• Praia
  • 29℃ Praia, Cabo Verde
Praia Leaks XIV. Arrumando ideias e suspendendo até breve
Ponto de Vista

Praia Leaks XIV. Arrumando ideias e suspendendo até breve

Por razões pessoais e de meu foro íntimo, sem qualquer imposição legal ou ética, decidi suspender esta série de artigos, este convívio em diálogo com multidões (de pessoas na maior parte desconhecidas, no quadro do anonimato) até depois das eleições que se avizinham, seja qual for o resultado das mesmas.

Resumirei aqui, especialmente para quem não acompanhou essas jornadas de luta cívica coletiva (se assim me posso expressar), a essência do que escrevi até este momento e darei notícia do que publicarei após o período de suspensão.

Permito-me antes dois breves apontamentos prévios, um exatamente sobre o anonimato, outro sobre a natureza destes ditos “leaks”:

O fenómeno do anonimato nos pronunciamentos políticos é algo que nos países de verdadeira liberdade e democracia participativa será marginal, mas em outros – como temos de concluir ser o nosso - é a saída possível, antes de mais perante o Medo que domina a sociedade.

Sobre este ponto, o artigo de José da Veiga de Pina saído na semana passada no jornal Santiago Magazine é muito feliz e de leitura recomendável.

O Medo é ligado a possíveis ou imagináveis represálias dum poder público todo-poderoso no sentido de escassa consideração pela lei e sua aplicação por igual a todos, num país pobre e de frágil economia em que as alternativas de segurança material fora dos quadros do Estado são ainda muito exíguas.

Mas o Medo também poderá derivar de o cidadão estar exposto a poderes invisíveis como os que terão levado Vieira Lopes do nosso convívio, se realmente, como indicam os sinais claros, ele não morreu de morte natural.

São poderes privados com ligações institucionais difusas a partidos políticos com quem tenham mais afinidade, nomeadamente histórica e lhes sejam mais permissivos, mas que a nível do Estado procuram exercer a sua influência, em estratégia de penetração e promiscuidade, sobre não importa que forças ou personalidade política habitem os palácios do Poder.

Assim, poderá dar-se o caso de o Estado ter uma opção política de parceria estratégica oficialmente proclamada – e até com foros de aventureiro radicalismo para um país fragilíssimo, num mundo de multipolaridades crescentes e diversas -, mas esse mesmo Estado estar “habitado” por forças privadas, claras ou obscuras, de sentido oposto.

Essas forças, ou os rostos delas, apresentam-se na sociedade de forma “simpática”, muitas vezes com ares de humanitárias, através de associações e instituições diversas (algumas mesmo de utilidade pública “indiscutível”), que garantem a “normalidade” e uma socialmente sentida necessidade da sua atuação, o que é dizer, a sua legitimação.

Isto tudo vem a dizer que sempre compreendi bem a participação pública, neste país real que é o nosso, com comentários através do anonimato, aproveitando as novas tecnologias.

Reconhecerei agora que a expressão “leaks” não será totalmente apropriada, pela origem típica do seu uso (caso da WikiLeaks, organização transnacional sem fins lucrativos) para trabalhos que não sejam de puro “vazamento” público de documentos, oficiais ou oficiosos, secretos.

Mas PraiaLeaks é expressão sugestiva, já que se baseia em documentos politicamente relevantes, desconhecidos do grande público e que permitem compreender – especialmente se com comentários explicativos, alguns com certa pretensão pedagógica – causas e consequências de certos fenómenos sociais entre nós.

Por exemplo, as críticas que de há muito se ouvem em relação à falta de espaços públicos na urbanização de Cidadela, que fazem dela um dormitório desenxabido, podem ter muito a ver com o contrato secreto celebrado entre Jacinto Santos e a sociedade promotora da urbanização (que viria a ser a Tecnicil) em 4 de fevereiro de 2000, analisado no Leak X (“Um contrato para champanhe a dois”).

Um contrato através do qual aquele edil cessante, violando ostensivamente a lei, devolveu à dita sociedade 32,6% dos terrenos que, de acordo com o plano urbanístico detalhado (PUD) aprovado à pressa pela Câmara Municipal (ainda que ilegal, por não ter sido submetido à homologação do Governo e mesmo legalmente “inexistente” por não ter sido publicado), haveriam de ser destinados a espaços públicos, como praças, jardins, campos de desporto, etc.

