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Médico especialista Luís Francisco Alvarenga Varela. "Cabo Verde precisa adotar medidas inteligentes de prevenção ao AVC"
Entrevista

Médico especialista Luís Francisco Alvarenga Varela. "Cabo Verde precisa adotar medidas inteligentes de prevenção ao AVC"

Médico conceituado em Portugal, o cabo-verdiano natural de Assomada, Luís Alvarenga Varela, é membro da equipa da Unidade de Acidente Vasculares Cerebrais da Guarda, recentemente agraciada com o prémio Diamond Status nos Angels Awards, uma distinção que tem como objetivo motivar o aperfeiçoamento dos cuidados com a saúde voltada para a melhoria do controlo de AVC.  Em entrevista ao Santiago Magazine, o Doutor Luís Alvarenga fala-nos do seu dia a dia de trabalho, do desempenho de excelência da sua equipa e do orgulho de estar entre os melhores do mundo. Dono de um percurso invejável no universo da Medicina, Alvarenga Varela defende a adoção de medidas inteligentes de prevenção ao AVC, por parte de Cabo Verde, relembra a sua missão em 2009, para apoiar o nosso país no controlo da epidemia da Dengue e fala com honra do seu amor à profissão e da sua afinidade com as áreas de infecciologia e o Risco cérebrocardiovascular.

Santiago Magazine: Em primeiro lugar, apresenta-nos o Dr. Luís Francisco Alvarenga Varela. Fala-nos um pouco de si e de sua carreira.

Luís Alvarenga Varela: Sou natural de Santa Catarina, ilha de Santiago, licenciado em Medicina pela Faculdade de Medicina de Coimbra em 2000, trabalho no Hospital da Guarda desde 2001 e estou ligado à Unidade de Acidentes Vasculares Cerebrais (UAVC) desde a sua criação em 2008 e exclusivamente na UAVC desde 2019. Possuo uma formação em ecografia pela Faculdade de Medicina de Lérida – Espanha, sou pós-graduado em Consentimento Informado pela Faculdade de Direito de Coimbra e sou especialista em Medicina Interna desde 2008. Tenho doutoramento em Medicina com grau de Doutor europeu pela Faculdade de Medicina da Universidade de Salamanca em 2015, Pós-Doc em Gestão Hospitalar pela Universidade de Salamanca em 2018 e estou inscrito em três ordens de médicos: Portuguesa, Cabo-verdiana e Suíça. Sou professor Auxiliar Convidado na Faculdade de Medicina na Universidade da Beira Interior (UBI) desde 2015, coordenador do Núcleo Saúde em Português da Guarda (ONG) com sede internacional em Coimbra, desde o início em 2016 e membro e ex-secretário da Associação dos Médicos Católicos da Guarda. Em Cabo Verde, fiz estágio em Saúde Pública e Clínica Geral na Achada Santo António (cidade da Praia) com a Drª Dulce Duprett no ano de 2001 e, em 2009, fiz voluntariado em Cabo-Verde, durante a situação de emergência por epidemia da dengue integrando a equipa portuguesa.

Como é o seu dia a dia de trabalho?

O meu dia a dia é dividido entre a enfermaria, consultas externas, reuniões multidisciplinares com fisiatra, internistas/internos, nutricionista, fisioterapeuta, psicóloga, farmacêutica, enfermeiro-chefe e enfermeiro de reabilitação, orientação dos alunos em rotação, preparação de temas para os internos de formação, respostas aos estudos/ensaios clínicos em que estamos envolvidos e planificação quase diária dado à dinâmica imposta pela situação da Covid-19.

A Unidade de Acidentes Vasculares Cerebrais da Unidade Local de Saúde da Guarda (PT), da qual faz parte, foi agraciada em dezembro de 2020 com o prémio Diamond Status nos Angels Awards. Como se sente fazendo parte de uma equipa distinguida com um prémio tão importante como esse e que destaca os melhores a nível mundial?

O prémio, efectivamente, tinha sido atribuído uns meses antes em Viena. Mas, devido aos condicionalismos da pandemia, a entrega simbólica só aconteceu no dia 15 de dezembro. A premiação exige de toda a equipa, uma maior responsabilidade e também maior motivação para fazer mais e melhor em prol dos nossos doentes e de seus familiares.

O que a vossa equipa tem feito para destacar-se entre os melhores na prática relacionada com o AVC?

Esse prémio traduz a excelência do trabalho efetuado aos doentes que sofreram o AVC. Desde a sua saída do domicílio, transporte pelos bombeiros, receção na Urgência/Emergência, realização de TAC-CE em menos de uma hora e outros EADs, início do tratamento fibrinolítico (dissolução do trombo) e/ou encaminhamento, sem perda de tempo, para a Unidade de Nível superior (Hospitais da Universidade de Coimbra) com os quais o meu Hospital está ligado por telemedicina, para tratamento mecânico (trombectomia). Passando da urgência para o internamento, estabilização do doente, aplicação de protocolos da Unidade para o pós-fibrinólise, fisioterapia, terapia da fala e tudo em conjunto de forma sincronizada. Em cada momento, aplicamos a máxima que ‘o tempo é vida, é cérebro’.

