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Do novo “pragmatismo” político
Ponto de Vista

Do novo “pragmatismo” político

A semana produziu dois episódios que, esmiuçados, deveriam fazer qualquer cabo-verdiano ficar preocupado. Por denotarem um mesmo padrão e serem ambos igualmente graves, vamos pela ordem cronológica dos acontecimentos.

O primeiro trata-se de um suposto apoio incondicional que o nosso Presidente terá garantido ao PM israelita e que este último postou no twitter. Uma suposta garantia de que o país, doravante, não passaria a votar contra Israel. O segundo episódio é o terreno, sito na Praínha, mesmo ao lado da residência oficial do Embaixador de Portugal em Cabo Verde, que a CMP vendeu ao ainda embaixador da UE no nosso país.

Se no primeiro caso o PR veio desmentir a notícia veiculada por órgãos nacionais e israelitas, que tomaram como verdade a publicação de Benjamin Netanyahu, já no segundo caso foi a própria CMP a emitir um comunicado, confirmando e fundamentando a sua decisão, dando então por verídicas as notícias que deram conta dessa transação.

Em ambos os casos não são os actos em si que são reprováveis - até porque, como já se disse, o nosso PR, para descanso de muita gente (não todas, como haveremos de comprovar), veio desmentir que tenha dado essa tal garantia ao PM israelita – mas, dizia, são as reacções de pessoas muito influentes e com responsabilidades públicas que, tomando como verdade, subscreveram essas decisões, avançando até com explicações e justificativas que consideramos inacreditáveis e, até, inqualificáveis.

Comecemos pelo caso da suposta garantia dada a Israel.

Em primeiro lugar, o foco, neste caso, não pode ser o mérito das acções passadas de Israel na senda internacional e nem tão pouco o país Israel em si. São irrelevantes. Aquilo que estaria em causa (caso a garantia tivesse sido dada) seria, sim, a postura de Cabo Verde no panorama internacional e a sua credibilidade. Estaríamos a dizer ao mundo que não nos interessam as acções, as suas consequências e a sua conformidade com os princípios, o direito e as leis internacionais. Estaríamos a transmitir à comunidade internacional que, nós enquanto país “de parcos recursos”, havendo um “parceiro certo” e disponível para pagar um “preço certo”, dispomo-nos a abdicar dos princípios que norteiam o direito internacional e os povos, adoptando a indigência como pressuposto de política internacional e a traficância como atitude diplomática.

A postura de Cabo Verde na senda internacional deve ser norteada e alicerçada em princípios e valores universais, de respeito pelo direito internacional e de salvaguarda das liberdades dos povos. E devemos votar e posicionar-nos, não contra países, mas sim em concordância com esses princípios e valores. E é impressionante que os agora cambistas da dignidade queiram comercializar a credibilidade do país a troco de “recursos” e “parcerias”, usando a escassez como justificativa. São os mesmos que se vangloriam de terem trazido a democracia e as liberdades a esta nação.

Que cada um tenha a liberdade de fixar um preço para a sua pessoa, não nos diz nada. Que, enquanto dirigentes, assumam essa postura, comprometendo toda uma nação, isso sim nos preocupa e faremos sempre questão de o manifestar.

Relativamente à venda do terreno a José Manuel Pinto Teixeira, o ainda embaixador da UE em Cabo Verde, por se tratar de algo consumado e confirmado pela autarquia, a questão é ainda mais grave. Trata-se de um terreno que já tinha sido vendido a um cidadão nacional e que fora embargado pela Embaixada de Portugal em Cabo Verde. Isso há uma década.

Ora, não tendo sido alterada a lei que suportara o embargo de então, não se percebe que a mesma autarquia (embora sob consulado diferente) tenha vindo agora vender o mesmo terreno a este cidadão (o estrangeiro aqui é, também, irrelevante). O que torna esta situação ainda mais inqualificável é a justificativa que se deu para este negócio, totalmente em regime de excepcionalidade, à margem das leis, suportado apenas na “gratidão” e no “privilégio”. Da nossa parte, obviamente. Gratidão porque, segundo dizem, o dignatário contribuiu decisivamente para o “enriquecimento da parceria especial”, através da sua intercedência junto da UE que, também devemos sublinhar, é a sua entidade patronal. Privilégio (usaram este argumento, a sério), por tão nobre figura preferir fixar residência na nossa urbe, o que, segundo os mesmos, atesta o “excelente trabalho que a autarquia vem desenvolvendo na cidade capital do país”. Relembremos que já lhe tinha sido oferecido as chaves da cidade capital pela edilidade e atribuído, pelo Presidente da República, a Medalha da Ordem de Mérito. Tudo coisas que, como se pode verificar agora, foram insuficientes para cobrir todas as benfeitorias. Ou seja, continuará sendo nosso credor. Acho que mostramos ao mundo que, em matéria de subserviência, não conhecemos limites.

Com estes dois casos, cada um na sua dimensão, enviamos uma mensagem de um país que pode suspender a legalidade e os princípios, conforme as conveniências materiais. Mostramos que, em determinadas circunstâncias, onde podemos tirar vantagens tangíveis, podemos pura e simplesmente ignorar a ordem jurídica, qualquer que ela seja, desde que entendamos que com essa suspensão o país e a cidade venham a obter recursos substantivos e notoriedade.

Esperemos que não seja este o modelo que servirá de base para o crescimento a 7%, o pleno emprego e a felicidade prometidos. Afinal, se a busca da “katxupa” não pode justificar a venda ambulante desregrada e o “koitadismo” não é motivo para construção clandestina, não serão também a escassez de recursos e umas parcerias que darão cobertura a suspensões de leis nacionais e conivências com eventuais violações de direitos internacionais.

Finalmente, e porque vivemos em tempos de escassez de argumentos, onde “dor de cotovelo” e “preconceito ideológico” são já consideradas réplicas válidas, vou já afirmando que somos pró União Europeia e pró Israel. Aliás, somos pró todos os povos. Viva a ambos. Melhor, um bem-haja a ambos.

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Redação