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Sermão ao vento
Colunista

Sermão ao vento

Porfírio está cansado com a vida que leva e com a falta de recompensa.  Sentado no recurvo do poial de pedra dura, começa a palestrar, sem que ninguém o tenha desafiado a tal ofício. Assim, olhando para Firmino, o sobrinho que ali está, para uma curta visita, sai com este inesperado palavreado «a vida vai mudar do nosso lado. E, finalmente, por impulso de nós próprio. Ninguém está cá para apontar a expectativa na direção do vácuo e disparar. Nem tampouco à espera do atrelado que o levará à parte que o desagrada. E para empreender esta abrupta viragem, este fulano está compelido a passar do humilde sujeito nós, para moderna e refinada figura eu. A tal merenda que muitos esconjuram e abocanham ao mesmo tempo. O aroma dela passa-nos à porta, cola-nos na foice, impa-nos o peito, acossa-nos o imo, pica-nos o fígado e sobe-nos ao tino, impelindo-nos a dar-lhe guarida e proteção, como beltranos e sicranos de vida arfada regalada».

Firmino fica atordoado com repentina tirada do tio, fita Porfírio de frente. Depois, sussurra «eu não percebo patavina do que estás p’ra aí a dizer. Nem aonde queres chegar, meu ledo tio». Porfírio assume um ar carrancudo e reclama «lá vens tu com as tuas surdinas indagações e manias de só dar p’ra doido. Nós falamos em termos muito claros, mas podemos refrescar-te a memória. Propomo-nos para nós próprio um acesso exacerbado do ego, no seu tórrido e máximo esplendor, do tipo daquilo que devorava os corações de Príamo, Catão e Nero. Chama-o cultura do individualismo atávico e nocivo, se quiseres. Oh!, mas não podia ser de outra maneira. Se há muito de plantão em frente ao pórtico de amor, de «pés assentes na terra», do estilo de Claridosos, no epicentro das proezas do valor devoto ao ser humano, apenas pelo facto de o ser, e sempre nos viramos para o lado em que piamente acreditamos, com a máscula consciência, agudo afã de empenhamento na busca do bem comum e, se nunca falhamos nessa tarefa, a nossa vida é aquilo que é, que queres tu que façamos doravante? Então, esquece tu e os outros de nos continuar a impingir coisas e a exigir o mais do mesmo. Não vale a pena».

Firmino cruza os braços, não acusa o mais velho de estar com a cabeça barafundada, mas no fundo é isso que ele julga. Porfírio desconfia que Firmino o quer tomar por tonto e antecipa «parece estapafúrdio o que acabamos de anunciar. É intrigante isto de dar uma notícia assaz picuinha e nada altruísta. Bem, nunca duvidamos que assim fosse interpretado. Porém, estas coisas só se aprendem com o tempo e se apercebem com o cair de pano de extenuada dorida vida. Ouve cá, sobrinho: ninguém antes de Einstein tinha enxergado a deformação do espaço pela ação dos astros. Aqui no principado é o que se passa. A par da entourage performativa e legalmente instituída, há uma distorção imposta por um lobby pernicioso, de parcialidade-concreta, como diria Marx, fazendo o tenebroso papel de uma serôdia Eminência Parda, nestas paragens. E os efeitos não param de nos pairar sobre a cabeça e sobre as decisões dos próprios órgãos soberanos do principado. Percebes?

Verdade de La Palisse, meu sobrinho. O resto é cantiga de cigarra para pôr os papalvos a sonhar. Como deixava transparecer o grande Vário, há um tempo para vagar e outro para intuir o que se passa à nossa volta. Depois de nos batermos fogosamente para nos pormos na fila, no esconso de escuro túnel, na enxárcia dos andaimes de infortúnio ou no recesso de profunda terra agreste, para nos humilharmos o quanto baste a troco de tudo escorreito, tudo porreiro, tudo concorde, não sabemos se ainda temos paciência para acalentar boçalidades. I.é., depois de palmilharmos uma extensa vereda de provação, de consentida adversidade, de termos levado muita tareia à laia disso. Para que serve, a final, uma suada aprendizagem? Agir de outro modo não seria consequente com as regras de elementar bom senso».

Firmino está surpreso com o tio, não sabe se clama pela presença da madrinha ou se deixa o soba acabar de delirar, mas este revira-lhe os olhos e acrescenta «repara que na vida a maioria dos que avançam na progressão geométrica estão nas tintas para o comum das criaturas. Estão de candeias às avessas com a prosperidade dos seus famintos semelhantes. São uns tipos que se viram para si mesmos, para o próprio umbigo, e não se importam com mais ninguém. Quem consegue ir a lado algum, neste linhar de purgatório, pensando no parceiro de jornada? Quase ninguém. Muitas vezes encetamos um diálogo fraterno, com a maior das intenções, e estamos a falar com alguém que não apanha nada do que lhe estamos a transmitir. Isso porque ele está centrado e ensimesmado à volta do cosmo interno. De sorte que só lhe interessa falar no ego e nas suas putativas glorificações. Sabem que são efémeras, mas também não ignoram que só precisam delas enquanto estiverem por cá a galopar e a dar pinotes. Pelo que passamos o tempo todo a atirar palavras ao vento. Para esses, o nome de outrem é coisa de pouca monta. Apenas serve para lhes emprestar ouvidos de atenção à sua auto- deificação».

