• Praia
  • 29℃ Praia, Cabo Verde
Cremilda Medina: Quando dei por mim, já tinha abraçado a Morna
Entrevista

Cremilda Medina: Quando dei por mim, já tinha abraçado a Morna

Dona de uma voz doce e melodiosa, ela canta o amor, a saudade, a nostalgia, o mar, a emigração, a partida e o regresso, o dia a dia do cabo-verdiano. Ela canta a Morna. Ela canta a Coladeira. Cantora e intérprete, natural do Mindelo, ela faz questão de manter as conexões com as raízes e tradições cabo-verdianas. Seu nome é Cremilda Medina, um retrato perfeito de uma geração que busca preservar as tradições e lança as bases para um futuro mais próspero e equilibrado no meio musical cabo-verdiano. Nesta entrevista ao Santiago Magazine, Cremilda fala da sua “íntima” relação com Morna - Património Cultural Imaterial da Humanidade, dos prémios conquistados, dos efeitos da crise sanitária na música, e anuncia a chegada de novos trabalhos discográficos. Confira!

“A música é uma das formas mais belas de se expressar o que me vem da alma, os nossos sentimentos na sua pureza. Dentro de mim a música é muito especial. Tenho a felicidade de poder expressar muitos dos meus sentimentos através da música, sinto-me abençoada por isso”

Santiago Magazine - Fala-me um pouco de si. 

Cremilda Medina - O meu nome é Cremilda Jesus Medina, nasci na cidade do Mindelo na ilha de São Vicente a 18 de março de 1991. Tenho sete irmãos, 30 anos e desde 2012 que resido na cidade da Praia.

Chegou a participar em criança num concurso de talentos na escola. Já sentia nesta altura que a música era o seu destino?

Não. Nunca sonhei vir a ser cantora. Em criança participei na Gala Pequenos Cantores em São Vicente o que me despertou o gosto e interesse pela música. Como mencionei anteriormente a minha participação na Gala Pequenos Cantores fez-me ganhar o gosto pela música, mas nunca pensei que iria ser esse o meu destino.

Quando em 2012 participou no concurso de vozes Talentu Strela já tinha o hábito de atuar em palco?

Sim, já cantava nas noites cabo-verdianas no Mindelo. Mas nunca tinha estado num palco grande para cantar para uma plateia tão grande. Eu costumava cantar nas pequenas casas de musica e bares. Talentu Strela, no parque 5 de julho foi o meu primeiro grande palco. Também foi a primeira vez que via muita gente na plateia. Foi uma sensação estonteante cantar para tanta gente.

A essa altura já vislumbrava no futuro o reconhecimento que tem hoje? Sei que acumula alguns prémios internacionais.

Nessa altura não pensava no que poderia vir a acontecer, mas felizmente tenho tido alguns reconhecimentos nacionais e internacionais, o que me deixa muito feliz. Em 2011 tive o meu primeiro reconhecimento nacional, o de melhor Intérprete Feminino na gala ”Mindel Prémio” em São Vicente. Na época ainda nem pensava no meu primeiro álbum. Por dois anos consecutivos, em 2016 e 2017, venci prémio Sapo Award, em Cabo Verde. E em 2018 e 2019 fui galardoada com o prémio World Music, no Estados Unidos da América.

Da primeira vez nunca se esquece. Lembra-se da sua premiação?

Lembro-me perfeitamente da premiação como melhor interprete feminino na ilha de São Vicente, em 2011. Foi uma sensação maravilhosa, não estava a contar e isso deu-me mais força para continuar. Em 2018, quando recebi o primeiro reconhecimento internacional nos EUA nos IPMA com a coladeira “Divôrce Um’ Ca Ta Sená” de Manuel de Novas, não consegui aguentar e chorei. A emoção foi imensa. Foi um momento mágico, ser reconhecida nos EUA com o prémio internacional de “World Music”, num projeto que foi feito com imenso sacrifício.

Sei que na linhagem direta de sua família não há músicos? De onde acha que veio tanto talento?

Apesar de em minha casa não ter músicos profissionais, desde sempre se ouvia muita música, de todos os estilos e origens. O meu pai viajava muito e trazia muitos discos de vários cantores de várias nacionalidades, o que fez com que desde cedo eu tivesse contacto com a música e com várias culturas. Posso dizer que meu interesse começou daí. Quanto ao talento, não gosto muito de o aplicar assim. Prefiro dizer que aquilo que faço, quando interpreto um tema, faço-o sempre com muito amor e com muito respeito por quem o compôs, tenho que perceber o que estou a cantar, o sentimento que aquela composição carrega e tento sempre transmitir isso a quem me ouve.

Quando criança que ritmos e estilos musicais tinha o costume de ouvir? E essas músicas teve alguma influência na cantora que és hoje?

