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‘Rua Antes do Céu’ ou a intacta imanência na poesia de José Luíz Tavares
Ponto de Vista

‘Rua Antes do Céu’ ou a intacta imanência na poesia de José Luíz Tavares

Há demiurgia quando aquilo que se diz se confunde com os contrastes da música que o pronunciam. É o que levamos das leituras de Rua Antes do Céu de José Luiz Tavares.

Comecemos pela porta de entrada, esse laço incerto que quebra pragas e que quase une o desavindo com que a terra se faz oscilação, ilha, escora de magma, rua, céu, habitação, telhado, enfim: paisagem proscrita para que o poema desequilibre pelo menos uma parte essencial do mundo.

Nos poemas de José Luiz Tavares, a orografia não evoca apenas o território. Na realidade, ela evoca duas entidades incessantemente em jogo: de um lado, os estados interiores que visam a iluminação e as alturas (o céu, os longes, os telhados) e, do outro lado, a queda existencial (outra disposição final não existirá no “enfrentamento com o real”, opondo-se ao “tremendo esgar do tempo” – II/13). Mas haverá ainda uma terceira entidade que está tão em jogo quanto estas duas primeiras: a própria relação, ou vínculo, que entre ambas se estabelece. Paul de Man descreveu a metáfora reflectindo esta mesma tríade, ou seja, como aquele tipo de “imitação em que o teor imita o vínculo”(1).

A metáfora suscita o vínculo entre, por exemplo, “as serranias” e os “telhados”, funcionando este vínculo como um vaivém que, ao jeito de um simples vector em movimento, atravessa campos semânticos diversos, enquanto o ‘teor’ se confunde com o que aparece enunciado à superfície do texto. Um segue o deslocamento do outro, sendo a significação o recorte sempre incerto que se liberta deste vaivém.

Os próprios títulos que percorrem Rua Antes do Céu se dispõem ao sabor deste vaivém que vai sempre gerando e imitando o seu vínculo secreto: o céu como limite (o espaço e a iniciação sonhados na vertical) e a errância trazendo em si o desígnio da viagem (ou o espaço da erosão “balanceando” sempre “rumo a outro porto”, vivido na extensão, ao sabor do horizonte, e tão bem prefigurado no poema “Umbral”, que vale de prólogo ao livro, designação que configura o território sobre o qual a porta se abre e se fecha ao mundo).

Mas a crónica quase biográfica deste nomadismo interior, tão marcado pelas “dobras da terra” (I-21) e pelo “coração do humano” onde se plantou “a razão/ que não outorga ao divino / a alegria que foste um dia” (II-35), não se basta às “ruas” ou às “rotas”, que são meros vincos marcados pela passagem, pois a “arte de criar raízes” (II-10) sabe que tudo se passa radicalmente fora delas, isto é: “nessas partes” onde “nos deitámos / sobre a extensão incartografada / por oceanos de areias, condenados/ ao extravio no itinerário das expiações” (II-33).

É nessa espacialidade aberta, entre o ser uno original alegorizado pela pedra (“no princípio eram pedras, pedacinhos/ de tempo, silentes testemunhas/ na profusão da poeira” – II-2) e o “mundo em segunda edição” (II-6) feito de estilhaços que tentam em vão resgatar-lhe as qualidades, que a vida é pronunciada (e encarada como “poeira soprada por tardas/ veredas que colhem o princípio/ da noite e o dia demorado.” – II-5). Na hora da partida, o que fica para trás é a matéria ainda pura e una, a única cuja lavra poderia prometer o mundo na sua proporção maior. Razão por que, “para a edificação de um homem/ basta o lance nada metafísico// de dizer ao deus que a única/ dignidade é ainda lavrar a pedra” (II-18). Na hora da chegada, que é o prenúncio de todas as partidas sem retorno possível, é a ilusão que comandará o leme.

