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Milicianos: 46 anos depois da independência, há ainda assuntos tabu?
Ponto de Vista

Milicianos: 46 anos depois da independência, há ainda assuntos tabu?

Talvez um dia o supremo magistrado da nação tenha uma palavra – ou um gesto – de reconhecimento para com esses homens, os milicianos, que serviram o país cumprindo ordens de um governo legítimo, dando o melhor de si, com sacrifício das suas vidas. Alguns já nos terão deixado, mas os que ainda vivem, já no entardecer da vida, teriam nessa palavra – ou nesse gesto – a recompensa que certamente já poucos esperam. Também os seus familiares se sentiriam verdadeiramente reconciliados com o país. Claro, não depende dessa palavra – ou desse gesto – a honra que sinto por ser filho de quem sou. Bebi do meu pai este amor a Cabo Verde. Pode ter servido o país duma forma que a opinião pública vigente desaprova. Porém, conhecendo-o como o conheço, sei que serviu o país com dedicação, honestidade e patriotismo.

Para uma abordagem a este tema, nada melhor que começá-lo sem rodeios, com uma categórica pergunta: faz sentido que haja assuntos “tabu”, desde que, com a independência, nos tornámos um país soberano e livre? Proponho uma despretensiosa reflexão sobre um tema que, pelo menos eu, nunca encontrei nos mídia… os denominados milicianos. Era uma criança quando foram extintos, após a consagração do multipartidarismo no nosso país. Mas lembro-me, no lugar onde vivia, de alguns homens – homens bons! – serem apontados como tendo sido milicianos e conheci gente das suas famílias que viveram essa circunstância como um estigma. Mas nunca, nem na família, nem na escola, nem mais tarde...,me responderam a estas perguntas: os milicianos eram uma organização? Como se enquadravam nas estruturas políticas, sociais ou de segurança, do nosso país após a independência? Eram voluntários ou profissionais remunerados? Serviam o país ou “partido único”? Proponho um debate – ou uma conversa – sobre o assunto.

Sou filho de um miliciano! Brinquei muito, em criança, com o boné verde e o cinto largo da farda de miliciano do meu pai. Além do boné verde e do cinto largo com que brincava, um par de botas! Foi a herança que nos ficou. Mudaram os tempos… o meu pai retirou-se sem lamentos, nem vitimizações, embora aqueles que com ele mais de perto conviviam, especialmente a minha mãe, já que nós, os oito filhos, erámos todos crianças, sofressem na carne as marcas que ficaram e se mantiveram por muitos anos. Sim, repito, isso mesmo: por muitos anos, quiçá para sempre!

Mudou o regime, do “partido único” para o multipartidarismo democrático, avesso a tudo o que fosse ou pudesse parecer limitador do pleno exercício da liberdade, ainda bem! Viraram-se contra os milicianos os arautos da Liberdade. Talvez com razão. Contudo, resta ainda saber se, na verdade, havia razões ou se os milicianos foram apenas o “bode expiatório”…  Passados que são tantos anos como os anos da vida que já vivi, parece-me ser tempo suficiente para, com serenidade e objetividade, poder-se abordar este assunto.

Já um jovenzito, tentei saber se eram remunerados os milicianos, coisa que nem a minha mãe sabia… A resposta foi diplomática: “As pessoas antigamente trabalhavam em prol do país sem pensar em dinheiro”. Ou seja: é possível que tivessem alguma compensação económica – ou de outro tipo – mas aquilo que os motivava era servir Cabo Verde. A família, digo-o por experiência própria, beneficiava bem pouco. Ao contrário, muitas vezes sofria o impacto do stress, do cansaço do desgaste que a missão de miliciano acarretava consigo. E quando caíram em desgraça, aquilo que recebeu, foi vexames.

