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Língua cabo-verdiana: desconstruindo mitos – Mito 7/12
Cultura

Língua cabo-verdiana: desconstruindo mitos – Mito 7/12

1. Introdução

Persiste ainda, na nossa sociedade, um sistema articulado de conceções equivocadas sobre o crioulo de Cabo Verde[1] (e os crioulos de um modo geral). Apesar de não terem bases científicas, esses equívocos estão profundamente registados no senso comum e infiltrados em alguns de nós. Por isso, têm desempenhado um papel impeditivo importante na concretização de medidas de política linguística favorecedoras do desenvolvimento da língua cabo-verdiana[2] como sejam a sua oficialização e o seu ensino. Tendo em conta o papel do conhecimento na desconstrução dos mitos, discutem-se 12 dessas ideias,[3] mostrando evidências científicas que as contrariam, tendo em vista contribuir para a construção de uma comunidade mais harmonizada em que as línguas de Cabo Verde se possam expandir livremente.

2. Mitos sobre a língua cabo-verdiana[4]

Esses mitos, que menorizam a língua cabo-verdiana (LCV), são produtos de uma configuração sociocultural dominada por uma ideologia linguística colonial que exigia e impunha o domínio da língua do império, apresentada como o modelo ideal de língua e, como contraponto, o aniquilamento das outras, entendidas como símbolo da inferioridade dos seus falantes, para, assim, impor a sua cultura e o seu projeto político. Por isso, esses equívocos foram amplamente difundidos, naturalizados e inculcados na mente dos cabo-verdianos, determinando as suas atitudes face à sua própria língua materna, a ponto de alguns, cada vez menos, felizmente, admitirem que não falam uma língua ou falam algo que ainda não o é.

Assim, na sequência da discussão do Mito 1: O crioulo não é língua, do Mito 2: O crioulo cabo-verdiano é um dialeto do português, do Mito 3: O crioulo é uma deturpação, corrupção do português, português malfalado, do Mito 4: O crioulo é pobre, não tem regras nem gramática (própria) e do Mito 6. O crioulo não corre risco de desaparecimento, prosseguimos com o mito 7.

Mito 7: O crioulo não serve para exprimir ideias abstratas e/ou científicas

Esta ideia tem a sua origem no facto de, por um lado, durante muito tempo, a informação científica ter sido divulgada exclusivamente através da escrita e, por outro, os crioulos não terem uma escrita padronizada. Lamentavelmente, ainda hoje continua a ser assim para a maioria das 7111 línguas do mundo que permanecem ágrafas e para a nossa língua materna que, apesar de dotada de um alfabeto, carece de um sistema de escrita completamente estabelecido.

Além disso, a escrita obriga a escolher palavras e construções mais complexas do que aquelas que são usadas na fala. Isso acontece em todas as línguas. Também, por ser uma língua usada predominantemente em contextos informais, a língua cabo-verdiana não tem tido oportunidades para construir palavras que exprimam certas realidades. Mas não é o facto de as línguas não terem escrita e de ainda não terem determinadas palavras que as incapacita para exprimir ideias abstratas ou científicas.

O estudo científico das línguas e variedades de línguas tem evidenciado que todas gozam de plenitude formal e de potencial comunicativo[5] para expressarem oralmente e por escrito todas as ideias, ou seja, para a conceptualização, e a expressão de sentimentos, informações, relações lógicas (conjunção, disjunção, equivalência, condição, conclusão, etc.), passado, presente e futuro, negação, interrogação e ordens. Na verdade, nunca foi identificada uma língua ou variedade de língua que não permitisse aos seus falantes exprimir o que quer que fosse que soubessem e pretendessem dizer.

Não faz parte das propriedades constitutivas das línguas, elas disporem de terminologia científica, tecnológica, política, legal ou outra. As línguas têm é de ter oportunidade para se desenvolverem, de irem acompanhando as necessidades sociais dos seus falantes. É isso que aconteceu e continua a acontecer com todas as línguas naturais. Na verdade, muitas línguas foram objeto de uma política deliberada e intencional de ampliação do seu potencial como, por exemplo, o finlandês e o hebraico e de criação de terminologias específicas. Aquando dos jogos olímpicos de Pequim, por exemplo, foi desenvolvida terminologia específica para todas as modalidades desportivas em disputa.