A bússola continuará a marcar os seus desígnios, o seu clímax próprio, mas “abrindo espaço à ilusão,/ esse chão onde semeamos o grão de vida/ nossa, pobre mas incansável na espreita/ da grande incandescência.” (I-9). O percurso é sempre uma proposição que decai e por isso o saber (que lhe copia o vínculo) passa a comandar o ritmo por mera compaixão, daí ser “perdulário da maravilha”, ainda que eximindo o “corpo ao cálculo da tragédia” (II-16), daí, também, a consciência de (…) “que o sonho da humana harmonia é escusado” (I-12). Mas o paraíso, essa reconstrução da pedra original, permanecerá sempre como um esteio “ilusoriamente próximo” (II-18), apesar das geografias sonhadas onde afluirão navios que fazem dos humanos “prisioneiros/ nesse cerco a que nem a alba põe termo.” (II-25).

O culto do paraíso desaparecido, espécie de atlântida existencial, transluz nesta poesia de José Luiz Tavares sob a forma de uma “primeira/ imagem do mundo, quando a idade/ não era sequer de aventura.” (II-6), e avança, depois, quer como temor (“receio de que os deuses/ da tua infância sejam a única/ inquietante voz que não voltarás/ a ouvir nesta manhã de sinos ralos.” – II-4), quer como dissolução (“o lugar do naufrágio onde a areia/ calca a fonte da promessa/ e se dissolve na maravilha sonhada” – II-7), quer ainda como marco inelutável com o valor de um fatum (ou como consagração do voo da matéria imóvel, essa “dança das palmeiras/ paralisadas num postal de infância” – II-9).

Esta imobilidade matérica que é insensível à comoção dos humanos conduz a um sentimento trágico, modelado pelo descampado sem fim dessa “rua que nos puxa/ para a derrotada vida” (II-26). No poema 27 da segunda parte do livro, homónima do título, pode ler-se: “Trágico por desígnio são os transportes no tempo/; colados ao dorsal da vida, os apelos e os rogos/ caem longe do regaço divino, numa estereofonia/ indiferente aos cambiantes que cada divindade/ reclama nesse comércio pouco santo.” (II-27). O traçado parece-nos cristalino e para o consumar bastaria “o fervor do homem” (II-37) ou o encantamento antecipado: “contempla o teu futuro de derrotas/ como o derradeiro grande feito” (I-8). Esta visão trágica entende muito bem o furtivo movimento que, por um lado, declina e, por outro, desierarquiza a memória: “tudo tem/ a geometria triste de um rolar irregular/, transformando em luto o que alto ardia/ como um sol vernal a medir no sereno/ e na secura o infante que já não és” (II-40).

Uma tal desierarquização ‘do que já foi’ acontece, enquanto os deuses se divertem nos seus teatros de sombras. Diz-se no poema 29 da segunda parte do livro que “é o tempo” (…) “que planta na boca” (…) “a semente” (…) “que sabe ser a sublime partícula” (…) “que há-de despontar quando/ os deuses já forem nos pátios da vida/ sombras de dissolução” (II-29). A relação com a transcendência mostra-se assim desalojada, pois o que urge é inventar “de novo o chão sob/ os pés, os laços que religam/ ao invisível e ao longínquo” (…) “Regressar, pois, à criação sem deus/, com a certeza da derrota” (29-I)”. Ao fim e ao cabo o sujeito poético sabe que é na pedra seminal da infância que reside o único toque divino: “receio de que os deuses/ da tua infância sejam a única/ inquietante voz que não voltarás/ a ouvir” (II-4). Daí que o universo, aquele limiar que escapa aos telhados e aos vincos traçados pelas ruas, seja uma amálgama de falhas. Um cenário para que o poema vise as tempestades de que é feito, transpondo as aparições súbitas (e iluminadas) em desaparições de todos os deuses sem excepção: “interessam-me as falhas que vou preenchendo, parcial/ e distraidamente, com o que colho/ por inocente necessidade/, como esses deuses que no final da cena/ desaparecem pelo ralo do esquecimento” (I-19).

