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A Comunidade Política e Cultural
Colunista

A Comunidade Política e Cultural

A propósito do desaparecimento físico de Manoel de Oliveira, Inês de Medeiros[1] disse: "além da sua obra devemos recordar a pessoa que era, a sua luta intransigente pela liberdade criativa."

“ (…) - A explicação? Quere-a você? É a simples anemia da cachimónia. O pensar infantil. Está dito tudo. É a incapacidade de fixar uma ideia, de seguir um rumo, de apontar a um alvo; a necessidade imperiosa do devaneio, de entregar-se às auras, de boiar à toa… Olhe: eu nunca assisti a uma reunião política, a um alto jamboré dos grandes chefes.”

“ (…) - Estamparia um papel que dissesse assim: «É proibido contar histórias. É proibido ser eloquente. Para um chefe político, o essencial é ouvir, e saber ouvir; para ele a língua é de chumbo e o silêncio de ouro» ” [2].

*

Na peugada do texto “Um mundo sob nostalgia da autodeterminação”, de 15 de julho, neste periódico, suspendendo a sua pausa.

Eis o que é fundamentalmente necessário numa comunidade política e cultural: Liberdade e Saber Ouvir.

Uma comunidade política e cultural é presente caminhando, deixando um tempo para trás; é condução, é ação, é prática, é concretização de outro tempo que chega e outro, talvez, venturo; esta concretização é obra das pessoas, de todas e em conjunto; todas em conjunto tomam a decisão de seguir o caminho que acharem o melhor, o mais adequado, o mais eficaz, produtivo, progressivo e eficiente de atingirem outro ou outros caminhos, outro ou outros estádios de evolução comunitária política e cultural. Esta comunidade político-cultural é garantida pela constatação e permanente construção da liberdade, pela capacidade de se fazer exprimir, individualmente e em grupo; e da capacidade de ser ouvido, interpretado, entendido, realizado, participado e concretizado no resultado daquela que deve ser uma muito atenta audição, fundamentada, em ações éticas, e justificada por valores ou princípios filosóficos.

Quero então dizer que esta evolução comunitária política e cultural envolve indelevelmente a ética da aceitação, a ética do respeito, a ética da compreensão, a ética da tolerância e a ética da assunção, justificadas por princípios ou valores da moral, da ética, da justiça, da política e da estética.

Por isso devemos concluir que a pessoa é um ser gregariamente político; é um ser de ação, de conduta, é concretização cúmplice de objetivos, fins e finalidades da mundanidade e da espiritualidade quotidianas.

Recuperando e incluindo aqui a ideia de democracia pela mestiçagem, tentemos então refazer a ideia, procurar a sua definição e aplica-la à nossa realidade Emisferiana: a pessoa emisferiana é um ser gregariamente político, de ação e conduta, na concretização cúmplice de objetivos, fins e finalidades da mundanidade e da espiritualidade quotidianas de mestiçamento democrático. A democracia miscigenada da Emisferianidade.

Se a pessoa é um ser gregariamente político, logo será o grupo onde se integra e a globalidade da comunidade onde o grupo ou grupos estão enquadrados e inseridos na comunidade a que estes pertencem que a pessoa se afirma enquanto tal.

Se transportarmos este movimento social, cultural e político para a nossa realidade Emisferiana, o que observamos?

Observamos, primeiro, um número certo, determinado de pessoas maiores; adultas e responsáveis, autodeterminadas, determinantes e independentes, que são as nações, os estados e países, e as comunidades de gentes falantes da língua portuguesa. Logo na ação e conduta, na concretização cúmplice de objetivos devem ser atendidos os da mundanidade e os da espiritualidade, democraticamente eleitos entre todos os sujeitos abstratos soberanos, comunitários e individualmente concretizados que compõem a Emisferianidade.

Com isto entenda-se que todos os sujeitos são iguais entre eles, primus inter pares, têm a mesma dignidade hierárquica. Não há grupo ou grupos dominantes nem grupo ou grupos dominados. Usando uma expressão de Fustel de Coulanges[3] “A cidade era a única força viva, nada lhe sendo superior e nada lhe estando inferior: nem unidade nacional, nem liberdade individual”.

Para uma análise mais lúcida da nossa Comunidade Emisferiana, partamos, pois, de dois princípios formulados por Morris GinsBerg[4]: o princípio de domínio e o princípio de comunidade.

O primeiro princípio implica os diversos modos de sujeição, o uso e utilização de pessoas para fins e finalidades que não dependem de uma vontade própria, de um opção pessoal e individual.

O segundo princípio reserva os modos de ligação, interligação, cooperação e desenvolvimento em que os sujeitos e as pessoas intervenientes e concretizadoras são fins e meios, uns para com os outros, funcionando não apenas em compromisso, mas sim fundamentalmente em complementaridade.

Os diferentes modos de organização da vida em comunidade são, na verdade, um eterno puxar de corda entre os dois princípios, mais, ou, menos complexificada quanto for o nível e o grau de intrusão, de fusão da relação entre as pessoas e os grupos e a capacidade de renascimento que, depois, a própria comunidade poderá, ou não, ter em si.

