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Crónica -Testemunho III
Colunista

Crónica -Testemunho III

Indo na esteira do rumo traçado para este singelo desabafo e à guisa de conclusão, sou a acrescentar que o cidadão, o verdadeiro dono do poder, raras vezes chega ao gabinete do seu representante. Quando assim acontece, a visita é astutamente encurtada, com a fastidiosa e manifesta falta de tato: - «Vá direto ao assunto». O truque visa quebrar o entusiasmo inicial e não deixar a pessoa à vontade. Claro, isto para os felizardos que ainda têm o privilégio de entrar em contacto com esses fulanos de estufa e de redoma. Os que deviam ser encarregados dos negócios do seu patrício, os servidores e não reis, no impenetrável castelo de grafeno. Ou ainda socorrendo-se reiteradamente da atitude desbragada, como esta: - «Vá ao tribunal». Depois, os assanhados não têm o menor escrúpulo e bom senso, para percecionarem que com os seus atos birrentos ou de “desaforo de corpo”, como sopraria o magnânimo Lente, Baltasar Lopes da Silva, contribuem para o entupimento assoberbado das instâncias judiciais, com processos perfeitamente evitáveis e “in limine” perdíveis.

A bravata é ardilosa e tem uma nítida dose de perfídia. Sim, porque o tempo que leva o tribunal a decidir pode ser fatal para a periclitante situação de um descamisado. E fazem-no de pura maldade, aproveitando-se da falta de proficiência ou da morosidade da justiça. A grandiosa verdade é que estou enojado com a forma como alguns sujeitos são tradatos, sobretudo os não partidários, num país que também é deles, de pleno direito e de arreigado sentimento identitário. Por isso, eu digo: chamai-me retrógrado ou saudosista do sistema do “dejà vu”, se quiserdes. Digai de mim tudo o que vos prouver ou der na veneta. Não tenho medo de ser apodado de inexcedível pupilo ou de zeloso dervixe dos modos escorreitos dos antigos, a lidar com a nossa gente. Estou nas tintas para qualificações da esfera do limbo. E não almejo bênção, nem loas e prebendas dos visados. Feito o reparo, quero afirmar, sem qualquer pejo, que considero de uma absoluta e inqualificável indecência alguém ocupar um cargo para o qual não está minimamente talhado. Sejam como Barnabé: não levem a fôlego de peito nenhum empreendimento sem terem a tenção de o fazerem na plenitude.

É uma fraude gigantesca não tendo hombridade para reconhecer isso. Um demolidor ataque à ética republicana. Saiam da toca de lobo, por favor! As pessoas podem não concordar comigo, mas têm de me reconhecer o direito de olhar para trás e comparar os atributos dos do passado e dos do presente, a fim de avaliar se estamos a avançar ou a recuar, neste ou naquele quesito. Em qualquer parte do mundo existem os chamados maiorais, os homens e mulheres-bússola, de inquestionável cobalto moral, constituindo-se uma espécie de fonte donde brota o lenitivo espiritual para o funcionamento harmonioso das suas comunidades. Então, quando se considera que há uma crise de valores, os nacionais olham para o esnobismo dos seus pivôs de referência. É isso que tenho feito e gosto de me ver a continuar. Bem, no rol dos dirigentes no ativo, como já anteriormente cheguei a pontuar, o Dr. Jorge Carlos Fonseca, o atual mais alto magistrado da nação, para aqui ser sincero, coerente e sério, apresenta imensa diferença nesse quadro de deceção acima descrito, porque é uma entidade atenciosa, que comunica bem, recebe as pessoas, escuta os seus lamentos e inquietações.

Por isso, tem dado um magnífico exemplo, para a mudança do paradigma. Eu diria que ele tem funcionado como modelo daquilo que deve ser, nesta matéria. Pena é que os outros não no seguem ou são simplesmente descentrados. É ridiculo ter um país em que o líder máximo dá o mote e os outros, como dirigentes políticos, presidentes de municípios, membros do governo, presidentes de institutos, diretores gerais e de serviço, fazendo orelhas moucas, transformam o lamiré do timoneiro em tábua rasa, dançando uma música completamente fora da toada daquilo que seria de estrita e conveniente fineza imitar e seguir. A pergunta que não se cala é esta: estão mais atarefados que o próprio Presidente da República? Fingem eles não saber que o Chefe de Estado é o único símbolo vivo da nação? E eu, “aqui no longe”, para citar o melhor dos nossos poetas, José Luiz Tavares, humildemente sugiro: arrepiem caminho e sigam as pisadas de Sua Excelência o Presidente da República!

Deixai de subterfúgios para furtardes ao dever de prestar contas aos vossos mandantes, porque vós não podeis estar eternamente ocupados. Porquê? Exorto os gestores das tenças do estado a não se esconderem das pessoas. Qual é o motivo para barganha? Pois, não se esqueçam os senhores que a república somos nós, o povo. E não vocês, os “orgulhosamente sós” e metidos na clausura de vaidade. E pior: a olhar exclusivamente para os vossos umbigos de insaciáveis apetites. A não ser que queiram quebrar o elo de confiança entre representantes e representados. Se é isso que pretendem, então, avancem, que serão bem recompensados. Pena é que os sinecuristas do novo mundo não percebem que os aparatos, tais que requintes do gabinete e correlativas mordomias são muito bons e chiques, mas não significam um fim em si. Mais importante que fato e gravata num país tropical é ter caráter e saber o que se está a fazer. Ainda por cima os rastaqueristas de micro-ondas e comida pré-fabricada tem o asco do país profundo e nutrem um tenebroso desdém por aqueles que conservam a tradição e ganham a vida com o salitroso suor no rosto.

