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A minha experiência do confinamento
Colunista

A minha experiência do confinamento

Estou em prisão domiciliar no Senegal. Não pense o leitor que se trata de uma perda de liberdade na sequência de um processo. Não, nada disso. Ainda para mais, a viver fora de portas, tenho tido o triplo de cuidado que teria na própria terra. Porém, do ponto de vista de movimento, a diferença não é muita. Quero sair daqui e não consigo. Isto cria um enorme potencial de estresse. Relativamente ao confinamento, no berço do vulto madrugador da negritude e da valorização da cultura africana, Leopoldo Sedar Senghor, a quarentena só se impõe à noite, a partir das vinte horas, até às seis de manhã. Ao longo do dia, as pessoas são livres de circular, internamente. A proibição de ir e vir só acontece com relação à entrada e saída do território nacional. Julgo ser razoável e perfeitamente justificada esta medida restritiva, tendo em vista o que se pretende acautelar. Enquanto jurista e ativista dos Direitos Humanos, não vejo nela qualquer exagero ou desproporcionalidade.

Entretanto, estranha-me o facto de as autoridades cabo-verdianas não terem ainda feito o repatriamento dos seus cidadãos no Senegal, como fizeram os outros países. Falo dos transitários e não residentes. Perigo para perigo, cada um prefere correr ao pé da casa. Vindo da Praia, nos finais de fevereiro, para seguir viagem rumo a Portugal e depois à França, acabei aqui retido, sem saber quando isto vai acabar. Moro no centro de Medina, à vista da Casa de Cultura do Senegal, encerrada há mais de um mês. Não há nada que interesse. Detesto o confinamento, como qualquer outra pessoa. Ninguém adora a limitação da liberdade. Não é por acaso que tem havido detenções, um pouco por todo o lado. Seja como for, não estou aqui para criticar a ausência de tal medida. Nem me sinto com pachorra para isso. Há coisas que me percutem o imo com muito maior lancinância.

Por outro lado, o estado de emergência permite-nos aquilatar da vigência e da validade da norma. Sob um só comando normativo, o país pára. Realmente, o acatamento das regras jurídicas é uma coisa fenomenal. Aqui, em Dakar, às 19h55 há uma azáfama, uma correria para os citadinos entrarem nos domicílios. Os governantes deviam tirar lição desta maravilhosa experiência, que é a pujança do ius imperi. O maior espetáculo do direito está em que todos devem à sua odebiência. Não é só o cidadão comum a quem compete sujeitar-se ao caráter coativo das leis. Diante de uma evidência comprovada de que uma regra jurídica milita a favor da pretensão de um cidadão, as autoridades públicas deviam baixar a gola da sua arrogância e dizer: - «Sim, senhor/a, você tem razão. Vou respeitar o seu direito». Para isso acontecer, basta possuir a vocação para o exercício de serviço público, nomeadamente, ser recetivo, saber ouvir. O que significa: escutar com elevação, com a dignidade que o cargo exige.

Quando fui tropa de elite, na Companhia Especial Jaime Mota, nos idos anos oitenta, dava uma escapadela, de tanto em tanto, para ir até Vila Nova, a zona onde tinha residido antes de entrar para o serviço militar obrigatório. Ia rapidamente e voltava. Outras vezes, era mais ousado, ultrapassava a dobra de Cruz Marques e desembarcava em Veneza de São Miguel. De seguida, embrenhava-me caminho adentro, com destino à Ribeireta. Chegava, tomava um remédio de terra, em Lém Vaz ou Lém Tavares, a raiz de uma das minhas linhagens. Posto isso, pedia bênção aos meus maiorais e subia o Cutelo de Covoada. Passava na ilharga da minha antiga capela-escola e trepava a esguia elevação até o topo. Com todo o fulgor da juventude, sem tosse e sem monília na garganta. Sinais de musgo de um gato tísico a vir de dentro de um vibrante soldado em voga? Não! Era só empeitar e levar tudo pela frente. Ai força de radiosa mocidade! Uma vez ali no pico, punha-me a galopar, ignorando a exígua temporada disponível. Adormecia e não havia maneira de regressar durante a noite. Assim, numa dessas furtivas aventuras, a coisa deu-me para o torto.

De retorno à Unidade, encontrei um assanhado Oficial Dia, de pé, ao lado da Casa da Guarda. Ele dava largas passadas e olhava de modo impaciente para o relógio. Estava à minha espera, para me pôr juizo na cabeça. Quem conhece a Companhia Jaime Mota sabe que só há uma entrada. Não havendo escapatória, encolhi o corpo e atirei-me adentro da Unidade. Então, senti que ia levar com a invocação do temível RDM (Regulamento da Disciplina Militar) a meu desfavor. Ele olhou para mim e ordenou: - «Alto lá! És um bom abusado. Não é a primeira vez». De seguida, gritou: - «Sargento da Guarda!». O subordinado chegou-se a mim e intimou-me: - «Vamos!». Ele deu comigo no chão, porque a prisão tinha metade da minha altura. Trancou a esguelha porta atrás de mim. Caí no calabouço e fiquei a rezar, de cócoras, como fazem os do país onde estou a respirar. Orava e implorava proteção a São Miguel Arcanjo, o patrono-mor da minha freguesia e primevo cavaleiro da altina ordem de El Shadday. Nessa época, tinha eu muito mais fé que agora. Então, posto ali por uma hora e qualquer coisa a penejar, sob o signo dos ecos da refrega do vento na rabadela de rocha e de constante rumorejar do mar. Num súbito, ouvi um tilintim nos ferrolhos, seguido de um estridente ranger de porta. Era o Oficial Dia que ali estava, para me soltar.