Quando era criança o que mais ouvia era Reggae, Cabo Zouk e Samba, mas com o passar dos anos comecei a ouvir mais Morna e Coladeira e foi aí que me despertou os sentimentos que hoje tenho especialmente pela Morna.

Nasce, assim, a voz da Morna

E hoje és das vozes mais marcantes da música tradicional de Cabo Verde. Porquê elegeu a Morna e a Coladeira?

Aprendi a gostar da Morna quando comecei a estudar os seus variados significados, o que ela transmite e o significado que ela tem para Cabo Verde e para as nossas gentes. Para mim a Morna em especial, transmite-nos a nossa essência, o que somos, o que vivemos, retrata os temas do nosso passado, do presente e mesmo de um futuro que sempre se augura melhor para todos. Quando comecei a interiorizar a Morna, vi que realmente é o estilo que mais combina comigo por tudo o que ela transmite. A Coladeira também me é muito especial, um ritmo mais acelerado, onde na sua grande parte das vezes retrata situações e vivências muito engraçadas do nosso cotidiano, onde eu costumo dizer que gosto de “um mal fêt”, ou seja de coladeiras que têm aquela segunda intenção em algumas palavras que nos fazem rir, que nos alegram. Esse é o meu estilo de coladeira preferido.

A Morna foi internacionalizada por Cesária Évora. Vários críticos apontam Cremilda Medina como uma das herdeiras de Cize. Qual é o peso dessa responsabilidade de carregar nas costas um nome como a da Cesária Évora?

Eu agradeço a todas as pessoas que de certa forma me vêm como uma seguidora da nossa Morna e da nossa eterna Cesária Évora. Sem dúvida alguma, Cesária para mim é o exemplo maior de como uma pessoa simples e humilde, dona de uma voz sem igual conseguiu chegar onde chegou. Ela, juntamente com o seu produtor, levaram o nome de Cabo Verde ao mundo, um feito notável ao qual todos nós devemos agradecer. Eu, assim como muitos outros interpretes, somos herdeiros de um legado deixado não só pela Cize como por muitos outros como Bana e Ildo Lobo, entre outros que ainda hoje continuam a levar o nome de Cabo Verde pelo mundo como o Tito Paris, a Titina Rodrigues ou a Maria Alice por exemplo. A responsabilidade é grande, mas aquilo que eu faço é tentar transmitir sempre às pessoas os sentimentos de cada composição, o que ela representa e podem contar sempre comigo para continuar a levar ao mundo as nossas raízes, a nossa Morna.

Chegou a conhecer a Cesária? Alguma vez a viu de perto ou assistiu a algum concerto dela ao vivo?

Infelizmente não tive a oportunidade de a conhecer pessoalmente, só me cruzei uma vez com ela há muitos anos no aeroporto em Mindelo. Ela regressava de uma viagem e a vi de longe. Visivelmente aparentava um ar cansado, então decidi não incomodá-la. Infelizmente poucos dias depois ela veio a falecer. Se fosse hoje teria ido ter com ela, pois realmente nunca sabemos quando poderemos ter uma segunda oportunidade na vida.

Morna, Património Imaterial da Humanidade. Para si, que impacto isso tem para a música cabo-verdiana, para nossa cultura e para o país?

Eu, desde sempre dizia que a Morna é uma das nossas melhores formas de continuar a exportar o nome de Cabo Verde e da nossa cultura. Se reparar o nome de Cabo Verde hoje é conhecido por muita gente no mundo pela música, pela morna e em especial pela Cesária Évora. Deveríamos aproveitar isso como um “produto” turístico, para chamar mais gente a Cabo Verde. Penso que o nosso país deve apostar não somente no Turismo de resort. Devemos apostar também no Turismo Cultural, criar bases, roteiros sobre a nossa cultura. Agora, com o selo da UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade espero que realmente se faça algo mais a fundo sobre a Morna.

O que significa para si cantar a Morna? Que cenário crias, quando fechas os olhos enquanto entoas uma Morna?

Quando canto Morna, tudo muda. Quem me conhece diz que eu em cima do palco me transformo, que não pareço a Cremilda do dia a dia. A Morna dá-me uma imensa tranquilidade, faz-me viajar no tempo, transmite-me uma paz interior única. São muitas as vezes que fecho os olhos quando canto porque faz-me sentir ainda mais aquilo que estou a cantar, sinto que consigo transmitir com mais emoção aquilo que estou a sentir no momento.

Quando é que realmente se descobriu a Cremilda, cantora e intérprete de Morna e Coladeira?

