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Refletir a Universidade de Cabo Verde: Governança (3ª Parte)
Ponto de Vista

Refletir a Universidade de Cabo Verde: Governança (3ª Parte)

As unidades orgânicas da Uni-CV, com os seus Presidentes nomeados pela Reitora, por um mandato de apenas dois anos, ainda que renovável, sequer, têm autonomia para fazer aprovar os seus próprios regulamentos, prerrogativa que até as escolas do ensino básico têm autonomia para fazer. Aliás, as escolas básicas e secundárias estão com mais autonomia, pelo menos de ponto de vista legal, do que as unidades orgânicas da Uni-CV e os seus diretores têm um mandato de três anos. É basta consultar o Decreto-Lei nº 8/2019, de 22 de fevereiro. Portanto, é fundamental que se vire a página na forma de governar a Uni-CV, uma instituição de capital importância no processo do desenvolvimento do nosso país.

Um antigo Reitor da Universidade de Califórnia, o Magnífico Clark Kerr, autor do livro “Os Usos da Universidade”, nos anos 60, disse que as Universidades se transformaram num instrumento primordial de propósitos nacionais. Na verdade, os Estados Unidos é, hoje, o que é, muito por conta das fortes contribuições das suas Universidades, na forma como são e foram, desde muito cedo, compreendidos e governados. Basta ver que as suas contribuições começaram pela agricultura, quando, ainda em 1787, isto  é, 11 anos após a independência, na perspetiva de ligar as Universidades à vida quotidiana (o pragmatismo), o governo norte-americano se apercebeu da importância desse setor, e a primeira forma encontrada para financiar as universidades, de forma sustentada, foi através de doações de terras para venderem, mas também para explorarem, como campos de ensaio, e apoiarem os agricultores com novos conhecimentos. Mas a medida mais consistente nesse domínio foi tomada no ano de 1862, pelo Presidente, Abraham Lincoln, com a promulgação da famosa lei, conhecia como “Lei Morrill”, considerada como uma das mais fecundas peças de legislação, até então, aprovada naquele país (Kerr, 1982)[i].

É com o conhecimento que se desenvolve qualquer país, independentemente de recursos naturais que tiver ou não, e a Universidade, enquanto organização, cuja missão primeira é produzir conhecimento (e não dar aula. Esta é a consequência, ou seja, uma das formas de disseminar o conhecimento produzido), acaba por ser detentora da chave da economia e da sociedade do conhecimento. Nesta perspetiva, ela tem de estar, a todo tempo e de forma crítica, com os olhos postos nos níveis do desenvolvimento económico, social e cultural do seu país para, a partir daí, compreender a dimensão dos desafios que se lhe coloca e projetar toda a sua organização, funcionamento e qualidade de respostas necessárias. Em última análise, a sua governança equivale à governança do conhecimento e a formação de um sistema de conhecimentos necessários ao processo do desenvolvimento do país. Compreender tudo isso é fundamental por parte de quem tem a responsabilidade de montar e assegurar um sistema de governança adequada para a Universidade, neste caso, da uni-CV. Naturalmente, tratando-se de uma Universidade pública, essa responsabilidade se distribui entre o Estado e a Universidade, configurada na governança externa e governança interna.

A tendência internacional é para que o Estado desloque parte significativa dos seus poderes para organismos autónomos, como Agências de Regulação, para assegurarem a regulação e a garantia da qualidade, mas também para a própria Universidade, por via de concessão de uma ampla autonomia. No entanto, a questão do financiamento, apesar da autonomia concedida às Universidades, o que prevalece no plano internacional é que o Estado continua a ser o principal financiador das suas Universidades, contrariamente a o que se passa em Cabo Verde, com a preocupação de defender e promover a qualidade (entendida como melhoria constante), a equidade e o acesso no ensino superior público (Salmi, 2013)[ii], reforçando, contudo, o seu papel ao nível de accountability.

Basicamente, dos vários modelos de governança universitária, esses podem ser estruturados em: (i) modelo burocrático; (ii) modelo colegial; (iii) modelo das partes interessadas; (iv) e o modelo empreendedor. Este último, é mais reservado às instituições do ensino superior privado (Brunner, 2011)[iii]. Os quatro modelos de governança, no entanto, se orientam por dois tipos de paradigmas de gestão: o de gestão burocrática, para os dois primeiros; e o de gestão empreendedora, para os dois últimos.

Tratando-se de uma universidade pública, e nos tempos que correm, o modelo de governança universitária mais recomendado e que, provavelmente, melhor se adequa aos desafios da Uni-CV é o modelo das partes interessadas (the stakeholders model). Este é um modelo de governança que, como referido, se orienta por uma gestão empreendedora que combina o empreendedorismo com a colegialidade. Nesta perspetiva, é um modelo que se preocupa, simultaneamente, com o envolvimento dos stakeholders internos (professores, estudantes e funcionários) e com os stakeholders externos (governo, agências públicas, empresas, municípios, ONG’s, etc.) na vida da Universidade, construindo, deste modo, um grande ecossistema de participação e da ação universitária.