O vosso trabalho na UAVC está baseado em quê?

O nosso trabalho (médico, enfermagem e restante equipa multidisciplinar) consiste em acompanhar a par e passo, estar atento a todos os sinais, quer de agravamento ou de melhoria dos doentes e atuar de imediato.

A quem dedica esse prémio?

Dedico-o à minha mãe, Filomena Tavares Alvarenga, falecida há 2 anos, não só porque também sofreu vários AVC’s mas também pelo rigor que me incutiu enquanto mãe e educadora.

Saber que um cabo-verdiano é membro de uma equipa premiada na categoria Diamond é motivo de orgulho para todos. Cabo Verde pode ou deve sentir-se parte desta distinção, já que tem um filho entre os premiados?

Sem dúvida que sim porque nós também somos produto do ambiente onde nascemos, crescemos e nos tornamos homens engajados e interventores na sociedade.

Fala-nos dos números. Sabe-se que o AVC é uma das patologias que mais provoca a morte no mundo.

Os números importam porque as pessoas são importantes e têm a sua dignidade, independentemente da idade, tendo elas 40, 80 ou 90 anos. A cada dois segundos alguém tem um AVC; a cada cinco segundos alguém morre de AVC e um em cada quatro de nós irá ter um AVC.

São números assustadores. Quais são as principais causas da doença e como se prevenir?

A hipertensão arterial, dislipidémia (colesterol alto), cardiopatia embólica (fibrilação arterial), obesidade, diabetes, tabagismo, alcoolismo. Muitas dessas causas são evitáveis. O AVC previne-se corrigindo essas alterações que, muitas vezes, passa pela mudança do estilo de vida (alimentares e exercício físico). Evitar o sal, certos tipos de gorduras, optar por carnes brancas, evitar o álcool, drogas, evitar alimentos processados, comer frutas da época (evitar enlatados), comer legumes. E, quando medicado, seguir os conselhos médicos e cumprir a medicação.

Em Cabo Verde, a doença também é motivo de preocupação. Segundo um estudo divulgado em 2019, no ano de 2017 o nosso país registou uma taxa de 40% de óbitos provocado por Acidente Vascular Cerebral. Quais serão os motivos para a tão elevada taxa de mortalidade a volta dessa patologia?

A mortalidade pelo AVC já é alta em sí. Muitas vezes, as pessoas ou familiares não reconhecem os sinais de alerta. Ou seja, não sabem identificar os tais 3 “F’s”: Face assimétrica, Falta de força num braço ou numa perna e Fala arrastada. Em Cabo Verde faltam redes de ambulâncias para transportar os doentes com suspeita de AVC rapidamente ao Hospital e há insuficiência de equipamentos para tratamento dos doentes. É fundamental ter aparelhos de TAC disponível 24h00 por dia e 365 dias por ano, para a confirmação do diagnóstico, isquémico ou hemorrágico. Há que tratar o AVC, à luz das evidências científicas mais recentes europeias (ESO) e americanas (AHA) contemplando, por isso, a fibrinólise ou trombectomia, quando aplicáveis. Aos pacientes com AVC devem ser dados sempre prioridade nas Urgências. Afinal é uma emergência. Penso que deve haver ainda uma aposta profunda da Saúde Pública em campanhas de sensibilização sobre a doença, além de um forte investimento por parte da Comunicação Social, na transmissão correta e clara de informações sobre o AVC.

O que Cabo Verde precisa fazer para diminuir a doença entre a população?

Cabo Verde precisa de uma campanha profunda e contínua por parte da Saúde Pública, que deve arranjar formas inteligentes de se chegar à maioria da população. É preciso que as nossas crianças aprendam na escola, desde muito cedo, como prevenir o AVC e como socorrer as pessoas quando apresentarem os primeiros sintomas.

Faz falta a Cabo Verde uma Unidade de Acidentes Vasculares?

A resposta é, obviamente, sim. Já deveria ter.

Alguma equipa cabo-verdiana, ou algum médico que atua em Cabo Verde, faz parte da Comunidade do Angels? Se não, o que falta ao nosso país para se tornar membro?

O Projeto Angels contempla países europeus, Argentina, Malásia, Vietname, África do Sul, entre outros. Mesmo os países europeus têm que cumprir um conjunto de itens para entrarem para a iniciativa Angels, que baseia-se em tratamento de excelência no AVC. E Cabo Verde terá que dar um passo à frente.

Ser membro de um programa internacional, seria um grande passo para treinar equipas e capacitar médicos de forma a que os pacientes tenham o mesmo nível de tratamento?