O tão conhecido princípio da reciprocidade é assim desafiado em comunidades cujas realidades são diversas e múltiplas como a nossa.

Mas muitas vezes essa diversificada e múltipla realidade se encontra confinada a um espaço geográfico, onde as diferenças se identificam numa nação e num estado político e cultural e, aí, aquele princípio cede perante outros dois que são o da coação e o da sanção. Agora, interrogo-me se os princípios da coação e da sanção são princípios que se destacam na capacidade de unir as pessoas e os grupos e toda uma comunidade. Não há dúvida que a coação e a sanção são elementos de poder para a manutenção da ordem e da paz sociais, sendo, no entanto, um facto de que esses poderes são atribuídos ao poder político através de eleições, persistindo de modo inconsciente um certo sentimento de subordinação, aquiescência e até de indiferença pelo significado e resultados práticos daqueles dois princípios.

Mas outra evidência deve, também, ser constatada que é a de que, se toda a vida em comunidade política e culturalmente organizada implica a convivência com a coação e a sanção, não é menos verdade de que se deve a coesão dessa mesma comunidade - com atitudes éticas concretas e concretizadoras, justificadas por princípios ou valores morais, éticos, de justiça, de política e de estética, que a torna numa entidade comum identitária, com identidade -, onde, ocorrendo condutas violadoras daquelas normas dentro da comunidade, são susceptíveis de coação ou sanção, na medida em que os sujeitos transgressores são colocados perante uma opção: ou aceitam (coação) a comunidade no seu modo de ser singular, genuíno de estar ou são naturalmente excluídos ou autoexcluídos (sanção).  

Ninguém consegue alcançar o poder de dominar intemporalmente nem indeterminadamente um povo, sem que haja uma adesão consciente e voluntária; como, do mesmo modo, nenhum grupo, suposta ou eventualmente dominante consegue transmitir a sua vontade, se não for pelo diálogo, pela aceitação, pelo respeito, pela compreensão, pela tolerância e pela assunção da sua conduta ética em relação ao grupo dito dominado. É que se o grupo dominante tem algo de novo e positivo para o desenvolvimento da comunidade, deve então transmiti-lo com civilidade, não pela imposição da força bruta física; isto no que toca à transmissão de conhecimento válido pela força bruta; mais grave é quando deliberada e indeterminadamente se transmitem pela força bruta, impondo a vontade dominante com todos os seus defeitos.

Portanto, há uma de ideia de subordinação, nem que seja implícita em todas as comunidades e grupos; uma subordinação consentida. Esta ideia pode estar a funcionar como o cancro que minando vai alastrando-se pela comunidade sadia, tornando-a mórbida. PORQUE NÃO SOMOS SUBORDINADOS DE NINGUÉM e NINGUÉM É NOSSO SUBORDINADO; somos sim todos subordinados a uma conduta, fundada numa ética, justificada por princípios e valores da moral, da ética, da justiça, da política e da estética.

Aquela ideia de subordinação promove a divisão e fragmentação social da comunidade, afetando a sua própria administração[5] de justiça, a sua atividade política e divulgação de incultura; mas também de toda a ordem económica que se refletirá na discriminação formal das pessoas, dos grupos e de toda uma comunidade, com a agravante dessa discriminação formal assumir a sua discriminação material, económica e social de domínio de um grupo sobre outros grupos, poisando depois em segregação.

Por isso devemos sempre interrogar sobre se as afirmações de vontade declaradas, não com base na força bruta física, são de facto isentas de qualquer influência dominial de um grupo. O que pode gerar confusão sobre se as instituições políticas, económicas e religiosas refletem a vontade de um povo ou se, estas instituições, e por via da influência dominante do grupo, influenciam e dominam a vontade de um povo. E do mesmo modo podemos interrogar se, nos relacionamentos sociais, ao invés da força bruta, se utilize os métodos da persuasão e da manipulação, não estaremos perante manifestações da ideia de subordinar e dominar outrem.

É tão comum falar-se de democracia como de ditadura, de liberdade e opressão, totalitarismo e liberalismo, quando o mais avisado será auscultar os valores, costumes e os usos enraizados por uma prática reiterada, porque estes, em princípio, não se alteram por decreto, não precisam de papel para serem assinados e nem publicados, para que se não invoque a ignorância da lei; porque eles, aqueles valores e costumes, são o que nós somos, sendo aquelas realidades das superestruturas meros tempos históricos que se alteram e se alternam, numa fundada e justificada realidade existencial.

Todavia, apraz-me verificar que a atualidade maior das comunidades humanas não se define por esse regime. O sentido crítico e especulativo, de análise, de interrogação, de não aceitar tudo o que se diz, sem antes ser objeto de crítica, que se vem desenvolvendo no seio das comunidades e grupos, impede este domínio e subordinação indiretos e subtis dentro de uma comunidade. Hoje já se entende, não faria outro sentido, que as instituições são para as pessoas e não as pessoas para as instituições.