Alguns são complexados e escravos dos seus próprios ecúleos e carapaças. Até parecem alienígenas, desprendendo-se das cumeeiras do céu e que, num repente, resolvem assentar arraia em terra. Aí, descobrem-se no meio de uma descomunal fortuna. Ficam deslumbrados a contemplar, olhando para o faustoso redor em volta, o delicioso tempo todo, tal que faria um provinciano, no dizer do criativo Victor Hugo, na nitente cidade de Paris. Bom, deixemos os cabeça-de-espuma para lá e analisemos um outro aspeto disparatado da nossa vida pública. Vamos ver uma fenomenal ligeireza de proceder e desta feita relativamente aos balcões de atendimento público. Pois, neste campo específico, ao nível de empresas e serviços públicos, julgo pertinente registar uma nota, para a reflexão do leitor. Os serviços públicos e empresariais devem ser o ponteiro de horizonte da nossa gente no trato social, dando o seu melhor para que o cidadão se sinta devidamente respeitado no seu país. Assim, os diretores ou gestores públicos e privados tem a ingente obrigação de acompanhar a dinânima do atendimento nos seus respetivos balcões. Além de decidir, torna-se premente seguir a implementação das recomendações e decisões. Falo aqui da componente controlo/supervisão.

Só para ilustrar, tenho verificado que, sobretudo na cidade da Praia, quando as pessoas se dirigem ao balcão de qualquer serviço, existe uma saga avassaladora pelo “sinhoriato ou sinhoriata”. O cliente ou particular espera pacientemente pela sua vez. Depois, aproxima-se do sítio, tira o documento de identificação do bolso ou da sacola e entraga ao atendedor/a. Este ou esta, ao invés de começar a tratá-lo imediatamente pelo nome que consta do documento, como, por exemplo: senhor António, senhor Belmiro, senhora Joaquina... Porém, num ato de pura preguiça e de intolerável facilitismo, o/a balconista desata a chamar a pessoa por: - «Sinhor, sinhora, o sinhor, o sinhor, a sinhora, a sinhora...», numa sequênquia que nunca mais acaba, desprezando por completo o nome do/a cidadão/ã, num ciclo obsessivo e numa constância e repetência que enjoa. E para mais somos péssimos a copiar. Não! Não pode ser assim. A partir do momento em que alguém exibe o documento de idenficação torna-se ilegítimo a qualquer servidor público ou privado tratá-lo como se ele fosse um ente anónimo ou um sujeito indeterminado.

Portanto, a boa educação recomenda que a pessoa seja invocada por: senhor José, senhora Maria, senhor Francisco, senhora Alberta e por aí fora. Até porque não se compreende esta lufa-lufa do/a “sinhoriato/a”, se atendermos que em língua cabo-verdiana, a forma correta de lidar com os nossos compatrícios sempre foi “Nhô, nha ou bó”, em sotavento. Com a particularidade de “bocê”, na variante do barlavento”. Isto consoante tratariamos o nosso conterraneo por você, senhor ou tu, em língua portuguesa. Mas não é o caso, porque o atendimento em Cabo Verde é feito na língua materna. Então, teriamos: - «Nhô José, nha Maria, nhô Francisco, nha Alberta ou nha Beta». Daí causar estranheza esse mimetismo atalbalhoado e rude, para se perguntar: porquê? A meu humilde ver, é intrigante constatar como é que chegamos a ser tão relaxados e primários. Parece que não queremos parar um único minuto para pensar e refletir. Não conseguimos representar o quanto estamos a ser saloios e boçais. Por isso, os serviços públicos e privados, do mesmo jeito que as pessoas físicas ou singulares, devem pugnar pela fineza de trato.

Isto é de uma gritante deselegância e não devia estar a ocorrer num país que afeitamente designo de Amenidade. E quando a repetição é exaustiva, inquieta e irrita, de facto. Cada ser humano tem o seu nome é um direito fundamental à luz da nossa Constituição. Um bem juridico sagrado e irrenunciável. Então, o funcionário/a, por incúria ou indolência, não pode estar a inventar bimbices no que tange a este imperativo supra legal. Só é admissível tratar alguém por apenas senhor/senhora, quando o falante não conhece a identidade da pessoa, podendo referir-se a ela ou a ele como sendo: - «Um senhor, uma senhora, aquele senhor, aquela senhora». Fora desses casos, não se compreende o porquê da indelicadeza. Daí a necessidade de o chefe estar vigilante e fazer uma ronda, de quando em vez, ao seu balcão de atendimento, para observar e chamar atenção, a fim de impor a cortesia: - «Não, não é assim. É senhor Alfredo, senhora Manuela, etc., etc». Caramba! O que custa seguir os trilhos de polidez?

Nota: uma palavra de consolo aos familiares do músico, poeta e prosador, Kaká Barbosa. Familiares que somos todos, num país de exígua dimensão do das Ilhas de Amenidade. Ele que tanto se deleitava a cultivar os nossos modos de ser e de estar. Paz à sua alma e que o seu nome seja uma perene e grata recordação.

Domingos Landim de Barros

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