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Os jornalistas e a política
Ponto de Vista

Os jornalistas e a política

Parece que o “grande debate” nas redes sociais crioulas é, nestes dias, a relação dos jornalistas com a política e os políticos. Apeteceu-me entrar neste debate colocando algumas questões de princípio, para que, de algum modo, se clarifiquem posições e se possa, de facto, polemizar de forma séria e elevada – o que não me parece estar a acontecer até agora (perdoem-me esta arrogância…). No entanto, sem muita esperança.

Desde logo, considero importante desfazer um mito: essa canhestra ideia de que o “bom jornalismo” é, por natureza e factualidade uterina, “imparcial e independente”. Isso não existe! É uma falácia propagada ao longo de decénios com a intenção óbvia de manipulação.

Aliás, basta aprender com a história do jornalismo para se perceber que esta atividade humana surge tomando posição, engajada, comprometida com alguma coisa, e que os jornalistas (no início dos tempos do jornalismo) eram conhecidos como “publicistas” (ou seja, alguém que faz publicidade a alguma coisa). De lá para cá, ao contrário do que nos querem fazer supor, esta relação tem-se mantido inalterada, apenas disfarçada pelo marketing sistémico da indústria do jornalismo dos nossos dias, grosso modo, controlado pelos poderes fácticos, pela economia global e pelos lobyes políticos e da classe dominante.

Esta falácia é por demais exacerbada em Cabo Verde, onde não há um único jornal que não se assuma como “independente” e “imparcial”, conquanto (como toda a gente sabe, mas assobia para o lado) dominados e teleguiados pelos dois maiores partidos caboverdianos.

Para além da falácia, há aspetos que questionam mesmo básicos conceitos de ética, como seja o facto de jornalistas serem candidatos a eleições e/ou assessores de políticos e, como se nada fosse e com a maior desfaçatez, regressarem às redações de órgãos de comunicação social públicos, fazendo reportagens e entrevistas de natureza política. É uma vergonha, é antiético e moralmente censurável, mas a ARC (essa estranha coisa parida no Parlamento com o beneplácito dos partidos) fica muda e queda como se nada fosse.

[A verdade é que a ARC cumpre o seu papel: fiel e reverenda aos poderes sistémicos, desvairada e torpe quando se trata de perseguir jornalistas e órgãos de comunicação social privados; absolutamente cega quando o patrão é o Estado – como os “bons costumes” recomendam!]

Em uma sociedade dominada de cima a baixo (até com aspetos patológicos) pela partidocracia, estranho seria que os jornalistas não tivessem posições políticas (para mais quando a maior parte dos órgãos de comunicação social são teleguiados pelos partidos). O jornalismo caboverdiano, pós-independência, tem o ADN dos partidos, como os jornalistas poderiam ficar imunes?!

E, mesmo no que respeita aos órgãos de comunicação social públicos (TCV, RCV e Inforpress), também toda a gente sabe que são os partidos que, regra geral, foram ao longo dos tempos povoando as redações de fiéis, senão mesmo de militantes ativos. Portanto, não venham agora (políticos e jornalistas) armarem-se em virgens púdicas… porque a culpa é vossa e só vossa!

Toda esta gente está lá, no interior dos órgãos do Estado, para cumprir o seu papel (salvo raras exceções), variável em função de quem é poder, mas globalmente fiel às primeiras escolhas. É esta gente toda que, agora, anda por aí armada em “independente” e “imparcial”… enganando o povo com papas e bolos e fazendo-nos de tolos!

Por outro lado, numa sociedade dividida em classes, é natural que quem detém a propriedade dos órgãos de comunicação social reflita os pontos de vista da classe dominante e manifeste as posições dos poderes sistémicos (resultantes do “alterne democrático”), tratem-se de órgãos de comunicação social públicos ou privados. E, também naturalmente, isso se reflita nas redações dos meios que, nos últimos anos, têm produzido a “proletarização” da classe, substituindo “jornalistas a sério” por estagiários à borla, avençados a preço de saldo e moças e moços de recado. É esta a realidade da chamada comunicação social caboverdiana, porque é também esta a realidade da comunicação social em todo o mundo!

Isto é, podem esgrimir argumentos, brandir “códigos de ética” e jurar a pés-juntos fidelidade à “verdade”, mas nunca irão alterar esta realidade. O resto é conversa para boi dormir.

António Alte Pinho
privado.apinho@gmail.com

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Redação