Outra questão a refletir e a interrogar é saber QUAL O GRAU DE HARMONIA QUE SE VIVE DENTRO DE UMA COMUNIDADE, se a harmonia é, ou, apenas é uma ilusão humana iludida por outros, ou se ela é possível ou se vai sendo possível, na medida das possibilidades das circunstâncias; e na sequência dessa interrogação procurar surpreender o ator ou os atores desta busca e promoção da harmonia no seio comunal.

Hoje, no presente momento histórico e civilizacional da humanidade vê-se que foi concebido racional e sentimentalmente um sujeito abstrato, físico e soberano capaz de congregar e reunir, sob o nome de Estado, diferentes grupos, culturas, religiões e até diferentes línguas. Assim, podemos definir Estado, de um ponto mais sociológico, como “ (…) uma máquina em que as principais funções do governo, a promulgação da lei, a sua execução e defesa comum estão diferenciadas e coordenadas”[6].

Vejamos, sociologicamente, que Morris Ginsberg[7] entende o Estado “como um género com muitas espécies, variando imenso em âmbito e função e nas suas relações com outras associações”. Continua, dizendo, que, “No mínimo, (…) o estado existe em todas as comunidades em que a proteção dos membros e a execução de normas comuns são funções de um sistema de órgãos diferenciados”.

Num sentido político podemos entender como Estado como território, povo e soberania.

Segundo Jellinek[8], “o corolário do reconhecimento do vínculo jurídico existente entre o Estado e o povo faz surgir exigências de três diferentes categorias, quais sejam: exigências negativas, a qual significa que o indivíduo enquanto pessoa está submetido a um poder limitado do Estado através do direito; exigências positivas, que são aquelas que impõem ações positivas do Estado em respeito aos direitos individuais e atitudes de reconhecimento, as quais noticiam que em determinadas circunstâncias há indivíduos que atuam no interesse do Estado, sendo que este deve reconhecê-lo como órgãos seus. Tal facto traduz-se no reconhecimento de alguém como cidadão ativo”.

Eu diria, então, que o Estado moderno contemporâneo é formado por cinco elementos fundamentais: o TERRITÓRIO, o POVO, a CULTURA, a SOBERANIA e a FINALIDADE SOCIOCULTURAL.

Regressando aos princípios de domínio e de comunidade, vemos que melhor é cultivar, melhorar e desenvolver o segundo princípio que nos reserva os modos de ligação, interligação, cooperação e desenvolvimento em que os sujeitos e as pessoas intervenientes e concretizadoras são fins e meios, uns para com os outros, funcionando não apenas em compromisso, mas sim fundamentalmente em complementaridade.

Na verdade, não há dúvida que a relação entre Estados soberanos deve existir numa base de igualdade recíproca, realçando aqui o princípio da reciprocidade. Transportando esta relação política entre Estados para a nossa realidade Emisferiana, verificamos que temos e podemos expandir, afirmando no enraizamento, as nossas relações completares. Emisferianidade é sim o princípio da complementaridade, uma vez que este princípio já engloba o princípio da reciprocidade.

Como afirma T. S. Eliot, “A cultura nunca poderá ser inteiramente consciente – haverá sempre mais nela do que aquilo de que somos conscientes; e não pode ser planeada por ser também a base inconsciente de tudo o que planeamos”.

 

A política com arte

I

Se a arte é política

A política com arte

Longe da intriga nos tolhe a bondade

Faz mover, não prejudica

II

Como Linda, misteriosa é a Mulher

Me faz sentir benigna a deslinda

Corpos salientes às eternas curvas da perfeição

Em ação pelo curvilíneo corrimão

Porque na arte sem mulher

É investida sem talher

III

Se arte é política

A política com arte

Faz andar pela verdade!

Três biombos

O reinício das Eras dobrado em três biombos

Não são tempos

Se calhar, cenas

Mas saltam-me biombos p’la frente dos meus ombros

Que não são sombras

Em que os encolho

Recolho os tempos para largá-los

Desdobrá-los em três

O biombo do início

Da continuação

Do enraizado

Três biombos que se fecham

Ao dobrar dos meus dedos

Recolhidos à sua mão

É essa a realidade

Abre e fecha

Frágil como três cenas pintadas em papel

Trazidas em um

Abrimo-lo, se quisermos

E fechamo-las…

Raphael d’ Andrade,

[1] Em opinião dada a um canal de televisão português.

[2] António Sérgio, Obras Completas, “O espírito devaneador e a política”, Ensaios, tomo III; Livraria Sá da Costa Editora, 2.ª edição, pp. 168-169.

[3] A Cidade Antiga, Clássica Editora, 11ª edição, 1988, p. 429.

[4] Introdução à Sociologia, Publicações Europa-América, 1963, p. 98.

[5] Abre as portas à corrupção do espírito e da matéria.

[6] Hobhouse, Leonard, in Introdução à Sociologia, idem, n. 1, p. 106.

[7] Idem, p. 106.

[8] JELLINEK,Teoria Geral do Estado. Fundo de Cultura Econômica, México, 2002, p. 379.

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