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Comunicação social afrontada pelo poder*
Ponto de Vista

Comunicação social afrontada pelo poder*

Cabo Verde é uma democracia recente. Não obstante o país figurar na posição 33º no ranking das democracias a nível mundial, o sistema é ainda frágil, imperfeito, ou, como preferem dizer os politólogos, é mais formal do que substantiva. Falar sobre o papel dos media na promoção da democracia em Cabo Verde, obrigam-nos a sobrevoar, ainda que de forma meteórica, o contexto politico, social, económico e cultural que enforma a paisagem mediática nos últimos 40 anos.

Os primeiros 15 anos pós-independência foram caracterizados pela negação dos direitos fundamentais dos cidadãos, com destaque para a liberdade de imprensa; por uma censura institucionalizada; por um modelo de “jornalismo” militante ao serviço do desígnio da “reconstrução nacional”, em que os órgãos de comunicação social funcionavam como aparelhos ideológicos.

A Constituição 1992, que inaugura a segunda República, representa o corolário do processo de transição política para o multipartidarismo. Trata-se de um diploma fundamental para a consagração dos direitos dos jornalistas e dos próprios cidadãos, que, em princípio, deveriam ter acesso a uma informação isenta, plural e séria. É a partir desse marco constitucional que emerge um novo panorama dos media em Cabo Verde, almejando situar-se nos antípodas do que tinha sido prática no regime colonial e durante o regime de Partido Único. É nesse contexto que se lançam as bases para o exercício de um jornalismo profissional; se procede à liberalização do mercado da radiodifusão e surge o jornalismo online por impulso das comunidades emigradas.

Apesar de a transição do regime ter aflorado o papel da imprensa na mediação social, ao promover debates, confrontos de opiniões, o alargamento do material informativo e o esclarecimento de questões de interesse público, o relacionamento entre a comunicação social e os novos donos do poder vai ser marcado por um profundo mal-estar, como nos lembra Isabel Lopes Ferreira, no seu livro intitulado “O Mal-estar no jornalismo Cabo-Verdiano”, publicado em 2002.

Um outro investigador cabo-verdiano que tem procurado compreender a actuação dos media no quadro da democracia liberal em Cabo Verde, Silvino Évora, explica esse mal-estar entre os jornalistas e o novo regime que emerge em 1991 como sendo fase de aprendizagem “em que não há consciencialização dos direitos de liberdade no seio da classe política, pelo que se regista um severo combate à materialização das liberdades fundamentais.” A liberdade de imprensa, escreve o autor de “Comunicação Social e Cidadania”, lançado este ano, afigura-se como uma marca da realidade jurídica, mas distancia-se das práticas sociais.

De acordo com este investigador e docente universitário, com trabalhos académicos publicados em Portugal e no Brasil, não obstante a transição para um regime democrático, os jornalistas vão ser perseguidos pelos actores políticos, principalmente pelos governantes; os processos judiciais contra os profissionais da imprensa vão se avolumar nos tribunais; e, como se não bastasse, os processos de reestruturação são vistos como autênticas “operações de limpeza” dos jornalistas mais incómodos.

Com o regresso do PAICV ao poder, em 2001, permitam-me continuar a citar o Dr. Silvino Évora, inaugura-se uma nova forma de o poder político se relacionar com a comunicação social. O novo Governo, escreve o autor, quão “gato escaldado”, vai permitir inclusive uma linguagem mais agressiva por parte da imprensa.

No entanto, ressalva o também jornalista, ainda que os processos judiciais contra jornalistas de forma indiscriminada tenham desaparecido; ainda que as pressões físicas, cargas policiais, e o espectro de despedimento de profissionais, numa espécie de caça às bruxas, se tenham acabado, os jornalistas e os órgãos de Comunicação Social, por diferentes razões, recusam a prática da liberdade de imprensa, pelo menos da forma como está contemplada na Constituição da República e nas demais leis.

O MPD regressa ao poder em 2016, depois de uma década e meia na oposição, período durante o qual, de forma consistente, critica as políticas públicas dos sucessivos governos do PAICV, liderados pelo Dr. José Maria Neves, para o sector da Comunicação Social.