Ele mirou a minha cara enxota e deu-me alivio: - «Sai!». Apesar de ter sido uma nígua de nada, apanhei, a partir de então, um enorme pavor do encarcerramento, tão grande, tão grande, que passei a ter e tenho, efetivamente, um medo descomunal de tudo o que me possa levar a cair no âmbito de responsabilização penal. Mesmo quando o impulso de orgulho e de dignidade tenda a ganir na direção contrária. É muito desagradável alguém estar a entrar para cela e um outro, degradando, por completo, a sua moral, dando-lhe ordens: - «Tire o cinto, desaperte o atacador, chapéu não pode entrar; despendure os brincos, relógios e mascotes, moedas, colares e carteiras fora da posse. Temos receio que possa perigar a própria vida. Só o cabedal, com o abundante líquido vermelho, para dar de sugar a pulgas e piolhos». Foi nesse ápice de tempo que enxerguei a profundeza de todas as prisões do planisfério. Pensei, sobretudo, nos sediciosos nacionalistas que haviam estado na mesma choça, a mando daquela “coisa”, nos angustiantes periodos da luta de libertação.

Não era a prisão militar, que ficava no lugar próximo do que é hoje a Santa Aninha. Penso que esta se chamava Paiol. A das laterais do nosso quartel consistia em dar ao soldado um corretivo pontual, em condições extremas, para que ele não voltasse a prevaricar. Aprendi com aquela lição, que o estatuto de um prisioneiro é deveras miserável, na verdadeira e pior aceção de CARNELUTTI. Por isso, cultivo a prudência e fujo, in extremis, de algo que me possa conduzir a tal miserabilidade e digo sempre: mais vale um cobarde em liberdade do que um valente no meio de percevejos e quejandos. Extraí daquela amarga experiência uma máxima para toda a vida: - «Pior que prisão só mesmo morgue e cimetério». Para mim, perder a autonomia de movimento é a maior desgraça que pode acontecer ao ser humano, depois de doenças incuráveis, morte e sepultura. Bem, não seria elegante da minha parte evocar o nome desse oficial já transitado. Até porque, apesar de exagerado, tinha agido ao abrigo do dever de ofício. E o silêncio dos mortos é algo que me merece profundo respeito. Por isso, não vou fazer o sínodo de defunto no jornal.

Desse tempo também guardo memórias agradáveis e das quais tenho saudades. Lembro-me do distinto brigadeiro, António Marino Dias que, nessa altura, tinha a patente de primeiro-tenente e desempenhava as funções de comandante dessa unidade especial. O meu antigo chefe e meu amigo, a ponto de me abrir uma clareira de epifania em frente à vista, propondo-me seguir a nobre carreira militar. Claro que adorava pertencer à classe castrense, a título profissional, de corpo e alma. Só que o ilustre Comandante não podia imaginar que o seu pupilo de estimação sequer tinha Quarta Classe de Instrução Primária. Já nessa época não possuir esse mínimo indispensável era uma falha insuprível. E qual não foi o seu espanto ao descobrir que o soldado que ele achava excelente não passava de um semianalfabeto? Assim, caiu por terra o Curso de Sargento e com ele aquilo que podia ser a minha airosa via de me manter ao serviço de uma exigente corporação. Aí, o justo homem de aprumo lamuriou: - «Ah, 81! Se tivesses ao menos isso, ias para essa formação que vamos abrir em breve. Eu sempre auspiciei para ti uma brilhante carreira militar. Lamento profundamente». De seguida, indagou-me ele: - «Não pensas voltar à escola?».

Eu fiquei de queixo caído a matutar na vida de um pobre desgraçado, espelhando diante da soberana oportunidade o seu “estado impenitente de fragilidade”, para aqui citar o inovador Vate das letras cabo-verdianas, G. T. Didial ou Timóteo Tio Tiofe, João Manual Varela ou ainda João Vário. Um momento marcante no trajeto da minha pessoa. Assim, aproveitando o bálsamo do bom chefe e meu imbele inspirador, virei o rosto para ele e aceitei logo o desafio, com toda a simplicidade, sem chico-espertismo e sem malabarismo, que ora campeiam por tudo quanto é sítio. Então, de semblante um pouco triste e numa voz embargada, sussurei: - «Gostar, eu gosto, mas não sendo impedido, como é que vou ter vagar para estudar?». E ele, o saudoso: - «Se queres avançar, a agente vai criar esta possibilidade». Dei o meu aval e garanti: - «Se o camarada Marino me dispensar, farei isso com o todo engajamento da minha vida». No dia seguinte, o consciencioso timoneiro da companhia mandou me chamar e deu-me a nova: - «Faz o requerimento e deixa na secretaria. No entanto, podes iniciar já as aulas».

Bati pala, com muita genica, ao virtuoso combatente e ao “bonus pater familias”, que ali estava. De seguida, desci a escadaria, todo feliz e contente. Se não estivesse dentro do quartel, pedia à minha antiga pretendida de Vila Nova para dançar comigo uma cativante coladeira, até o dia seguinte, como mais tarde cantaria o talentoso artista da prodigiosa geração noventista, Kino Cabral. É óbvio que existe sempre uma franja menos polida e assertiva na confraria de qualquer agrupamento humano, mas isso é outra estória. Na minha, só entra o escol dos auriluzentes e magnificentes. Quem teve um outro gesto bastante nobre para comigo foi o então Comandante Geral das FARP, um dos destacados obreiros da independência nacional, Agnelo Dantas Pereira. Porém, sobre a benigna atitude desta outra extraordinária grata persona, felizmente ainda viva, vou reportar numa próxima oportunidade (continua).

 *Jurista e ativista dos direitos humanos

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Redação