A preencher a mácula deste desaparecer parece que apenas sobram as palavras. E elas crescem projectando uma ordem e uma lavoura para suturar vazios: “há uma ordem/ a ser urdida pelo poder do verbo/, que sequer é glosa ou lúgubre ladainha/ filosófica, mas plantar no ar do tempo/ (se já não fora a poesia lavoura bastante)” (I-2). Mas não se julgue que a manobra é sacralizada, até porque, no quarto poema do livro, a advertência é mesmo para levar a sério: “Poema, sopro asmático do que/ certos dizem alma” (I-4). A apologia do poema, enquanto tópico da escrita poética, não deixa de ser ascensional: ou é entrevisto à medida de uma iluminação anterior ao ser (“Um desenho fica a arder por detrás/ das pálpebras” (…) “É ele que vem iluminar o silêncio/ que há nos livros” – II-32), ou à medida do descaminho que faz da vida o vaivém dimiúrgico que marca todo este livro (“sempre encontraste/ nas palavras um pretexto para o descaminho” – II-21), ou à medida da visibilidade do mundo (“hoje, nas gargantas deste chão,/ nem preciso das bengalas da imaginação,/ embora tudo veja com as lentes da poesia/ e coração de peregrino – II-12), ou à medida do insondável (“coisas visíveis/ que trepam às mesas/ intocadas da poesia/ onde o cenário/ é um negro imperturbado” – I- 10) ou ainda à medida da luta entre o sujeito poético e os seus ufanos fantasmas: “tu, ó esforçado/ amanuense do verbo, fazes o remate/ recolhido nos luxuosos aposentos da língua/ — um alto desígnio para quem queria/ apenas saciar a ontológica sede/ desafiando o desaforo dos deuses” (II-7).

Concluiríamos que a matéria poética toca no céu e no inferno, ao mesmo tempo, com os seus membros espinhosos, tal como se refere no poema 31 da segunda parte do livro (“O inferno são as palavras, Santificadas/ no seu pulsar de náufragos/ fabricam a face e o verso” – II-31), como poderíamos concluir que o poema cai sobretudo na tentação de inviabilizar o efémero, não fosse essa a suprema utopia de toda a construção iniciática: “Como prosseguir este poema/ se já não tenho visíveis telhados (…) “Possivelmente tudo se repete/— erros de cálculo, subidas ambições —/ para que no engano se renove/ o propósito de plantar o que permanece/ para lá do inferno das palavras.” (I-29).

Os versos que melhor testemunham esta ambiguidade e a desfazem, pelo menos em parte, estão discretamente alinhados no poema 25 da primeira parte do livro: “Sabemos tão pouco da orfandade/ que cada palavra é um precipício”. Esta alegação escolta-nos ao longo de uma outra isotopia marcante de Rua Antes do Céu: a figura do retorno ou o clássico “Nostos”. O tema impõe-se, pois é ele que mais preside, reatando Paul de Man, à imitação em que o teor imita o vínculo. Tudo nesta obra tende, de facto, para metaforizar a cartografia do impossível. O tema impõe-se, ainda que “regressar a casa” seja algo vão, isto é: regressar a casa “onde ela já não existe/ é só um modo/de se desembaraçar/ do passado (II-42).

O tema do “Nostos” oscila, pois, entre os augúrios do devaneio (“Regressar, pois, aos horizontes de ilusão/ onde a catástrofe obedece a uma ordem/ cenográfica, e prossegue direção/ do próximo precipício, por nos saber/ já figurantes cuspidos à praias acrílicas” – I-6), os augúrios do tempo (“É muito tarde para o regresso/ aos árduos desígnios da felicidade” – I-25), os augúrios da renúncia (“regressar a casa é renunciar às boias da beleza” – II-36), os augúrios da inevitabilidade (“Porque se nasce como praga ou como/ verme, tatuado por um sol que já partiu” – II-45) ou ainda, como derradeira imagem que parece concretizar a utopia poética que visaria inviabilizar o efémero: “casas, que amei” (…) “permaneceis/ ante a manhã trafegando nos lábios/ do absoluto” (II-30).

A poesia de José Luiz Tavares constrói formalmente um edifício que se quer solene, uma melopeia com andamentos bem marcados, definida por um conceptismo que se revela excelente anfitrião de hipérbatos (e de outras figuras que interpelam diversas tradições clássicas de índole sintáctica relativas à partição do poema). A intencionalidade deste tipo de jogo é clara, até pelo modo como se evidencia no reiterado atrito das cesuras.