Afinal qual era a missão dos milicianos? O meu pai não falava no assunto. Aliás, o diálogo entre nós foi sempre escasso. Em todo o meu percurso da infância à idade adulta, a minha mãe foi sempre o apoio que tive, dela recebi afeto, carinho e proteção, e dela, de certa forma, fui confidente. Quando o meu pai começou a interessar-se em ter comigo alguma conversa mais profunda, já era eu homem feito e, então, fui eu a evitar dialogar com alguém que senti sempre tão distante de mim. Contudo, não significa que não estivesse atento, desde criança, ao que fazia o meu pai, designadamente no exercício das suas tarefas de miliciano. Lembro-me bem como conseguia manter a ordem na vizinhança, como a sua autoridade era respeitada! Muitas vezes surgia como um verdadeiro “juiz de paz”, aconselhando, dirigindo conflitos entre vizinhos e, até mesmo, do foro familiar, como aqueles que surgiam por ocasião das partilhas. Quando recordo o modo como o meu pai procurava ajudar as pessoas, sinto tantas saudades dele… uma saudade que chega de repente… me perturba…  e me vai curando de mágoas antigas dum passado que já foi, em relação ao qual nada me pesa na consciência, mas que talvez pudesse ter sido diferente.

Fechado este pequeno parêntesis de índole tão pessoal, faço questão em mencionar a memória mais bonita que me ficou do meu pai enquanto miliciano. Foi quando, em janeiro de 1990, o Papa São João Paulo II visitou Cabo Verde. Falava-se por todo o lado da missa que o Papa iria celebrar em Quebra-Canela. Sabia de antemão que não teria oportunidade de ver o Papa, nem ao menos pela televisão. Em Boa Entrada, onde vivíamos, não havia luz elétrica e apenas duas famílias de emigrantes tinham televisão. Toda a minha alegria se concentrou no meu pai… rigorosamente fardado, foi para a cidade da Praia convocado para cumprir a sua tarefa de miliciano na missa do Santo Padre. Quanto orgulho senti ao vê-lo entrar na carrinha que o foi buscar a casa para o transportar, a ele e a outros milicianos, ao Quebra-Canela!

Poderão os milicianos, algum dia, vir a ter algum reconhecimento por parte da sociedade a quem serviram? Poucos acreditarão nisso e, em boa verdade, eu sou o primeiro a não acreditar. Mas há sempre uma esperança que venho acalentando e que se apoia nas inspiradoras palavras do Presidente Jorge Carlos Fonseca no discurso que proferiu na Assembleia Nacional, na cerimónia de comemoração do Dia Nacional dos Direitos Humanos, que dois anos atrás se assinalou, pela primeira vez, em Cabo Verde. A data escolhida foi dia 25 de setembro de 2019, 28º aniversário da entrada em vigor da atual Constituição da República, após o regime de partido único em Cabo Verde. Referiu o Chefe de Estado: "Foram tempos difíceis, tendo muitas pessoas visto os seus direitos fundamentais mais elementares negados, sem que tivessem uma instância para onde apelar. Mas esse é um passado que faz parte da História, que deve ser perdoado, reparado no que for possível, embora não esquecido, para que não se volte a repetir por falta de atenção ou desconhecimento das novas gerações".  

Talvez um dia o supremo magistrado da nação tenha uma palavra – ou um gesto – de reconhecimento para com esses homens, os milicianos, que serviram o país cumprindo ordens de um governo legítimo, dando o melhor de si, com sacrifício das suas vidas. Alguns já nos terão deixado, mas os que ainda vivem, já no entardecer da vida, teriam nessa palavra – ou nesse gesto – a recompensa que certamente já poucos esperam. Também os seus familiares se sentiriam verdadeiramente reconciliados com o país. Claro, não depende dessa palavra – ou desse gesto – a honra que sinto por ser filho de quem sou. Bebi do meu pai este amor a Cabo Verde. Pode ter servido o país duma forma que a opinião pública vigente desaprova. Porém, conhecendo-o como o conheço, sei que serviu o país com dedicação, honestidade e patriotismo.  

 

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