Ou seja, como todas as línguas, a língua cabo-verdiana tem capacidade interna para desenvolver palavras que exprimem ideias abstratas como, por exemplo: sabura e morabeza (Pereira, 2006:37)[6] ou krêtxêu, conceitos exclusivos dela e difíceis de traduzir, mesmo para o português. O que ela precisa é de ser oficializada, escrita e introduzida no ensino para poder ser usada amplamente, e ter oportunidade de desenvolver todas as palavras e registos de que os seus falantes necessitarem.

Prova da capacidade interna da língua cabo-verdiana, em todas as suas variedades, são os belos poemas de Eugénio Tavares, Manuel d’Novas, e outros mais recentes com que nos deleitamos nas nossas mornas, coladeiras, funanás e batuques; as peças de teatro, romances e poesia que outros artistas da palavra têm criado em cabo-verdiano; e as traduções de grandes poetas portugueses como Fernando Pessoa e David Mourão-Ferreira por Arnaldo França[7] ou, mais recentemente, a tradução da Bíblia.

*Linguista

[1] A expressão crioulo de Cabo Verde/ crioulo cabo-verdiano será usada para referir à língua cabo-verdiana em situações históricas ou para tipificar a língua.

[2] Conservo a escrita da palavra ‘cabo-verdiano(a)’ com hífen, que é sustentada por duas regras: i) a que manda colocar hífen nos gentílicos dos compostos onomásticos; e ii) a que indica –iano como o sufixo nominativo que exprime o sentido “natural de…”. Além disso, impõe-se a coerência com a posição assumida por Cabo Verde ao ratificar o Tratado (internacional) do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Se essa circunstância, por um lado, põe em relevo o facto de a ortografia (de qualquer língua) ser uma convenção, evidencia, por outro, que, tendo sido aprovada tal convenção, nenhum indivíduo, isoladamente, se pode arrogar o direito de a modificar de acordo com critérios próprios. Com efeito, esta é a forma constante do VOCALP: Vocabulário Cabo-Verdiano da Língua Portuguesa, aprovado pelo Governo e, portanto, o instrumento que fixa, legalmente, a ortografia da língua portuguesa em Cabo Verde. O VOCALP é parte integrante do Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, instrumento previsto no Tratado do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. O VOC segue, adequando, os critérios ortográficos comuns definidos na ‘Sistematização das Regras de Escrita do Português’, discutida e validada pelo Corpo Internacional de Consultores do VOC e aprovada pelo Conselho Científico do IILP em 2016 e foi validado e aprovado politicamente na mais alta instância da CPLP. O VOC e o VOCALP podem ser consultados no Portal do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP).

[3] Agradeço aos membros da extinta Comissão Nacional para as Línguas as observações, os comentários e as sugestões. As falhas restantes são da minha inteira responsabilidade.

[4] Os contra-argumentos dos números 1 a 5 e 7 foram redigidos com base em Pereira, Dulce. O Essencial sobre os Crioulos de Base Portuguesa. Lisboa. Editorial Caminho. Pp. 13-15. 2006. e os restantes com base em Lopes, Amália Melo. As línguas de Cabo Verde: uma Radiografia Sociolinguística. Praia. Edições Uni-CV. 2016.

[5] Cf. o que se disse a este propósito no texto referente ao mito 3.

[6] Pereira, Dulce. O Essencial sobre os Crioulos de Base Portuguesa. Lisboa. Editorial Caminho. Pp. 13-15. 2006.

[7] Poemas de Fernando Pessoa: De Fernando Pessoa, ele-mesmo; Ode Marítima (final), Álvaro de Campos; VI poema de O Guardador de Rebanhos, Alberto Caeiro; e ODE, Ricardo Reis; De David Mourão-Ferreira, Abandono ou Fado Peniche.

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Redação