Tudo veio de uma forma natural. Quando dei por mim, inconscientemente já tinha abraçado a Morna e me tornado na Cremilda que hoje sou. Mas sei que ainda tenho muito a aprender e a vida vai-me mostrando isso mesmo. Quando olho para trás vejo isso, vejo que tudo está em contante mudança, vejo que a Cremilda amadureceu, aprendeu e evoluiu e é assim que quero continuar a aprender cada vez mais.

Canta outros ritmos tradicionais cabo-verdianos como Batuque e Funaná? Como te sentes dentro destes ritmos?

Já cantei Batuque e Funaná, gosto e sinto-me a vontade a cantá-los, mas não me revejo muito nesses estilos. Respeito imenso todos os estilos musicais, mas julgo que cada um sente de uma forma diferente cada estilo musical. Não é pelo facto de o cantor “A“ ou “B” não interpretar um certo e determinado estilo musical que não goste dele. Eu gosto muito, mas não me identifico muito com eles.

O single “Raio de Sol” de 2016 foi um anúncio do sucesso que estava por vir. Fala-me um pouco da sua experiência com o “Folclore” e como foi a jornada de sua apresentação?

“Raio de Sol” surgiu de uma forma muito especial. A sua letra retrata uma homenagem à minha avó materna, já falecida, o que veio dar uma maior carga de sentimento a essa morna. Foi com este single que posso dizer que me lancei no mercado musical, pois foi devido à recetividade que “Raio de Sol” teve que me deu mais coragem e força para pensar no álbum “Folclore”. Após a edição de “Raio de Sol” senti mesmo a necessidade de partir para um álbum completo, pois eram muitas as pessoas que me perguntavam onde poderiam encontrar um trabalho meu e como este single teve uma excelente aceitação do público e foi tão acarinhado, decidimos então avançar para a concretização do “Folclore”. Em 2017, após uma escolha criteriosa das músicas que iriam fazer parte do álbum, chegou o momento da sua edição. A partir daí tudo mudou. As pessoas receberam o projeto de uma forma fantástica e inexplicável para mim, pois não estava à espera.

“Folclore” foi considerado um sucesso. Ultrapassou as suas expectativas?

Felizmente, pode-se dizer que foi e ainda é um sucesso, pois o seu repertório conseguiu entrar no ouvido das pessoas. Foi um álbum foi feito de coração e com muito sacrifício, mas sempre com muito profissionalismo. Confesso que para primeiro álbum superou as minhas expetativas, a aceitação por parte das pessoas, o carinho com que me recebem e me tratam, sou abençoada e agradeço todos os dias por isso.

Vem aí um novo disco...

Após o “Folclore” já colocou no mercado alguns singles. Quais?

Após o “Folclore” editei mais 4 singles, sendo que dois deles fazem parte do meu próximo álbum. Em 2018 quando ainda se falava na candidatura da Morna a Património Cultural Imaterial da Humanidade, senti uma enorme vontade de fazer alguma coisa que de certa forma fosse de encontro à candidatura e a pudesse ajudar. Aí nasceu a ideia de convidar o Tito Paris para gravarmos em dueto o “Nôs Morna” de Manuel de Novas, um dos meus compositores de eleição. Prontamente, a ideia foi aceite pelo Tito e surgiu assim o primeiro single do meu próximo álbum. Em 2020 por altura do Dia Nacional da Cultura e das Comunidades editei “Tributo Final”, também de Manuel de Novas, como que uma mensagem de alerta para todos sobre o estado da Cultura no nosso país. Ainda no ano passado editei mais um single “Amá Sem Mêde”, de Morgadinho, que fará também parte do próximo álbum e no fim do ano desejei a todos as boas festas ao editar o single “Recordai”, de Teófilo Chantre.

Já tem data para o lançamento?

O novo disco era par ter sido editado já no ano passado, os planos eram esses desde 2019, mas com a pandemia Covid-19 tivemos de reformular datas. Ainda pensamos que poderia ter sido possível a sua edição no final do ano passado, mas acabamos por adiar novamente, uma vez que para mim não faz muito sentido editar um álbum e não o poder promover. Editar só por editar não me diz nada. Assim, acabamos só por editar mais um single, “Amá Sem Mêde. Como ainda não conseguimos prever como irá ser o decorrer da pandemia, por agora preferimos mesmo manter em pausa o novo álbum. Quando a situação melhorar procederemos à sua edição.

Compõe?

Não, nunca compus, simplesmente interpreto. Até hoje nunca senti a necessidade e inspiração para compor, pois o que gosto mesmo é de interpretar e felizmente somos um país rico em bons compositores.

No Folclores há alguns compositores novos entre os grandes e clássicos da música tradicional cabo-verdiana.

Sim é verdade, eu gosto de cantar aquilo que me diz alguma coisa, aquilo que mexe com os meus sentimentos. Existem compositores da nova geração que conseguem mexer com os meus sentimentos e emoções, o que faz com que eu os aprecie e respeite imenso. Eles dão-me o prazer de os poder cantar, através das suas composições.