A instrumentalização dos órgãos públicos; o condicionamento do trabalho dos jornalistas; a escolha de “comissários políticos” para a gestão da RTC e da INFORPRESS; a intromissão dos conselhos de administração na esfera editorial da Rádio e Televisão públicas; a censura em toda a linha; a propaganda dos actos do Governo através dos alinhamentos dos telejornais; a suspensão de programas de grande informação na RCV e na TCV; a captura das grelhas de programação dos órgãos públicos pelos programas institucionais feitos pelos gabinetes de comunicação social dos vários ministérios, etc., etc… esta é, sem pretendermos ser exaustivos, uma short list das principais críticas e posicionamentos políticos feitos pelo MPD durante os 15 anos em que esteve na oposição.

Os dois primeiros anos de Governação do MPD, no que diz respeito ao sector da comunicação social, têm sido marcados por um relacionamento que se pode considerar tenso ou de alguma crispação entre a classe jornalística e alguns políticos do arco da governação. A postura excessivamente crítica – e nem sempre justa - do ministro da tutela em relação ao desempenho dos meios de comunicação social e ao trabalho dos jornalistas tem motivado tomadas de posição por parte dos profissionais de imprensa, devidamente representados pela AJOC.

A troca de “galhardetes” entre o ministro que tutela a comunicação social e a classe jornalística atingiu um nível preocupante, em 2017, tendo as duas partes usado a rede social facebook para se atacarem mutuamente. Este episódio viria, posteriormente, a ser recordado pelo Relatório do Departamento de Estado norte-americano, documento que pela primeira vez inclui a “liberdade de imprensa” como um aspecto onde o país parece estar a recuar.

Coincidência ou não, na sequência dessa refrega ou momento de tensão entre o ministro e a classe jornalística, Abraão Vicente, ao discursar no encerramento de uma interpelação, precisamente para analisar esse mal-estar entre o Governo e os jornalistas, anunciou que o Governo iria avançar com um código de ética e de conduta para os jornalistas do serviço público.

Coincidência ou talvez não, desde essa altura os jornalistas da rádio e televisão públicas têm sido “afrontados”, pelo Conselho de Administração da RTC, com um documento que, a ser aprovado nos exactos termos em que foi redigido, representará um recuo sem precedentes na liberdade de imprensa e no direito à liberdade de expressão dos jornalistas cabo-verdianos. A este propósito, convinha recordar que a AJOC, pelas mãos da anterior direcção, fez chegar ao CA da RTC um documento elaborado com base num parecer jurídico que ponta vários aspectos considerados inconstitucionais no famigerado Código de Ética e de Conduta. Mais recentemente, e no mesmo diapasão, os conselhos de redacção da RCV e da TCV entregaram ao Conselho de Administração os seus pareceres, nos quais expressam a sua preocupação relativa a vários pontos constantes do Código, que outro objectivo não tem senão o de amedrontar e silenciar os jornalistas.

Infelizmente, para a AJOC e para todos os jornalistas da RTC, é cada vez mais evidente que o código de ética e de conduta não é uma iniciativa da administração da empresa, é, antes, uma orientação transmitida pela própria tutela aos gestores da empresa, ao contrário do que se pretende fazer crer.

A AJOC aproveita esta oportunidade para exortar a tutela e a administração da RTC a arrepiarem caminho, abrindo um espaço de diálogo com os jornalistas para que a auto-regulação que se pretende não seja imposta, mas sim gerada num ambiente de participação e adesão voluntária. Temos dito e reafirmamo-lo, aqui e agora, que os jornalistas da RTC não são contra a aprovação de um código de ética e de conduta, mas são contra este código que ameaça com processos disciplinares quem o ignora; que chantageia os jornalistas; que invade a sua esfera privada e que retira toda a liberdade do jornalista de expressar as suas ideias e pensamentos por todos os meios e formas.

Não gostaríamos de terminar esta passagem da nossa comunicação sem nos referimos à postura da ARC que, tendo sido solicitada pelos jornalistas para se pronunciar em relação ao código, preferiu “enterrar a cabeça na areia”, alegando que “se reservava o direito de não interferir em questões internas laborais da RTC com os seus trabalhadores que ponham em causa o conteúdo dos seus órgãos.” E é curiosa esta posição da entidade reguladora porquanto é ela própria que nos lembra que uma das suas atribuições, de acordo com a alínea f) do artigo 7º dos seus estatutos é “Garantir os Estatutos dos Jornalistas”. Precisamente este documento que está a ser posto em causa em muitos dos articulados pelo código da vergonha que a RTC quer impor aos seus jornalistas. Acreditamos que se a ARC tivesse feito o que lhe competia, isto é, estudado e analisado o código de ética e de conduta, cuja proposta lhe foi enviado pela AJOC e pelo CA da RTC e sobre ele tomado uma posição, há muito que as dúvidas estariam dissipadas e o braço de ferro entre os jornalistas e a administração da empresa completamente ultrapassado. Limitar-se a dizer, como fez a ARC, que “estará atenta à aplicação do presente código, com vista à salvaguarda das leis da comunicação social, em geral e, sobretudo, para garantir o Estatuto do Jornalista…” é eximir-se das suas responsabilidades. Adiante.

