress, como fizeram uma vez, pelo que o contributo pode ser pela via da formação, e sabemos que vai acontecer uma formação que andará à volta dos seis mil contos e que os custos são repartidos entre a Lusa e a Inforpress, e parece-me que também pelo próprio Governo, e estamos a falar de investimentos a nível da modernização tecnológica e de preparação da agência para estar em outras plataformas, fornecer conteúdos para todos os públicos e órgãos de comunicação social, independentemente dos terminais que estes tenham. Nós constatamos, e é bom reconhecer isso, que, de facto, tem havido melhorias a nível da prestação da Agência Cabo-Verdiana de Notícias, nomeadamente a introdução do som, mas ainda há um caminho longo a percorrer a nível da infografia e do audiovisual, enfim, do jornalismo multiplataforma. Do meu ponto de vista será um fiasco total apenas limitar-se a desatrelar a Inforpress da RTC. Outra vez são duas empresas autónomas, agora precisamos que a Inforpress não regrida, mas que dê um salto para uma grande agência de notícias. A Inforpress tem um papel importante a desempenhar em Cabo Verde, quando se fala hoje muito na integração regional do país na CEDEAO e a agência poderia estar a fazer esse serviço de dar-nos a conhecer, de trazer informações dessa região para os órgãos de comunicação social cabo-verdianos, mas, infelizmente, isso não está a acontecer porque a agência não tem correspondentes em nenhuma capital, em nenhuma comunidade. Portanto, estamos atrasados nisso.

E há progressos também na progressão na carreira dos profissionais afectos à Inforpress?

Esta é uma questão que a AJOC vai ter analisar com a administração da Inforpress porque quando se fez a junção entre a agência de notícias e a RTC praticamente houve uma equiparação dos jornalistas da Inforpress com os da RTC a nível do salário, porque não faria sentido termos aqui jornalistas de primeira e de segunda dentro de uma mesma empresa, mas ficaram alguns pendentes, que vinham de 2010, e nessa altura a Inforpress tinha um outro PCCS e muitas questões não foram resolvidas e o ministro disse que assim que a agência recuperasse a sua autonomia a questão da carreira dos trabalhadores iria ser revista e desbloqueado o PCCS. E nesta expectativa que estão os trabalhadores da agência.

A relação de confronto do ministro Abraão Vicente abrange também os órgãos de comunicação social privados, incluindo declarações que a AJOC classificou num comunicado como um atestado de incompetência desses mesmos órgãos. Entretanto, anunciou a atribuição do estatuto de utilidade pública a esses órgãos privados e de isenção do pagamento do IVA. A AJOC tem conhecimento de algum progresso em relação a estas duas potenciais medidas, ou ainda estamos no domínio das intenções?

Não sabemos absolutamente nada. Aliás, eu nem quero acreditar que estejamos no plano das intenções. O ministro anunciou que o Governo estava a estudar a possibilidade de atribuir aos órgãos de comunicação social privados o estatuto de utilidade pública e de isentá-los do pagamento do IVA por um período de cinco anos, o que quer dizer que ainda não podemos assumir isso como um dado adquirido, como uma decisão, e tive o cuidado de ir ouvir o que o ministro Abraão Vicente disse e não estamos perante o perdão da dívida dos órgãos de comunicação social ao Fisco. Vai-se abrir um período, que a gente não sabe quando é que vai acontecer, o ministro há dias no Parlamento disse que vai ser ainda este ano, 2019, mas não há uma data concreta, em que as empresas de comunicação social privadas deixam de transferir a receita do IVA para as Finanças, podendo investir o montante arrecadado na contratação de jornalistas, na modernização tecnológica, ou seja, haveria alguma folga que permitiria a esses órgãos privados respirar mais tranquilamente. Falou no relacionamento de crispação do ministro com os órgãos de comunicação social privados e, de facto, temos que o reconhecer. É bom contextualizar que essas declarações do ministro foram feitas na sequência de um workshop que a AJOC fez para discutir a sustentabilidade dos órgãos de comunicação social privados e durante esse encontro e houve uma exposição da situação em que esses meios se encontram, uma situação de sufoco, estão atolados em dívida e pediam ao Governo que avançasse com algumas medidas, se não pela via dos subsídios, mas que criasse as condições para o funcionamento do mercado para que consigam fazer algum negocio e retirar receitas para o seu financiamento. E foi na sequência desse workshop que o ministro disse que a melhor resposta que o Governo poderia dar, ou pode dar, aos órgãos de comunicação social privados era terem uma agência de notícias de qualidade, que produzisse informação de qualidade, e chegou ao ponto de dizer que mais de 50 por cento das notícias que esses órgãos disponibilizam eram da agência de noticias, e isso suscitou aquela resposta da AJOC. Mas para a AJOC esta não é uma questão polémica, o que importa aqui frisar é que por causa da intervenção do sindicato o ministro Abraão Vicente deu uma volta de 180 graus, fazendo uma espécie de cambalhota. Antes dizia que o Governo só poderia disponibilizar uma agência de notícias de qualidade, agora veio falar num programa quase revolucionário de atribuir o estatuto de utilidade pública e a isenção do IVA aos órgãos privados. O importante aqui é que se resolva o problema de financiamento do sector privado de comunicação social, não é subsidiar se não for esse o interesse do Governo mas criar as condições para que saiam da penúria em que se encontram. São ideias excelentes, mas o que interessa é passar da teoria à prática e, se de facto, durante cinco anos esses meios de comunicação social não pagarem o IVA e puderem usar das facilidades do estatuto de utilidade pública, como as isenções aduaneiras, isso irá, de facto, melhorar consideravelmente, o funcionamento desses órgãos.