Visto como uma entidade formal, esta poesia parece querer escapar, pelo menos aparentemente, às tendências contemporâneas das últimas duas décadas, sejam os micro-realismos, os vastos vitalismos ou até as nostalgias sem objecto que perpassam os niilismos reinantes, imoladores e fragmentados (ditos de si mesmos com ou sem qualidades). O tipo de construção operática e orgânica de José Luiz Tavares, amalgamado ao “luxo de barrocas sonoridades” (II-36), é, contudo, permeável, a registos de natureza coloquial, a ritmos que aplainam e libertam a solenidade e ainda a intertextos variadíssimos (e a ecos das modas actuais) que são fluidamente absorvidos pelo sucessivo amarar da linguagem. É neste tipo de tensão entre materiais clássicos e materiais disruptores que a poética de Rua Antes do Céu se distende e ganha o seu fulgor próprio. Já em 2003, aquando da saída a público de Apagado por Um Trovão, António Cabrita referia a este propósito que estaríamos perante uma “obra que não pretende encadear-nos com a novidade, mas prosseguir uma tradição e dotá-la de um novo esteio”[2]. É esta híbrida e íntima sublevação, capaz de reunir a memória da linguagem poética e os seus encantados desmembramentos, que faz vingar Rua Antes do Céu, dando aliás continuidade e singularidade ao seu “fraseado longo que deslassa a sintaxe” [3], tal como referiu Rui Figueiredo da Silva, a propósito do poema ‘Crónica do Tempo’ de 1994. Por isso, avançámos no início que existe demiurgia, quando aquilo que se diz se confunde com os contrastes da música que o pronunciam.

No final, a vitória pertencerá inevitavelmente à poiesis, ou seja, à linguagem que por si se gera, indeterminada, e, portanto, à plasticidade e à qualidade das imagens. Seja porque o poeta se vê ao espelho e percebe, afinal, algo do seu conturbado vaivém (“à noite quando tudo dorme,/e tu sozinho tremes no terraço/ esculpem-se ilhas na cabeça/ vastos desertos, a sombra do mar/” – II-40), seja porque ao espelho o poeta quase trespassa o escuro que o faz ser como é (“mas dias melhores não conheceste/ em que no escuro anterior a tudo/ agradecesses a nódoa de um beijo frio/ na face do deus-verme que eras tu” – II-2), quer porque há figuras inscritas na vida que sobram ao que se diz (“regressarei/ à intacta imanência/ à açoitante ternura/ dessas imagens// que são só terra profundamente/ cravada nos meus versos” – I-28), quer, finalmente, porque é a pedra e só ela que poderá desvelar, pelo menos em parte, o segredo que percute o trilho mais íntimo desta poesia musical (“a melhor dieta/ é o granito lambido pelo olhar pleno/ para se chegar ao segredo do mundo/ só um quantum de sol e aventura/ que o coração com sede de silvos/ tem ímpetos desabridos e pesam/ sem disfarces dentro do peito” – I-14).

Bem sei que José Luiz Tavares é e será sempre reivindicado por mundos diferentes que afinal o traçam na sua poética e no seu construir e estar no mundo. Uma cultura é o design de uma totalidade apenas imaginária e, para além dos limites que a espelham no exterior, fica, de facto, tudo o que interessa: esse vaivém do peregrino feito palavra que selecciona vínculos sem limites nem manifestos. É nesse limbo felizmente indefinível – e atreito às máquinas de medição – que cabe a poesia na sua missão de avolumar grandezas e, como escreveu Luiza Neto Jorge, de nos prometer “uma agulha de sangue / a coser todo o corpo / à garganta”[4].

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© Luís Carmelo, Lisboa, 17/02/2018.

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[1] Alegação de Paul de Man num contexto de crítica à chamada “literariedade” de Markiewicz em: O Ponto de vista da cegueira, Angelus Novos & Cotovia, Braga/Coimbra/Lisboa, 1971/1999, p. 306.

[2] Cabrita, António, Corsário das Ilhas em Actual, suplemento do jornal Expresso, n.º 1636, 6 de março de 2004.

[3] Silva, Rui Guilherme Figueiredo da – Exemplo cosmopolita: João Vário, Arménio Vieira e José Luiz Tavares. Coimbra : [s.n.], 2014. Tese de doutoramento.

[4] Neto Jorge, Arte Poética em Terra imóvel, Portugália Editora, 1964.

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