Com quase três anos de governação, a expectativa em torno de uma profunda reforma no sector da comunicação social, tende a esfumar-se, para desânimo dos jornalistas e demais actores que intervêm no campo mediático, bem como dos cidadãos, ao fim a e ao cabo, os destinatários de um serviço público de referência e de qualidade.

No seu programa, o Governo promete assegurar a “desgovernamentalização do serviço público, garantindo a sua independência, isenção e pluralismo”. O executivo promete dotar o serviço público de condições técnicas, tecnológicas, financeiras e organizacionais, para que possa cumprir de forma eficiente a sua missão. O O Governo promete ainda assegurar os direitos dos jornalistas, de molde a que cumpram a regras da sua profissão, em conformidade com as melhores práticas internacionais.

Para a AJOC, a desgovernamentalização do serviço público passa pela instituição de um novo modelo de nomeação dos gestores da RTC e da INFORPRESS, que seja misto, plural, no qual intervenham outros actores como o Parlamento ou a Presidência da Republica, Universidades, Fundações ou ONG que defendam a liberdade de imprensa e o direito dos cidadãos à uma informação rigorosa e de qualidade.

É bom lembrar que poucos dias volvidos sobre a tomada de posse, o Sr. Primeiro-Ministro reafirmou, em entrevista ao programa “Discurso Directo”, da RCV, a intenção do Governo em adoptar um novo modelo de governança do serviço público, em linha com o que o Movimento para a Democracia havia defendido durante as campanhas eleitorais, discordando apenas o Dr. Ulisses Correia e Silva da intervenção da Autoridade Reguladora da Comunicação Social na escolha dos gestores da RTC, como propunham os estatutos da RTCI, que entretanto, foram revogados…

Posição que a AJOC também defende, pois não faz sentido que a ARC, enquanto entidade Reguladora, intervenha na composição dos órgãos de gestão das reguladas.

Ainda nos primeiros 100 dias da Governação, o ministro da Cultura e das Industrias Criativas deixou entender, durante um debate promovido no programa “Espaço Público”, da RCV, que o Governo estaria empenhado em instituir um novo modelo de nomeação dos Conselhos de Administração das empresas públicas de comunicação social. Depois de garantir que o primeiro Conselho de Administração da RTC, depois das eleições de Março de 2016, não teria a presença de nenhum jornalista e de nenhum quadro da RTC, Abraão Vicente assegurou que a equipa de gestores da RTC que ia ser escolhida pelo Governo, novamente sozinho, teria um caracter provisório até à adopção de um novo mecanismo plural de escolha dos administradores.

A nomeação recente de um terceiro administrador da Radiotelevisão cabo-verdiana para recomposição do conselho de administração que há quase um ano se encontrava desfalcado, desde a saída da Eng.º Sofia Silva em Outubro do ano passado – portanto, numa situação de ilegalidade e de violação dos estatudos da empresa – demonstra que entre o discurso e a prática vai uma longa distância e que não existe, pelo menos por ora, qualquer vontade politica ou interesse em mudar as regras do jogo para a nomeação dos gestores do serviço público de rádio e televisão.

A incoerência é gritante também no que diz respeito à Agência Cabo-Verdiana de Notícias. No ano passado, 2017, o ministro da tutela foi ao Parlamento dizer “alto e bom som” que a figura de “gestor único” ou “gestor executivo” para a INFORPRESS, criado pelo anterior Governo, violava a lei de bases do sector empresarial do Estado. Por isso, o executivo prometia realinhar o modelo de gestão da agência com as exigências legais. Toda a gente se lembra de ouvir o ministro a discorrer, em entrevista à TCV, sobre o perfil dos três gestores que iam ser indigitados para a agência noticiosa. E o que temos hoje? A figura do Gestor Único.

Comunicação de Carlos Santos na conferência internacional promovida pelo Governo, intitulada; "Desenvolver a promessa Democrática: Reforçar a Formação mediática e o combate a desinformação em Cabo Verde", realizada na Cidade da Praia, 15 de Outubro de 2018.

* Título da responsabilidade da redacção

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