A AJOC visitou recentemente os órgãos de comunicação social privados e verificou as condições em que trabalham. O estrangulamento financeiro é o principal problema que enfrentam, ou há outras debilidades que precisam ser sanadas com urgência?

O estrangulamento financeiro é, de facto, o principal problema. Estamos a falar de órgãos de comunicação social que retiram o seu sustento do mercado publicitário. Ora, o mercado é este que conhecemos: débil, frágil, com poucas empresas e ainda por cima com uma cultura que não é muito propensa a investimentos na publicidade, já que alguns empresários ainda não têm aquela ideia de que a publicidade é um investimento e pode ter retorno para os seus negócios. Ora, se a publicidade é a única fonte de sustentabilidade para os órgãos de comunicação social privados, os órgãos de comunicação social privados cabo-verdianos pedem ao Estado, não para injectar dinheiro, mas criar as condições para que possam funcionar, sair do sufoco em que se encontram, e é por isso que surge essa hipótese de retirar a RTC do mercado publicitário, esse bolo ficaria apenas para os privados. Depois temos uma máquina fiscal que é implacável, e directores já nos mostraram comunicações do Fisco que, por causa de dívidas de 3 contos, ameaçava com cadeia. Assim é bem complicado fazer jornalismo e ter um projecto editorial firme e durável. Mas a comunicação social não se esgota no serviço público de televisão e rádio, os outros meios de comunicação social também prestam um serviço de utilidade pública e se o mercado não é capaz de garantir os meios para que esses órgãos funcionem sem problemas, sem constrangimentos de maior, o Estado tem que criar as condições para isso. Não é dizer “você criou um projecto, entrou no mercado, e já conhecia esse mercado, portanto agora desenrasca-te”. Acho que não pode ser assim. Até as rádios comunitárias, que prestam um serviço relevante para as comunidades onde estão inseridas, deviam ter mais apoio. Mas o que temos são rádios comunitárias que não têm sequer condições de contratar um jornalista profissional como diz a lei, não conseguem renovar o alvará porque há uma taxa que têm que pagar. Quando o mercado não vai lá por si só, o Estado tem que intervir e ajudar, não apenas como regulador, tem que entrar como parceiro e ajudar a resolver as situações difíceis.

Estamos já em 2019, é o terceiro ano de mandato do Governo de Ulisses Correia e Silva, e tendo em conta o estado da comunicação social neste momento, com vários problemas por resolver, e o feedback que vem da tutela, como antevê os próximos anos deste sector em Cabo Verde?

Serão anos complicados se não houver uma mudança de rumo no relacionamento entre a tutela e os actores do campo da comunicação social. Já era altura de o Governo começar a cumprir o que está no seu programa. Se a gente ler o programa do Governo nessa parte que diz respeito à comunicação social, vê claramente que o que está lá ainda não foi feito: a desgovernamentalização do serviço público, a criação de entidades tipo conselho de opinião ou conselho do utente, provedor de rádio e televisão, que são, no fundo, as principais marcas desse programa. Infelizmente, tivemos dois anos e meio de muito desgaste, de um braço-de-ferro, de uma confrontação e de uma crispação que era absolutamente desnecessária e isso tem emperrado o avanço da comunicação social. Nós não podemos apenas olhar e perspectivar mudanças nos rankings, temos que ir além. O Governo já diz que encomendou um estudo ao INE, presumo que seja de audimetria ou do grau de satisfação dos cabo-verdianos em relação à prestação dos órgãos de comunicação social, portanto vamos esperar por esse estudo. Eu gostaria de dizer que os próximos tempos se advinham auspiciosos, mas os sinais que temos tido não auguram nada de bom.

 

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SOBRE O AUTOR

Teresa Fortes