A experiência acumulada ao longo de vários anos ou de algum tempo, poderá sempre servir para ajudar os iniciantes. Nós próprios, antes de começarmos com a nossa Unidade, fomos ver como funcionava as outras unidades já existentes. A cooperação entre os hospitais e a telemedicina são fundamentais.

Foi distinguido ainda com a sua tese de doutoramento “Estudio Descriptivo de la Epidemia de Dengue en Cabo-Verde, 2009/2010”. Porquê o seu interesse pelo tema?

Há quem como eu, dentro das várias disciplinas na Medicina, tem uma grande afininidade por uma área específica. No meu caso a infecciologia e o Risco cérebrocardiovascular são o meu mundo.

A tese surgiu após integrar uma missão a Cabo Verde em 2009. Conte-nos um pouco de como foi essa missão?

Foi bastante difícil e ao mesmo tempo, desafiadora, encorajadora e enriquecedora. Isso tudo porque algum de nós, respondendo ao apelo do Professor Fernando Regateiro, PCA dos CHUC na altura, não tivemos tempo nem para despedirmo-nos dos nossos diretores de Serviço e/ou dos nossos familiares mais próximos. Despedimo-nos por telefone, já estando no Aeroporto de Lisboa, prestes a viajar. Saímos da Portela, fizemos escala no Sal, passamos a noite na Boavista, para finalmente voarmos para a ilha de Santiago. A segunda equipa, da qual eu fazia parte, mal teve o tempo de receber o testemunho da primeira equipa. Assim que chegamos instalamos no HAN. Chegamos durante o pico da doença, foram 10 dias seguidos de urgência no HAN, de manhã à noite num trabalho intensivo. Eu pessoalmente, já levava alguma consternação pelo falecimento de duas pessoas conhecidas. As minhas amigas Neusa e Minduca tinham falecido devido à dengue, uma semana antes da nossa chegada. Tinham morrido na época quatro pessoas. Perante esse contexto, surgiu a ideia da tese já durante a minha estadia em Cabo-Verde. Foi muito penoso para mim.

Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas na época?

A inexistência de uma Unidade de Cuidados Intensivos e a falta de apetrechamento da Urgência. Faltavam monitores cardíacos, bombas infusoras e gasómetro.

Acha que Cabo Verde está hoje melhor equipado para encarar uma epidemia?

Não se prepara da mesma forma contra a epidemia provocada por um mosquito (dengue) ou contra a Covid-19. No caso da epidemia da dengue, por exemplo, pressupõe-se saneamento do meio, medidas de urbanização, uso de repelentes, um certo tipo de vestuário, enquanto que numa epidemia como a Covid-19 exige-se máscaras, lavagens das mãos, distanciamento, confinamento e aguardar que a vacina chegue. Mas essa é uma questão que não saberei responder com precisão. É uma pergunta que cabe aos atores locais responder.

O mundo está a enfrentar a pandemia da Cocid-19. Como está a lidar diariamente com esta situação?

É como andar em cima de uma corda. Um equilíbrio instável, pode-se assim dizer. Requer uma disciplina rigorosa todos os dias e em todos os momentos. Criamos circuitos diferentes, blocos só para doentes da Covid, enfermaria só para a Covid, testes a todos os doentes provenientes de fora, antes de ser internados, testes sempre que há suspeitas, testes à saída para lares ou instituições, suspensão de visitas, etc.

Tem acompanhado a partir de Portugal o evoluir da doença em Cabo Verde. Enquanto médico, como avalia o nosso desempenho no que tange o controle do vírus?

Vivemos uma crise global de saúde pública, melhor dizendo, uma grande catástrofe em que as vítimas ultrapassam em larga escala os recursos necessários. O quadro da Covid-19 é tão dinâmico que exige um reinventar a cada instante. Pode-se sempre fazer melhor, mas do meu ponto de vista, fez-se o máximo. Sendo um país arquipelágico, penso que se evitaria uma propagação desmedida logo no surgimento dos primeiros casos na ilha da Boa Vista, caso houvesse uma maior consciência cívica. E o mesmo, aplica-se para as ilhas subsequentes.

Em poucas palavras, o que dizer aos cabo-verdianos neste momento de crise sanitária mundial?

É fundamental evitar o pânico, mas a inconsciência não é boa conselheira. Atenção redobrada, com lavagem de mãos frequentemente, uso de máscaras, luvas e distanciamento. Nada de festas ou ajuntamentos mesmo em funerais e atenção às missas, até à aquisição da vacina. E os governos, atual e futuro, devem reajustar o orçamento no sector da Saúde para fazer face à pandemia, em detrimento de outros setores.

Sabemos que integra uma das melhores equipas em Portugal, pensa alguma vez desenvolver um projeto voltado para Cabo Verde?

Trabalho em rede e graças às novas tecnologias e plataformas digitais é possível trabalhar de qualquer ponto do mundo com teleconsultas ou teleconferências. Contudo, é importante haver vontade de parte a parte, conjugar essas vontades, uma cooperação séria, uma atitude responsável e um envolvimento a 100%.

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