Pode-se falar de uma nova geração de músicos que estão a apostar no resgate e na preservação do tradicional, na sua forma mais genuína?

Quero acreditar que sim, quero mesmo acreditar que a nova geração vai ser capaz de não deixar cair as músicas tradicionais em prol de novas e determinadas tendências mais comercias que não passam disso mesmo. Em termos de vozes Cabo Verde tem excelentes vozes da nova geração, masculinas e femininas, mas sinto que em termos de músicos a tocar o tradicional de uma forma genuína já não é muito fácil encontrar. Fico triste com isso pois principalmente a guitarra, o piano, o violino, o clarinete e o saxofone quando não são tocados de uma forma genuína, como eram tocados antigamente, muitas composições acabam por perder o seu brilho.

Como foi trabalhar com Ricardo Cruz, produtor português que já produziu com Mariza?

Foi um momento único na minha carreira. Não o conhecia pessoalmente, mas conhecia o seu trabalho e nunca pensei que ele pudesse aceitar trabalhar com uma pessoa como eu, que não é conhecida, que não tinha grande experiência. Mas felizmente aceitou. Quando o conheci vi a pessoa simples que é, sem manias de grandeza, uma excelente pessoa. Como produtor e músico, um grande profissional com quem hoje posso dizer que tive a honra de poder trabalhar.

Adaptar-se ao novo normal

Como disse há bocado, tudo andava bem, até que a Pandemia virou o mundo de cabaça para baixo. Enquanto artista, como tem sido afetada pelo impacto da pandemia?

Posso dizer que a pandemia afetou-me diretamente, pois tinha decidido que a partir de janeiro de 2020 iria dedicar-me à música a 100%, já que até ali conciliava o meu trabalho de secretariado com a música. Em 2020 tinha oito concertos confirmados só em Portugal e tantos outros em Cabo Verde. Até março tudo estava a correr como o planeado, até que a pandemia veio e fez com que tudo mudasse. De um momento para o outro fiquei sem rendimentos, sem concertos e o projeto do novo álbum ficou em pausa também.

O que fez durante todo o período em que a cultura esteve parada? Também daquelas que teve de se adaptar ao novo normal, atuando através de live show?

No ano passado passei grande parte da pandemia em Portugal, pois em março tinha viajado para lá para um concerto. Fiquei por lá e passei uma grande parte dos dias em casa, até que no verão quando o vírus estava mais controlado, as coisas começaram a melhorar e  consegui fazer dois concertos em Portugal, um em Ponde de Lima e um outro em Oeiras. Em Cabo Verde, também fiz duas participações em concertos. No meio de tudo isto acabei por fazer um pequeno showcase online com o Humberto Ramos no piano, mas não sou muito adepta deste tipo de formato. Sempre preferi os concertos ao vivo, ver as pessoas, sentir o publico.

Mas há quem defenda que, no cenário da pandemia, a live show pode vir a ser uma alternativa para a música?

Para quem não está ligada a uma grande agência não creio que seja financeiramente viável. Se se quer fazer uma coisa de forma profissional, com qualidade, isso têm um custo, eu sei quanto me custou fazer o showcase online sem ter retorno financeiro, fi-lo pelos meus fãs e pelas pessoas que me pediram para o fazer pois tinham saudades de me ouvir. Para se fazer um live show com qualidade é fundamental ter uma grande equipa por trás, como que se fosse um show ao vivo. Por exemplo, não sou muito adepta de live show a partir do telemóvel, porque à partida mesma que a qualidade de imagem seja boa, o som nunca fica bom. E isso pode até prejudicar os próprios músicos e cantores.

O que espera de 2021? Quais as suas perspetivas daqui para frente?

Felizmente este ano tenho participado em alguns concertos, mas espero que as coisas melhorem para se poder pensar em fazer algo mais. Caso a pandemia permita, tenho alguns concertos reagendados para este ano.

Para finalizar, o que é a música e como ela se encaixa dentro de si?

A música é uma das formas mais belas de se expressar o que me vem da alma, os nossos sentimentos na sua pureza. Temos compositores que o fazem na perfeição. Tem composições que mexem imenso comigo, tanto que não as interpreto em público porque sei que não as conseguiria interpretar de início ao fim sem ter de parar em alguma parte, pois devido ao peso que elas têm, e a forma como elas me tocam, não consigo conter os meus sentimentos. Dentro de mim a música é muito especial, leva-me a um outro patamar, facilmente me emociono com músicas que me dizem algo, que me tocam no coração. Tenho a felicidade de poder expressar muitos dos meus sentimentos através da música, sinto-me abençoada por isso.

Partilhe esta notícia