Firmino encara Porfírio com inquietação e pergunta «estás a falar de ingratidão, meu grande tio?». O mais velho, mexendo-se na agrura da pedra-de-purga, dá-lhe vivamente troco «sim, de ingratidão no mais amplo sentido do termo e da vida. Por isso, se daqui em diante nos virem por aí metamorfoseado, incaracterístico, prestativo em relação ao nosso umbigo, não se indignem nem digam «oh! Que estranho, companheiro! Estás diferente, hem?». Firmino apenas sopra «ah, é?», limitando-se a ouvir. Então, Porfírio esmiúça «pois, tal qual previra um sage da filosofia novecentista «serpente que não muda de pele não sobrevive». Aliás, como também diz o clássico ditado «aquilo que não tem remédio, remediado está». Firmino começa a ficar confuso e confessa «oh, já não te consigo acompanhar, meu tio». Porfírio, abre o polmão, bem formatado, de um nativo de cutelo, importa um profundo sorriso, que sai da distante alma sofrida, passa pelos alvos dentes que ele tem, vai até o rebordo dos grossos lábios africanos e especifica «isto é, se sabemos, de antemão, que certas maleitas não têm cura, para quê estarmos a perder tempo e tutano com elas. O melhor mesmo, embora se tratando, neste caso, de doença meramente metafórica, é aplicar-lhe uma tareia de consistente repugnância: desistência pura e simples. Olha, o Aníbal da província tivesse optado pelo cultivo do próprio ego, não teria hoje metade do seu costado ao deus dará e outra metade refém de truques e perfídias de chico-espertismo. Ao invés disso, ele deu tudo e morreu. E agora?».

Firmino fica lívido e suspira «ah, agora entendi, meu tio. Quer dizer que não vale a pena nos batermos numa coutada onde impera a lei de prebenda, compadrio e nepotismo. É isso?». Porfírio pensa um pouco e atira «exato, meu sobrinho! Um sol abafado vale mais do que mil lâmpadas luzentes na colina. Temos que aprender a ler os sinais do tempo. Não vale a pena contornar as forças do destino. Isto mudou de há um tempão para cá e não mais vai entrar nos eixos a que nós, os mais velhos, estávamos habituados. Tira a lição de nós próprio e começa a encarar a vida, aqui no reino, de outra forma. Alguns imberbes desta trincha de pó perderam a noção do ridículo. Quanto mais inábil e imbecil se é, mas cedo e esguelhamente se atira para frente. Poucos são os que querem iniciar uma carreira e levá-la a peito até se sentirem minimamente preparados para outros voos. Preferem antes escorregar do topo para base de pirâmide. No tocante à conversa que acabamos de ter, já não temos muitas ilusões. Aquilo que existe e não funciona não existe. O melhor mesmo é apartarmo-nos dele, isolarmo-nos em nosso casulo, em nossa retaguarda protegida, em nossa ínfima trincheira, insignificativa e pouco rendosa, mas segura e precavida. Depois, deixar a vaga tenebrosa planar o ar de devaneio. Assim, temos, ao menos, a perfeita sensação de não estarmos a atirar doutrina ao vento nem a pregar para o deserto, porque em ambos os cenários o que vamos ter é esterilidade, crua e nua. É óbvio que, no nosso caso específico, tanto quisemos e muito nos batemos para que o desfecho não fosse este. Sim, tentamos muito, sempre no amplo e estrito limite das nossas forças, mas ninguém é obrigado a levar ao colo a bomba do seu próprio definhamento».

Firmino sustém o ímpeto e rebate «tio, esta piada não será para mim? Não me digas que agora cultivas o ciúme do teu próprio sangue. Eu tenho uma leitura do principado completamente diferente da tua, mas não vamos discutir». Porfírio apressa-se a dissimular que vai desfazer equívoco e diz «ora essa, meu sobrinho! Isto não tem népia de pessoal. Estou a falar em termos abstratos e tu nada tens que enfiar a carapuça. Certo que tu nunca fizeste nada na vida, para estares a ostentar tamanho luxo, mas isto é outra história». Firmino não quer alongar muito na conversa, para não dar azo a uma peleja que pode acabar mal. Entra em casa, pede a bênção da madrinha, despede-se do tio e sai apressado. Já dentro do seu potente carro de funções, buzina três vezes, para dizer a deus, e desata a desaparecer a toda brida da vista do tio. Entretanto, a caminho de casa resmunga «chatice! Que escumalha de tio que me está sempre a mandar indiretas?». Na casa do tio, Porfírio clama pela mulher «Francisca traz-me o terço para rezar, que já é hora». A mulher chega, entrega-lhe o místico artefacto, fica ao pé dele. E este, antes de começar o ofício em conjunto com a esposa, passa o terço pelo pescoço, inclina a cabeça e suplica «ai, meu Deus, perdoe-me, por favor! Que me deu na tola para invejar o bem-estar do meu próprio sobrinho? Ah que pecado!». De seguida, começa a oração da tarde.

Domingos L. Miranda Furtado de Barros*

*Nas vestes de Donato de Advento

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