Ora, o sentimento reinante na Uni-CV é o de que o modelo de governança praticado na academia é muito centralizador (Brito, 2019)[iv] e, pelas suas características variadas, se situa entre o modelo burocrático e o colegial (colegial, por causa da representação formal do corpo docente no Conselho da Universidade, mas, como se sabe, tem funcionado deficientemente).  A reitoria, praticamente, define e decide tudo, violando flagrantemente um dos princípios mais básicos de gestão universitária e que faz parte da sua génese, desde o séc. XI, – a autonomia e a liberdade. Importa observar que não é por acaso que existe o conceito de campus universitário. No seu significado original, significa “território livre”, onde se vive a liberdade, se cultiva o conhecimento e a verdade, sem qualquer temor. Tudo isto exige que se crie condições e um ambiente favorável que promovem a autonomia pedagógica, a liberdade académica, a participação democrática dos stakeholders internos e externos e a transparência na gestão que, no conjunto, constituem as principais tecnologias da boa governança universitária.

A Universidade de Cabo Verde se estrutura em unidades orgânicas que, nos termos dos seus novos estatutos publicados em 2015, se configuram em Faculdades e Escolas, ao invés de Departamentos, como haviam sido anteriormente.  Provavelmente, no imaginário dos promotores dessa nova configuração, é mais chique ter Faculdades do que Departamentos ou mesmo Escolas e Institutos. Só que a questão é mais complexa, ou seja, mais do que a designação, é a natureza técnica subjacente. Quando se estrutura as unidades orgânicas de uma instituição do ensino superior em Departamentos, a ideia é de se ter uma gestão mais ou menos centralizada, por alguma razão, eventualmente, de “racionalização” de recursos, tanto de ponto de vista financeiro, como material e até ao nível do corpo docente. Foi a configuração da estrutura inicial da Uni-CV.  

Em 2015, as unidades orgânicas foram elevadas a categoria de Faculdade, na sua maioria, sem se procurar compreender bem a natureza técnica sobre a qual se fundamenta o conceito de Faculdade. O que acontece é que o modelo de gestão e toda a estrutura e os procedimentos de governança continuaram os mesmo e, talvez, com um centralismo ainda maior, ficando com Faculdades, praticamente, fantasmas.   Ora bem, dizem os especialistas que uma Faculdade é uma estrutura universitária autónoma que, no mínimo, deve ter vinte e cinco Professores Doutores e com uma grande capacidade de assumir a produção do conhecimento dentro da área ou áreas científicas sob a sua responsabilidade. Mas mais, cada Faculdade deve ter a sua gestão própria e, inclusive, relações internacionais, funcionando, no conjunto, como uma federação organizacional. Portanto, é uma espécie de Universidades (em rede) dentro da Universidade-mãe.

Efetivamente, na prática, quando olharmos para as Universidades lá fora, é assim que se organizam e funcionam, tanto as Faculdades, como Escolas ou Institutos. Este formato de autonomia das unidades orgânicas, que até se encontra amparo no Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior Cabo-verdiano (Decreto-Lei nº 20/2012), permite que cada uma das unidades orgânicas (Faculdades ou Escolas) tenha o seu próprio governo (como os governos regionais), estabeleça parcerias e redes, tanto nacionais como internacionais, podendo resultar em ganhos extraordinários para a Universidade no seu todo. Lamentavelmente, não é o que se tem notado na Uni-CV, o que cria todo um ambiente de dependência de estruturas e das decisões, com procedimentos excessivamente burocratizados, e com graves prejuízos para a instituição e todo o país. Um ambiente desse gera angústia, frustrações, desmobilizações e estagnações, com consequências nefastas no desenvolvimento profissional dos docentes, que tantos esforços pessoais fizeram e fazem para obter o grau de doutoramento e viver o mundo académico. Isto é, produzir o conhecimento e disseminá-lo, através da docência e da transferência do conhecimento, para as empresas e instituições sociais diversas do país e, por essa via, contribuir para o progresso nacional.

As unidades orgânicas da Uni-CV, com os seus Presidentes nomeados pela Reitora, por um mandato de apenas dois anos, ainda que renovável, sequer, têm autonomia para fazer aprovar os seus próprios regulamentos, prerrogativa que até as escolas do ensino básico têm autonomia para fazer. Aliás, as escolas básicas e secundárias estão com mais autonomia, pelo menos de ponto de vista legal, do que as unidades orgânicas da Uni-CV e os seus diretores têm um mandato de três anos. É basta consultar o Decreto-Lei nº 8/2019, de 22 de fevereiro. Portanto, é fundamental que se vire a página na forma de governar a Uni-CV, uma instituição de capital importância no processo do desenvolvimento do nosso país.

 

Referências



[1] Arnaldo Brito - É Professor na Universidade de Cabo Verde e Vice-Presidente da FORGES (Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa - https://www.aforges.org). É Doutorado em Educação, na especialidade de Administração e Política Educacional - vertente Governança Universitária e Mestrado em Organização e Administração da Educação, Licenciado em História e habilitado com o Curso do Magistério Primário.  Contacto: arnaldo.brito@docente.unicv.edu.cv / arnaldo.brito@sapo.cv


[i] Kerr. C. (1982). Os usos da universidade. UFC. Fortaleza Edições.
[ii] Salmi, J. (2013). Defining a sustainable financing strategy for tertiary education in developing countries. Policy note prepared for AusAID. Retirado de: http://www.auserf.com.au/wp-content/files_mf/1373503003Policynote6_DefiningaSustainableFinancingStrategy_FINAL_26062013.pdf
[iii]Brunner, J. (2011). Gobernanza universitaria: tipología dinámicas y tendências. Retirado de: http://www.revistaeducacion.educacion.es/re355/re355_06.pdf.
[iv] Brito, A. (2019). Governança universitária: Modelos e Práticas. O caso da universidade de Cabo Verde. Lisboa: EDUCA.

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