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Estado de Direito e (in)Segurança em África*
Ponto de Vista

Estado de Direito e (in)Segurança em África*

Para uma abordagem eficaz da problemática dos desafios ao Estado de Direito em África, só temos um caminho digno, a meu ver: o do pensamento crítico.

Na verdade, esse é, para a generalidade dos Estados africanos, um grande desafio: consolidar o Estado de Direito. Em alguns casos, trata-se de muito mais do que isso; trata-se de erguer o Estado de Direito. Estruturá-lo, organizá-lo, fazê-lo funcionar.

Se quisermos ver essa problemática desde um outro ângulo, qual seja o das lideranças, resultará evidente que a tarefa de consolidação do Estado de Direito é o grande teste às lideranças africanas. Ou seja, perceber se e em que medida as lideranças africanas estão apostadas, comprometidas com o Estado de Direito.

Não que a tarefa seja delas exclusiva, mas sim porque lhes cabe o encargo de inspirar, de mostrar o caminho dos valores e princípios próprios do Estado de Direito, de imprimir sentido e coerência aos processos, de impulsionar as transformações, de, em suma, liderar. Verdadeiramente.

Verdadeiramente ainda, cabe perguntar: os líderes que temos serão lideres talhados para os tempos actuais ou serão ainda chefes largamente tributários da cultura de Estado monolítico e autoritário nascente com as independências africanas?

Teremos rompido com essa cultura ou deixamo-nos apenas ofuscar com o aparatus da Democracia? Contentamo-nos com a forma, com os rituais e negligenciamos o cerne da questão? O período entre as eleições será na verdade um período de engajamento genuíno com a consolidação da Democracia e do Estado de Direito? Os mandatos têm sido utilizados para mais e melhor Democracia e Estado de Direito ou prevalecem e têm primazia as estratégias de pura manutenção no poder? O poder pelo poder... Poderemos falar de solidez das instituições democráticas em África? Ou será que o funcionamento delas é ainda contaminado pela personificação dos cargos e pela perversa lógica da captura dos interesses públicos por interesses egoístas de grupos políticos ou de outra natureza?

A meu ver, ainda hoje é arriscado pretender que a Cultura da Constituição seja um dado adquirido em África, com os desdobramentos necessários, por exemplo, no que se refere ao respeito absoluto pela dignidade da pessoa humana enquanto valor primeiro e no que se refere à existência de um Estado informado e conformado pelos valores e princípios da constitucionalidade democrática.

Por outro lado, será possível afirmar, com seriedade, que se encontra definitivamente fechado o capitulo dos falhanços e dos incumprimentos? Creio que não. Situação extrema de falhanço é a dos narco-Estados ou, pior ainda, Estados de tráficos em geral. Importa ter presente que as independências continham, em si mesmas, um manancial de promessas de progresso e bem-estar. Era a mobilização generalizada pelos amanhãs que cantam e pela ideia de abertura de um ciclo post-colonial que seria necessariamente diferente, para melhor.

Não cabe aqui fazer o balanço.

Também não me parece produtivo estar amarrado às independências e ao que, com elas, houve de bom e de mau.

Importa hoje reconhecer que existem profundos atrasos de Desenvolvimento e, consequentemente, ter opções e politicas que façam sentido e produzam resultados nos tempos actuais – que são tempos complexos e difíceis globalmente e, em particular, para a África.

Um dado absolutamente revelador e inquietante é o da Pobreza.

Fixado que foi pelas Nações Unidas o objectivo de, até 2030, reduzir para menos de 3% da população mundial o número de pessoas a viver na pobreza extrema, já é hoje claro que, no melhor dos cenários, nessa data ainda estaremos nos 6%, globalmente. Se de 2010 a 2015 houve um avanço positivo dos 16% para os 10%, a verdade que se assiste agora a uma desaceleração no ritmo de redução das franjas da população que vivem na pobreza extrema.

A situação mais alarmante está nesta África ao sul da Sahara: conquanto tenham um meio de subsistência (os chamados working poor), 38% da população vive na pobreza extrema.

Desde 2010, uma queda de apenas 7 pontos percentuais.

Mais um dado atinente aos mais vulneráveis. Se no conjunto da população mundial pouco mais de 55% (sensivelmente 4 bilhões) não dispõem de nenhuma protecção social, no caso da África sub-sahariana a cifra é de 87%

Igualmente, e no que se refere à fome, verifica-se um aumento das pessoas sub-alimentadas ou sujeitas às situações de insegurança alimentar. A África é o continente mais afectado, com um quinto da sua população sujeito à insegurança alimentar extrema. Ou seja, mais de 256 milhões de pessoas. As maiores vitimas são as crianças: 1 em cada 5 crianças vive na pobreza extrema.

Na década que ora arranca, a África terá de conhecer ganhos consistentes na perspectiva dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável.

Sobretudo, não é possível perspectivar um futuro com desenvolvimento digno e sustentável se persistir uma tão alargada cintura de exclusão social e de inequidades.

Há já algum tempo escrevi que existe, neste particular, uma enorme divida de decência em relação a uma vasta parcela da Humanidade.

Mais do que nunca, são necessárias Lideranças competentes e comprometidas com o discurso da verdade e com a cultura de resultados. Líderes visionários, inspirados e inspiradores, capazes de merecer confiança e de renovar confiança pela qualidade do seu trabalho.

São cada vez mais incomportáveis os custos das lideranças incompetentes.

Ou seja, temos já um deprimente e debilitante estendal de oportunidades perdidas e recursos desperdiçados ou desviados, seja pelos mecanismos endémicos da corrupção, seja por incapacidade, má-gestão, má governação. Infelizmente, a corrupção continua a ser uma enorme mancha na África post-colonial.

É urgente a afirmação de uma cultura de prestação de contas, de controle, de accountability institucional e social.

A debilidade das sociedades civis é um factor a ter presente. Falta capacidade de critica, de mobilização, de organização e manifestação, de indignação colectiva, de contraposição.

Falta uma Imprensa forte, ou seja, independente e democrática.

Mas devo deixar uma palavra de cautela. Não haverá um discurso de um optimismo à outrance desenhado para vender uma África sem os dramas que persistem?

Porventura substituindo o Afro-pessimismo por um afro-optimismo desvairado...

Na ideia de uma nova África ou de uma África em movimento teremos um verdadeiro movimento, generalizado, ou tão-só casos excepcionais? Mais: nessa excepcionalidade será possível rastrear um genuíno compromisso com os valores e princípios do Estado de Direito Democrático? Ou de algum modo teremos um rebound do autoritarismo, agora travestido, up-dated, festejado por conquitas nas frentes económica, das novas tecnologias, de um chamado reformismo....

No afã de festejar modelos de sucesso não estaremos a entregar de bandeja questões essenciais, definidoras mesmo, do Estado de Direito?

Desejo continuar a problematizar, agora situando-me especificamente aqui nesta nossa região e colocando a ênfase numa problemática que de forma evidente põe a descoberto o desempenho deficiente das lideranças, ou, dito de modo inverso, sublinha a necessidade de uma mais qualificada prestação por parte das lideranças, hoje.

Refiro-me à segurança e estabilidade. Temos de poder confrontar as lideranças com os dados nesta matéria. O seu desempenho nesta matéria é globalmente deficiente. Isto é grave na medida em que não há consolidação do Estado de Direito sem segurança e estabilidade.

E o fio orientador do meu raciocínio é o seguinte: não há pontas soltas.

1. Hoje em dia, falar de segurança é falar de um conceito polissémico – no que nessa polissemia haja de sentidos diversos e complexos, de ameaças, de riscos, de desafios, mas igualmente de sinergias e potencialidades. Estamos num território em que nada é imutável, evidente ou inquestionável. Os dados de ontem não são os de hoje. Na verdade, o conceito de segurança tornou-se abrangente, envolvendo praticamente todas as facetas da vida em sociedade, nos planos nacional e internacional. Tem tanto a ver com a gestão dos riscos ambientais e a defesa dos ecossistemas quanto com a luta contra a pirataria marítima e a ilegalidade em geral no alto-mar, bem como com o controle das fronteiras e a confiabilidade dos documentos, com o combate ao cibercrime, à circulação ilícita de capitais, à corrupção, ao financiamento da criminalidade, à contrafacção de medicamentos... Falamos de segurança humana, segurança societal, segurança cooperativa, segurança colectiva, segurança como um todo, ou seja, movemo-nos por entre uma variedade de conceitos que traduzem, ao mesmo tempo, a angústia perante uma complexidade crescente de fenómenos e a necessidade de abordagens integradas e que conduzam à responsabilização de todos. A segurança é um problema de todos. Por outro lado, são hoje redutores os conceitos de segurança interna e segurança externa, se isoladamente considerados. Ou, se se preferir, é cada vez mais ténue a linha que outrora demarcava a segurança interna da segurança externa e atribuía a primeira às forças policiais e a última às forças armadas. O famigerado ‘inimigo externo’ já não se identifica nem é definido nos moldes clássicos, da mesma forma que as ameaças passaram a assumir na actualidade diferentes feições, mais ou menos devastadoras, sendo extremamente difícil destrinçar, entre tais ameaças, alguma que seja puramente externa, ou seja, destituída de vínculos no plano interno, sob a forma de alianças ou cumplicidades, apoio logístico, infiltrações, redes, células, teias, malhas... Ou tão-só a cooperação involuntária que decorre de uma deficiente ou inexistente leitura dos dados, suas tendências de evolução e consequente projecção de cenários de actuação. Por exemplo, o terrorismo, o narcotráfico ou o tráfico de pessoas ou órgãos humanos são ameaças de longe muito mais reais no mundo de hoje do que a guerra tal como a entendemos, nos termos tradicionais. Dito de outro modo, vivemos num tempo de ameaças globais, na tal sociedade do risco e, como pretendem alguns, num tempo de guerra civil mundial, sendo que estamos submetidos a um estado de excepção que tende a tornar-se norma. Os Estados, enquanto sujeitos das relações internacionais, perderam o monopólio na definição da agenda de segurança global. Não raro vêmo-los meramente reactivos, defensivos, quando não mesmo a sucumbir no cumprimento de encargos essenciais. Há, com efeito, a brutal emergência de outros sujeitos, atípicos, disformes, inimigos sem rosto, como se queira, mas com uma tremenda capacidade disruptiva. E isto não é possível negar. Trata-se de uma marca dos nossos tempos. Mal informada estará a liderança que insista em aumentar as despesas com a Defesa ou as chamadas despesas militares conforme o modelo clássico, em detrimento de outras frentes, como, por exemplo, a Cibersegurança.

2. Nesta nossa região e desde o ângulo da Segurança, a posição de Cabo Verde é delicada e exigente. Somos um pequeno Estado insular, atlântico, africano e inserido num espaço muito específico que é a África Ocidental. Somos um país aberto ao mundo e exposto a tudo quanto de peculiar exista, para o bem e para o mal, neste espaço a que pertencemos. Ou seja, um perfil que engendra dinâmicas várias que, especialmente quando vistas pelo ângulo dos desafios globais ou comuns em matéria de segurança, tornam muito mais complexo o dia-a-dia do arquipélago e da sua governação. Os custos do contexto são, na verdade, elevados para Cabo Verde. Sempre o foram; são-no ainda mais nestes tempos de imprevisibilidade e de imprevidente desconstrução no plano das relações internacionais. Neste domínio, a certeza e a confiabilidade são hoje valores em crise.

Desejo referir-me em particular ao Atlântico e à África Ocidental.

Será esse Atlântico o tal corredor de paz e legalidade de que amiúde falamos? Será a região ocidental africana um espaço de estabilidade?

É caso para recordar alguns factos ou evidências. Em primeiro lugar, por esse vasto oceano circula muito da criminalidade transnacional organizada, a começar pela pirataria marítima e pelos tráficos de diferente natureza, sobretudo o narcotráfico; por outro lado, a África Ocidental tem visto crescer a sua importância enquanto placa do tráfico internacional de drogas; em terceiro lugar, a África Ocidental é ainda uma das mais pobres e instáveis regiões do mundo, facto este que propicia a intercomunicação entre o narcotráfico e outras valências da criminalidade organizada.

O Escritório das Nações Unidas para as Drogas e o Crime (UNODC), no seu mais recente Relatório Mundial sobre Drogas, de 2019, traz-nos um retrato que legitimamente justifica preocupações quanto à evolução do mercado mundial das drogas, tanto no que se refere à produção quanto ao consumo. Com efeito, o quadro mundial das drogas adquire uma maior severidade e complexidade. Globalmente, a produção/ oferta tem aumentado, todavia com contornos diferenciados. Importa perceber o que é que está em causa pois que se trata de uma ameaça global. É verdade que a área de cultivo da planta do ópio atingiu, em 2018, os 346.00 hectares, o que representa um alargamento em mais de 60% com relação àquilo que era dez anos antes. Mas, também em 2018, curiosamente o cultivo diminuiu em 17%. Porquê? A maior parcela dessa área total está no Afeganistão, com 246.000 hectares. Neste país, o cultivo diminuiu em 20% em 2018 por causa da seca mas também por causa da queda nos preços provocada pela superprodução nos anos anteriores, 2016 a 2018. Também no segundo maior produtor, Myanmar, verificou-se um declínio: em 12%. Aqui as razões têm que ver com a queda do preço do ópio mas sobretudo com uma intensificação da aposta na produção das chamadas drogas sintéticas, em particular metanfetamina, para responder ao novo paradigma de consumo na própria Ásia. Já no que se refere à coca, o quadro é diferente e, para nós, mais preocupante na medida em que a cocaína é a droga que mais circula neste nosso corredor. A tendência, na produção, é para o aumento. De 2013 a 2017, verificou-se um aumento de 100%, contrariando a queda, em cerca de 45%, que se tinha verificado no período 2000-2013, quando fortes medidas de política criminal levaram, por exemplo na Colômbia, à fumigação de áreas cultivadas e à destruição de plantações. Os três maiores produtores estão nos Andes, com, actualmente, uma área cultivada de 245.000 hectares, a maior de sempre. A Colômbia, sozinha, quadriplicou a sua produção, atingindo as 1379 toneladas de cocaína, o que representa 70% da produção global. O Peru assegura 20% e a Bolívia 10%.

Visto pelo lado do consumo, verificou-se na última década uma diversificação das drogas disponíveis no mercado. A par das tradicionais drogas de base natural (cannabis, cocaína, heroína), há a acelerada expansão da rede das NPS, novas substâncias psicoactivas, bem como, atenção!, de fornecimento ilegal de medicamentos sujeitos a prescrição médica. Os riscos maiores à saúde e à vida das pessoas decorrem da disponibilização de drogas sintéticas cada vez mais poderosas, com um desvairado grau de combinação de componentes. Na América do Norte, o consumo de Fentanyl e produtos análogos fez disparar as mortes por overdose. Também na Europa tem crescido o tráfico dos opioides sintéticos.

Em 2017, a nível mundial, as vitimas mortais das drogas em geral ascenderam a 585.000. Fica difícil não ver o narcotráfico como uma ameaça devastadora...

Por razões várias, a cannabis continua a ser a droga mais consumida, especialmente em regiões como a África Ocidental e Central, que representam 10% do consumo mundial.

Em termos de consumo global, por substâncias, verifica-se o seguinte: Cannabis, 188 milhões de pessoas; Ópio e derivados, 53 milhões; Anfetamina e afins, 29 milhões; Ectasy, 21 milhões; Cocaína, 18 milhões.

Tudo isto equivale ao seguinte: 271 milhões de pessoas, ou seja, 5.5% da população mundial na faixa dos 15 aos 64 anos de idade. Em 2009 eram 210 milhões. Este salto relaciona-se também com o aumento da população, é certo, mas não deixa de ser assustador.

Uma breve nota em relação ao mercado africano. Caiu de vez o ‘mito’ em como a África seria essencialmente uma zona de trânsito, não propriamente de consumo. Na África Ocidental, na Central e na do Norte, cresce de forma acelerada o consumo ilegal de opioides farmacêuticos, em particular o Tramadol, que normalmente seria um inocente analgésico. Só em 2017 foram apreendidas 270 toneladas. Esse Tramadol consumido ilegalmente em África e no Médio Oriente é ilegalmente produzido na África do Sul.

Um dado interessante é que a taxa global de apreensões tem aumentado, atingindo, nesta última década, níveis sem precedentes. Dois factores têm-se conjugado: as medidas de combate ao narcotráfico ao nível dos diferentes Estados e um mais eficaz quadro de cooperação internacional. Em 2017 foram registados, em relação a 71 Estados, um total de 2.7 milhões de apreensões, metade das quais relativas à Cannabis, que continua a ser a droga mais apreendida, representando 50% do total. Mas a apreensão de outras drogas também tem crescido. A da cocaína teve um aumento de 74%., ultrapassando assim as 1200 toneladas. Todavia, o crescimento mais acentuado tem sido em relação às drogas sintéticas (as Novas Substâncias Psicoactivas, os Estimulantes tipo Anfetaminas e os Opioides sintéticos). Se em 2001, com a primeira apreensão registada pelo UNODC, se estava nos 100 kilogramas, a apreensão das sintéticas é agora 400 vezes superior.

No que especificamente diz respeito à África, o registo de apreensões foi mais notável no passado. Por exemplo, no período 2009/2014, as apreensões de cocaína na África Ocidental (cerca de 22 toneladas), representaram 78% do total das apreensões feitas em todo o continente. Só em Cabo Verde, em 2011, foram 2 mil quilos numa única apreensão, no âmbito da “Operação Lancha Voadora”, a qual teve um enorme impacto no país e o seu desfecho, designadamente as decisões finais da Justiça, significou um enorme estímulo para as forças de perseguição do crime.

Nesse mesmo lapso de tempo, apreensões expressivas foram feitas também na Gâmbia, na Nigéria e no Gana.

Nestes anos mais recentes, destaca-se o caso da Nigéria, que fez em 2017, a maior apreensão de drogas sintéticas (essencialmente o Tramadol). Também houve apreensões do mesmo tipo na África do Sul e em Moçambique.

No que à cocaína de refere, destaca-se Cabo Verde com a apreensão de 9,5 toneladas em Fevereiro de 2019, e de 2256 kilos em Agosto último, com a ‘Operação Constância’. Ironicamente, pois que ‘Constância’ é o que precisamente não se verifica no quadro de apreensões em África...

Mas o tráfico existe e é intenso. As placas maiores nesse tráfico continuam a ser a Guiné-Bissau, o Mali e países do Golfo do Benin.

Trata-se de droga que parte da América do Sul, da região andina como já vimos, com destino à Europa e à América do Norte. Pontos de partida são o Brasil (representando 51% dos carregamentos expedidos), a Colômbia (18%), o Perú, com 13%, e o Chile com 9%.

Trata-se de operações cada vez mais ousadas e que envolvem meios sofisticados. É o tudo por tudo pela manutenção do mercado. Em contrapartida, será tudo menos surpreendente o crescente empenho europeu e americano na segurança, sobretudo a segurança marítima neste nosso imenso corredor de passagens quase tranquilas.

Já no seu relatório de 2016, o Escritório das Nações Unidas para as Drogas e o Crime asseverava o seguinte: “os esforços globais para o controle da droga tiveram uma dramática consequência não esperada: um criminoso mercado negro de proporções assustadoras. O crime organizado é uma ameaça à segurança. As organizações criminosas têm o poder de desestabilizar sociedades e governos. O negócio ilícito das drogas gera bilhões de dólares por ano, parte dos quais é utilizado para corromper agentes do Estado e para desestruturar economias”. Caso para referir que um relatório das Nações Unidas sobre a matéria situa os lucros do negócio global de drogas entre os 400 e os 600 bilhões de dólares americanos, modesta fatia no conjunto dos lucros do crime organizado transnacional, que, esses, ultrapassam os 2 trilhões.

Perante essa força tentacular e avassaladora, que capacidade de resistência terão certos Estados em muito mau estado? Não é preciso ir muito longe. Pensemos na nossa região. Debatemo-nos ainda com fragilidades de diferente natureza, não obstante os recursos financeiros gastos ao longo dos anos. A ideia de Estado de Direito é, em vários casos, apenas isso: a ideia. A debilidade institucional chega a ser gritante, como o é igualmente a ausência da Cultura de Estado e de lideranças honestas e empenhadas com a realização do interesse nacional. Os remendos de aparelho ou máquina pública são sustidos por servidores impreparados e muito mal remunerados. Mesmo as forças de segurança padecem de carências tremendas, o que as torna fatores de insegurança. A permeabilidade à criminalidade organizada é evidente. E, se queremos, por exemplo, reverter os magros resultados da luta contra o narcotráfico, temos de colocar toda esta realidade sobre a mesa. Sobretudo, neste cenário complexo e difícil, urge não perder de vista que o Estado tem de ser a principal garantia. E a verdade é que não há Estado funcional sem lideranças esclarecidas e honestas. É fundamental renovar continuamente a aposta no Estado de Direito como o contexto insubstituível e o antídoto mais eficaz na luta contra a criminalidade. Mais ainda, é essencial reforçar os quadros de diálogo e cooperação entre os Estados. Sobretudo, é preciso que haja confiança. Só assim os compromissos se forjam de forma genuína e com sentido de resultados.

Ora bem. Abordei assim, de forma demorada, o narcotráfico justamente para sublinhar que ele é a principal ameaça à segurança neste espaço em que Cabo Verde está inserido. Estará isso claro para as lideranças?

3. Outra grande ameaça é claramente o terrorismo. Neste particular, falar da África Ocidental é igualmente falar do Sahel. São realidades interconectadas, com problemas que fluem num sentido e noutro de forma imediata e intensa. Pelo prisma da segurança, não convirá ver entre elas uma fronteira ou, a haver, ela é de uma porosidade deveras altamente inflamável. Veja-se que dentre os países que vêm sendo como que sinónimo de Sahel (os do G5: Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger) quatro são estados da África Ocidental. O outro, o Chade, da África Central, tem tido um forte envolvimento na luta contra o terrorismo, designadamente contra o Boko Haram, nesse gigante do oeste que é a Nigéria. Também no Níger. Como quer que seja, estamos a identificar uma região ou uma faixa que, estendendo-se do oeste ao oriente, do Atlântico ao Mar Vermelho, é altamente problemática sob todos os ângulos. Nela estão ingredientes que apontam para a necessidade de um tratamento atento e num quadro de forte articulação internacional. Não se pode subestimar o potencial de risco aí instalado. É real a ameaça para a estabilidade global. Basta ver que se trata de um quadrante geográfico onde pontifica um estendal de problemas, de verdadeiras ameaças que não será possível conter indefinidamente. Tem de haver acção sobre as causas, pois que o êxodo não é solução. À cabeça desses problemas está a pobreza extrema, a par de um acelerado depauperamento ambiental e uma tremenda escassez de água; onde a população cresce de forma acelerada. O Mali é o país com a maior taxa de natalidade do mundo e no Níger cada mulher tem em média 7 filhos; uma região onde a crise migratória é entranhada e é dramática. Na Bacia do Lago Chade estão mais de 2.5 Milhões de pessoas deslocadas; é curioso reparar num como que pudor em referir os riscos no plano sanitário; uma região onde a profunda dependência da assistência humanitária internacional é um dado real; onde grupos terroristas estendem e consolidam os seus tentáculos, em especial a partir do Mali, que é, não tenhamos dúvidas quanto a isso, o epicentro da ameaça jihadista. Falamos, pois, de uma região onde existe uma clara aposta na disseminação do fanatismo violento, desde logo em torno do Islão radical, sendo evidente que com a deslocação de pessoas há também a circulação de ideias, de crenças, de projetos; uma região ainda onde armamento de diferente calibre circula sem dificuldades, sobretudo desde que, com a desagregação da Líbia, o próprio deserto do Sara passou a ser refúgio de traficantes e criminosos de todo o quilate.

Importa ter presente que a situação tem-se deteriorado enormemente nos tempos mais recentes. Se os países da região e a comunidade internacional globalmente considerada não estivessem a viver em negação, de há muito se teria reconhecido que a região está em estado de emergência. A questão não é a de saber se vai haver atentado terrorista, mas sim a de saber quando. Ninguém na região está imune. O nosso vizinho Senegal percebeu a dimensão do problema e fez investimentos consequentes. Desde 2016 mantem activo um apertado mecanismo de segurança de pontos críticos ou alvos preferenciais. Um dado importante no Senegal é o apoio das confrarias muçulmanas à luta contra a penetração do Islão radicalizado. Duramente atingido pela onda de atentados de 2016, o Burkina Faso tem feito um esforço notável, mas queixa-se do deficiente envolvimento dos vizinhos na perseguição aos combatentes jihadistas nas zonas fronteiriças. A experiência do G5 é um falhanço. A intervenção por via da Barkhane não produz resultados credíveis, antes denuncia a ineficácia das respostas puramente militares. Em contrapartida, os grupos terroristas reorganizaram-se, cresceram e cooperam fortemente entre si. Contam com verdadeiros santuários e apoio da população. O Boko Haram continua indomável, contrariando os sucessivos certificados de óbito que lhe têm sido emitidos pelo Presidente da Nigéria. O Estado Islâmico está apostado em estender a Jihad em África e já anunciou que o objectivo estratégico é dominar o Sahel e descer para o Sul, para o Golfo. No quadro do chamado post-jihadismo, acicata os conflitos inter-comunitários e disso tira proveito, incendiado os ânimos contra a presença estrangeira. Perante a destruição das economias locais devido a sanções que visavam minar o financiamento do Boko Haram, verifica-se o fenómeno do emprego perverso, ou seja, os grupos jihadistas são os principais empregadores dos jovens camponeses. Em suma, os Estados têm sido ineficazes e não se vislumbra uma evolução favorável, apesar e porventura por causa do ritual de conferências, fora internacionais, colóquios... A política preventiva não existe. Há, isso sim, a deriva para o aumento das despesas militares clássicas. Entrementes, o risco real é o de o terrorismo, sempre de mãos dadas com outras formas de criminalidade organizada, se tornar endémico na região. Estarão as lideranças a perceber esta linha de evolução?

4. Retenhamos o seguinte: em matéria de ameaças e desafios globais, nada nos pode ser indiferente, a nada devemos ser alheios. Temos de levar à sério todas as ameaças. Pensemos ainda no avanço dos extremismos, no agudizar do racismo e da xenofobia, pensemos no desafio da gestão global das migrações, pensemos no drama dos refugiados, em especial nos refugiados ambientais... Por via de regra, negligenciamos a promoção da segurança. Nas escolas, na circulação rodoviária, na construção civil e urbanização, nos condomínios e outros espaços de fruição colectiva, na protecção de menores e pessoas vulneráveis... Precisamos incorporar a Segurança como uma dimensão das nossas vidas e isto é, claramente, um desafio da Cidadania e da Educação.

5. Para um país que nem Cabo Verde, mas igualmente para a generalidade dos países da região, segurança e estabilidade devem ser sempre entendidas como recursos estratégicos. Não há desenvolvimento sem segurança e estabilidade. Isto fica especialmente evidente se se tiver em conta os ingentes desafios de desenvolvimento por enfrentar, mormente no horizonte 2030. A insegurança não deve perpetuar-se como uma vulnerabilidade na realidade africana e, assim, um entrave ao desenvolvimento. Pelo contrário, urge promover e salvaguardar a Segurança enquanto esse tal recurso estratégico, precisamente. Os factores corrosivos desse recurso são transmutantes e de complexificação acelerada. Há cada vez mais estratégias e acções, individuais e colectivas ou organizadas visando a delapidação desse recurso. Há uma nova tipologia de crimes e formas mais requintadas de sua comissão. O que possa à primeira vista configurar-se como um crime ‘doméstico’ poderá ser apenas a ponta de uma malha internacional. A cadeia de autores materiais e mandantes é imbrincada, com complexas conexões orgânicas e territoriais. O crime é cada vez mais organizado, transfronteiriço, fluído, inteligente. O importante é ter a serenidade e a sagacidade para evitar a leitura angelical dos fenómenos, tendo presente que não há sociedades sem crimes, muito menos a sociedade internacional. Estarão as lideranças a reconhecer a centralidade destas problemáticas e a agir em consequência?

6. Em boa hora o país soube definir o seu ‘Conceito Estratégico de Defesa e Segurança’, adoptado em 2011. Porventura esse documento carecerá já de alguma actualização, mas o essencial está lá, pertinente e arguto. Da mesma forma, parece-me que o nosso sistema de Defesa e Segurança, não sendo perfeito, tem aliás insuficiências várias, todavia é credível e tem dado o seu contributo para o bom funcionamento do nosso Estado de Direito Democrático. Da arquitectura ainda existente, recordo as seguintes peças fundamentais: o diploma que fixa o Sistema de Segurança Nacional, a lei que define o regime das Infraestruturas Críticas, o diploma que aprova a Estratégia Nacional para a Cibersegurança. A tudo isso deve acrescentar-se todo o investimento, ao longo dos anos, no reforço institucional dos vários entes da área da Segurança, seja no plano do alargamento e capacitação dos recursos humanos, seja no que se refere a meios de diferente natureza. A questão que permanece, e pessoalmente já a tenho formulado em várias circunstâncias, desde há muito, é a de saber por que é que nem sempre esses investimentos se traduzem em resultados esperados, por exemplo, em matéria de combate à criminalidade urbana. Tal questionamento é legítimo por parte da sociedade civil e de cada cidadão ou cidadã individualmente, mas tem de ser mais eficazmente colocado na dinâmica inter-institucional, designadamente em sede parlamentar. É a lógica da accountability, da responsabilização democrática.  

7. Igualmente deve constituir motivo de reconforto a verdadeira rede de parcerias de que dispomos neste domínio da Segurança e Estabilidade, envolvendo uma pluralidade de Estados. Trata-se do resultado de uma intensa Diplomacia para a Segurança, impulsionada e servida pelo principio da intencionalidade. Nunca nos passou pela cabeça querer enfrentar sozinhos os desafios que nos rodeiam, o menor deles não sendo o vastíssimo espaço marítimo. Ninguém é seguro em isolamento, nem os grandes, muito nós outros, os pequenos.

8. No ponto em que nos encontramos em Cabo Verde, é crucial que nós mesmos, cabo-verdianos e cabo-verdianas, não nos transformemos em factores de insegurança. Há desafios nossos que temos de poder enfrentar. Telegraficamente, aponto o seguinte: o desafio da coesão social ou do combate à exclusão, à pobreza, ao desemprego. Esses são contextos propícios à insegurança. Por outro lado, o desafio da qualificação do discurso sobre a segurança, a todos os níveis. A nossa sociedade já é em si fortemente opinativa, pelo que quem esteja em cargos de responsabilidade neste domínio tem de subir a fasquia, com um discurso credível, que signifique ‘Estado’ e transmita conforto. O discurso político não pode ser uma réplica da conversa mundana do comum dos cidadãos nem muito menos transmitir a ideia de uma tranquila diluição de responsabilidades.

9. A concluir, quero referir-me a um desafio essencial: o da construção de consensos nas matérias relativas à Defesa e Segurança. A politização dessas matérias nas últimas campanhas eleitorais foi um erro tremendo. Eu disse isso logo em 2016, enquanto convidado ao ‘Jornal de Domingo’ da RTC. Continuo a pensar que vamos a tempo de controlar os estragos. Todos, mas sobretudo a classe política, temos de ser capazes de contribuir para um pacto de regime em matéria de Defesa e Segurança. Um desdobramento necessário de tal pacto tem de ser o consenso constitucional para a refundação do Sistema Nacional de Defesa e Segurança. O modelo vigente já está esgotado. Precisamos de um novo e mais ousado desenho que melhor responda à nossa condição de pequeno Estado, arquipelágico, atlântico, vulnerável e sujeito a ameaças globais. Dar a Cabo Verde esse novo desenho equivale a um desafio geracional. Julgo que o Parlamento deveria ter a sagacidade de constituir um comité de personalidades para debater esta matéria e propor cenários. Pois que, a meu ver, não haverá discussão produtiva se ela se confinar aos espaços contaminados pelas lógicas corporativistas e ou pelo despique partidário-parlamentar. É preciso sair dos outeiros tradicionais e entrar nas estradas largas normalmente percorridas pelas academias, pelas fundações, por think-tanks, por pessoas que estudam e reflectem profundamente. Também neste domínio Cabo Verde precisa de pensamento crítico.

Palmarejo, Janeiro de 2020.

Confira o artigo original neste link: https://drive.google.com/file/d/1itI4QOmRbUi3zrWHv90JfkUcD5Drce8Y/view?usp=sharing

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