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Técnico, político e espaço público
Colunista

Técnico, político e espaço público

1. Causa-me sempre estranheza quando vejo um quadro superior, com curso tirado numa universidade, a encher o peito e a dizer, afanosamente, como que para ser ouvido em todos os quatro cantos do mundo: "eu só faço o meu trabalho técnico". E, não poucas vezes acrescenta: "eu não tenho nada a ver com a política";

2. Para mim, isto que é exibido como se fosse a maior das medalhas de campeão de alguma coisa - no contexto a que a seguir se especifica - não representa mais do que dois dos maiores problemas da sociedade cabo-verdeana contemporânea: por um lado, um elevado grau de individualismo, egoísmo e calculismo pessoal e, por outro, uma profunda contradição em relação à maior crítica permanente que é dirigida, única e exclusivamente, a uma coisa chamada de "classe política";

3. Como é possível que os chamados técnicos enquanto especialistas em determinadas matérias, se remetam ao mais absoluto silêncio, abdicando-se de qualquer posicionamento no espaço público e, paradoxalmente, atribuem à classe política a responsabilidade para resolver os problemas da sociedade? Como é possivel, simultaneamente, condenar a existência dos partidos e dos políticos e, de braços cruzados, esperar deles as respostas para todos os problemas?

4. Ao ponto a que chegamos enquanto sociedade! Os supostamente mais informados e formados vangloriam-se do facto de se abdicarem da utilização pública das informações e dos conhecimentos que detêm e que poderiam contribuir para a construção da própria sociedade da qual fazem parte, remetendo-se para um canto da vida coletiva, dando costas integralmente ao espaço público!

5. Assim, retiram uma parte do valor e sentido histórico às numerosas lutas de libertação empreendidas por Amílcar Cabral e tantos outros para que os cabo-verdeanos e outros povos do mundo pudessem ser os donos do seu próprio destino! Imaginar que Martin Luther King e Nelson Mandela lutaram para que homens e mulheres tivessem o direito de participar na vida política e, nos tempos de hoje, os técnicos cabo-verdeanos se abdicam dessa oportunidade de manifestarem os seus posicionamentos publicamente;

6. A questão não é o assumir-se técnico apartidário, num afã de evitar qualquer possibilidade de conotação com políticos e partidos, remetendo para o espaço privado todo e qualquer contacto com estes. Esta que até é uma opção legítima e democrática, merecedora de todo o respeito! A questão é fazer isso enquadrado num esquema de acautelamento de imagem pública pessoal, abdicando-se de urgentes pronunciamentos no espaço público que seriam a favor do bem comum. Uma vez que esta opção pelo silêncio, pela sombra do resguardo, com foco no favorecimento pessoal e material, retira qualquer legitimidade ética e moral de criticar o político e os partidos de defenderem os seus interesses, na medida em que é exatamente isso que faz quem opta por manter os seus beneficios - atuais ou em perspetiva - a troco do seu silenciamento no espaço público em matéria do seu domínio técnico e científico. Um silenciamento potencialmente lucrativo numa sociedade que premeia com tachos os surfistas e malabaristas sociais que vivem em cima do muro, e ostiliza sempre todo e qualquer "levantador de onda", qual insolente sem noção do seu lugar reservado por simples genealogia.

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine