• Praia
  • 29℃ Praia, Cabo Verde
Afirmar que a PN de Cabo Verde tem 150 anos é uma grande fraude!
Ponto de Vista

Afirmar que a PN de Cabo Verde tem 150 anos é uma grande fraude!

Dentro de duas semanas, mais precisamente a 15 de novembro, os cabo-verdianos vão assistir com pompa e circunstância a sua polícia “monárquica” a comemorar 150 anos (um século e meio); façanha que não está ao alcance de nenhum país africano, mas de apenas uma dúzia de estados milenares.

Esse registo de nascimento, teve como protagonistas um grupo de oficiais da polícia que, em dezembro de 1990, altura em que o país se encontrava numa lufa-lufa para a realização da 1ª eleição legislativa multipartidária, se reuniu de emergência para fixar uma data dedicada à Polícia Nacional de Cabo Verde.
O que inspirou esse grupo foi o Decreto-lei da 1988, do então governo do PAICV, que consagrava o dia 15 de Janeiro como o dia das Forças Armadas de Cabo Verde, em reconhecimento aos 27 (vinte e sete ) Ccabo-verdianos, liderados pelo Comandante Pedro Pires, que em 1967, após uma preparação militar em Cuba, prestaram juramento perante o líder histórico da independência da Guiné e de Cabo Verde, Amílcar Cabral, comprometendo-se a lutar e dar a sua própria vida, caso fosse necessário, para a independência de Cabo Verde.

Se essa data, 15 de janeiro de 1967, 8 (oito) anos antes da independência nacional, é consensual e constitui um orgulho para os militares; já as propostas desse grupo de oficiais da polícia postas em cima da mesa não foram consensuais, porque nessa data, 1990, ainda havia várias gerações de polícias: dos anos 50, 60 e 70 dentro da instituição e nenhuma queria que a data do seu ingresso fosse ignorada.

Como forma de agradar a gregos e a troianos, tiveram de recuar até ao final do século XIX (1870) altura em que Portugal, potência colonizadora, era uma monarquia, sendo o rei D. Luís I.

Nesse recuo apressado, (a pressa é inimiga da perfeição) o grupo de oficiais acima mencionado não se apercebeu dos atropelos cometidos: repristinou uma lei, ignorou decretos e portarias posteriores a ponto de fazer com que a nossa polícia batesse vários recordes: o de a mais velha da África, o de a única no mundo que existiu antes da existência do próprio Estado e de ser a única polícia do mundo criada pela potência colonizadora que se mantém, mesmo após o reconhecimento internacional desta nação como estado soberano, com todas as suas estruturas independentes, isto é, toda a administração e todas as forças existentes no país são republicanas, apenas a polícia conserva o seu registo de nascimento da época monárquica.

Não se compreende o porquê da tomada da data de 1870, se nessa altura, através da portaria nº 194, publicada no BO de 30 de julho, o Governador Geral Caetano Alexandre de Almeida Albuquerque apenas nomeava uma comissão para a realização de estudos e apresentação de uma proposta de regulamento para a criação da polícia da cidade da Praia.

É só no ano de 1873, de acordo com o BO de 20 de setembro, que João de Andrade Corvo, Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal (de 1871 a 1878) aprova a criação da polícia da Praia, composta por soldados e chefiada por oficiais do exército.

Mesmo assim, essa polícia da Praia, criada em 1873, teve vida efémera. Viria a ser extinta poucos anos depois, para dar origem a duas novas polícias, sendo uma da Praia e outra do Mindelo. A extinção pôs fim ao decreto de 1873, consequentemente, essa data deixou de ser válida como data da criação da polícia da Praia.
De 1873 (data da criação da polícia da Praia) até 1974 somam-se 101 (cento e um anos). E, de acordo com os dados de vários Boletins Oficiais existentes no Arquivo Histórico Nacional, a polícia de Cabo Verde passou por várias metamorfoses desde extinção, alterações, mudança de nomenclatura a fusão com as forças armadas.

Em 1870, a Guiné-Bissau estava anexada a Cabo Verde e tinha o mesmo governador, residente na cidade da Praia, e assim permaneceu até 1878. Os proponentes dessa data para a polícia de Cabo Verde, também consideram que a polícia guineense é centenária?

A Polícia de Cabo Verde foi colocada no mesmo patamar das Polícias das principais potências europeias como: a da Inglaterra de 1839; a da Espanha de 1824; a da Holanda de 1814; a da França de 1941 e a Portuguesa de 1867, esta só três anos mais velha do que a nossa. Se descermos para o Norte de África, a polícia Argelina foi criada em 1962 e a Marroquina em 1957 – todas criadas depois da independência da colónia francesa. No entanto, havia polícia nesses países antes da independência.

Nos países de língua oficial Portuguesa, nenhuma polícia tem mais do que 50 anos; todas surgiram no período pós-independência. A nossa com os seus longos 150 anos é (tetravó) das polícias de Angolana que tem 50 anos e de Moçambique que tem 28 anos. O caricato, para não dizer humilhante é que, a lógica do “aprender com os mais velhos” neste caso não funciona, porque são estas duas polícias que formam agora os oficiais da PN de Cabo Verde, isto é, os tetranetos ensinam a tetravó.

Há uns anos, na cidade da Praia, durante uma reciclagem das nossas polícias no Quartel-Escola Daniel Monteiro, presenciámos o embaraço de um colega que tentava responder ao instrutor português, porquê que um país recém-independente tem uma polícia tão velha como a deles, um estado com mais de oito séculos de existência. Após muitos rodeios, vimos no semblante do tuga, o esboçar de um sorriso maroto, de alguém para o qual os argumentos não foram convincentes.

A polícia e as Forças Armadas são instituições diferentes das demais. Os seus agentes, no final da formação, fazem sempre o juramento perante os símbolos nacionais, no caso em referência, a polícia dos 150 anos, fizera-o perante a bandeira verde e escarlate das cinco quinas e do hino nacional “Heróis do mar, nobre povo Nação valente, imortal Levantai hoje de novo o esplendor de Portugal” e mais, jurou cumprir e respeitar a constituição monárquica da época.

Neste momento, não quero pensar nas várias e longas noites sangrentas e de luto que o povo das ilhas viveu desde o povoamento até o 25 de abril de 1974, não quero saber que polícias ou exércitos sufocaram várias revoltas de Santo Antão, Ribeirão Manuel e Achada Falcão, não quero pensar na criação da temível polícia política PIDE (Policia Internacional e de Defesa do Estado) em 1945, na Direção Geral de Segurança(DGS) que vigorou de 1969 a 1974, nem quero me lembrar que um dos artigos da PIDE e da DGS dizia que a polícia de segurança pública tinha por obrigação colaborar com elas, não quero me lembrar da criação do campo de concentração do Tarrafal (o da morte lenta) em Santiago em 1936, nem das muitas prisões dos nossos cidadãos e dos de outros países nos anos 60-70 que encarcerados ali, tendo muitos ficado até maio de 1974, uns saíram vivos com sequelas graves, outros os familiares tiveram o infortúnio de receberem pequenas caixas com as ossadas, não quero pensar, porque senão, mudarei o título e o próprio texto.
Voltando ao que interessa neste momento, e para pôr um ponto final sobre a data da criação da Polícia de Cabo Verde, diria o seguinte:

A 5 de Julho de 1975, Cabo Verde tornou-se num estado independente e soberano, com o seu hino a sua bandeira e poder político instalado, passados 18 dias, a 23 de Julho, o governo mandou publicar no BO o Decreto-Lei nº 4/75 que dizia o seguinte:“ Considerando que a estrutura administrativa herdada do colonialismo não serve nem às necessidades nem os interesses da República de Cabo Verde, (…) o governo cria a Direção Nacional de Segurança e Ordem Pública (DNSOP)”. Para efeitos de Segurança e ordem pública divide o país em três agrupamentos:

1º Sediado na Praia, composto pelas ilhas de Santiago, Maio, Fogo e Brava
2º Sediado no Mindelo, composto pelas ilhas de S. Vicente, Santo Antão, S. Nicolau e Santa Luzia.
3º Sediado nos Espargos composto pelas Ilhas do Sal e da Boa Vista.

Conforme se pode verificar, esse decreto também foi ignorado e para mim é a verdadeira data da criação da Polícia Nacional de Cabo Verde.

Que ninguém pense que esta posição é recente. Tenho contestado esta data reiteradas vezes ao longo dos anos, verbalmente perante superiores hierárquicos, por escrito num jornal da praça, escrevia em tempos “É falso que a polícia do meu país tem essa idade” e há sensivelmente três anos numa cerimónia de apresentação pública do livro de um amigo, no salão nobre da Câmara Municipal do Sal dizia que a nossa Polícia não tem 147 anos.

Sabemos que para quem já festejou 120º, 130º, 140º e 149º aniversário e que dentro de dias vai festejar 150º, voltar atrás para festejar 50º anos é confrangedor, mas, errar é humano. Os meus colegas cometeram na época um erro crasso que deprecia a história, no país de grandes historiadores como António Carreira, Correia e Silva, Iva Cabral, Zelinda Cohen, Eduardo Camilo e tantos outros.

Para Cabo Verde, país conhecido como sendo de dirigentes competentes e com prestígio internacional, essa falha terá passado despercebido. Como referido anteriormente, esta escolha foi feita em plena campanha para as legislativas de 1991 e com a mudança de regime de partido único, dias depois, o novo governo do movimento para a democracia de 1991, com outras preocupações prioritárias, consequentemente, não prestou atenção à data escolhida - 1870 em pleno reinado do D. Luís I, rei de Portugal.

Tenho muita fé nos novos oficiais, subchefes e agentes da nossa Polícia Nacional que brevemente estarão à frente da instituição, têm formação sólida e nova visão. Consequentemente, uma árdua tarefa lhes espera: restaurar a dignidade da classe, ter voz própria, ser defensores acérrimos dos membros, banir o medo instalado e tirar a Polícia Nacional do rol das instituições menos confiáveis do país.

A reposição da verdade histórica é um imperativo e, ainda, vamos a tempo. Corrigir o erro é um ato nobre e persistir no erro é…termo que por respeito e consideração prefiro omitir.

Praia 02 de Novembro de 2020

* Oficial da Polícia Nacional

(N.d.R: erroneamemte Santiago Magazine atribuiu o título de Comandante da Polícia Nacional a Elias Silva, autor deste texto. Apesar de ser oficial da PN, Silva escreveu o presente artigo enquanto cidadão. As nossas desculpas aos lesados)

Actualização feita às 12h15 de 2 de Novembro

Partilhe esta notícia

SOBRE O AUTOR

Redação