Ou seja, um documento a provar que o edil deu à sociedade promotora a possibilidade de usar esses terrenos (terrenos públicos) para loteamento e venda lucrativa, em prejuízo da qualidade da urbanização.

Frisei bem que não tenho a pretensão de atribuir crimes ou mesmo criticar pessoas, na sua individualidade, mas apenas referenciar as ocorrências socialmente relevantes da forma mais clara, ligando-as às personalidades que lhes dão corpo ou as embandeiram, sem tentar esconder o sol com peneiras através das indiretas tão típicas entre nós para dizer direta e rudemente fingindo não dizer: “um certo partido sem princípios”, “um certo gestor duma empresa de ...”, etc.

A referência pessoal justifica-se especialmente quando se trata de pessoas que, individualmente ou em grupos, organizados ou não, exercem forte e reconhecida influência social e política no país. Haverá nos “Leaks” um julgamento implícito ou indireto desses comportamentos públicos individuais, mas nunca mais do que julgamento político, quando acontecer.

No Leak X digo ao leitor:

“Compreenda bem: houve uma ocorrência objetivamente monstruosa de uma Câmara Municipal ter urbanizado todo um bairro após a Independência do país e um cidadão estrangeiro aparecer depois em conluio com um grupo nacional de elite a “dar o fora” à Câmara e submeter os cidadãos ao seu capricho, perante o silêncio cúmplice do poder público. E isso não é passado! Até hoje tem consequências terríveis na vida das pessoas, como hei-de mostrar. Portanto, tem de ser bem explicado para a pacificação das consciências, mormente porque se sabe que para conseguir a submissão o cidadão em causa – e seu grupo nacional de apoio – teve de se socorrer à violação de livro público de matrizes”.

Perante um evento como esse, fica quase caricato que as autoridades se remetam a um secretismo e silêncio absoluto, só de quando em vez deixando escapar algo muito vago (como quando em 2015, trabalhava eu para o Património do Estado, uma autoridade me disse que estava de posse de documento que o convencia da propriedade do Cliente de Arnaldo Silva sobre Palmarejo Pequeno, mas não era conveniente exibi-lo).

Todos os que leram a acusação do Ministério Público que circulou por aí sabem que documentos existem e foram apreendidos pela Polícia Judiciária, mas no sentido de uma autêntica organização para o assalto às matrizes, restando só perguntar: porquê tal assalto, se estava tudo legal e em ordem?

Mas o plano dos sujeitos concretos (pessoas influentes) não é irrelevante!

Quando se vê um advogado, bastonário da Ordem dos Advogados, como Arnaldo Silva, ou um deputado da (e, no caso, advogado contra a) Nação, como é um caso de Hélio Sanches, respetivamente a escrever ao edil em 2012 e 2019, acerca da propriedade do seu Cliente sobre o “Curral do Concelho” (dito assim mesmo, imagine-se!), ou dos negócios de Achada S. Filipe (Grepne), referindo ambos Vieira Lopes e Rui Araújo (e outro cidadão) nos termos desprimorosos expostos e a expor em outro texto, compreende-se que para eles não está em causa a questão da verdade sobre os direitos fundiários, isto é, o puro e ético exercício de suas competências técnicas e jurídicas, mas apenas um poder de influênciação esperado do edil, se necessário para ilegalidades, retirando proveito de afinidades partidárias ou outras.

No tocante a Arnaldo Silva essa conclusão revela-se evidente, quando no Memorandum de Entendimento assinado com Ulisses Correia e Silva em 2014 já se encontra um arranjo conveniente que permite partir do princípio de que afinal o Curral do Concelho pertencia realmente à Câmara Municipal, mas passaria a pertencer ao dito Cliente (escandaloso arranjo!).

Quanto a Hélio Sanches, Advogado e Deputado da Nação, que alertou por escrito o Edil Óscar Santos em 2019 de que era melhor negociar com o Cliente dele (Grepne) porque Vieira Lopes e Rui Araújo tinham documentos a provar que Achada de S. Filipe pertencia ao Estado (portanto, não à Câmara Municipal nem a Grepne), e isso depois de duas sentenças retirando razão a Grepne (dando razão quer à posição do Estado, quer à Câmara da Praia), nem vale a pena comentar muito, pois que se está perante um respeitável deputado da Nação.

Isto vem acontecendo com a advocacia desde longa data, de tal modo que há advogados negociantes que são autênticas autoridades junto de edis, junto de serviços públicos e quiçá, junto de um ou outro magistrado.

A análise a ser feita de sentenças em processos arbitrais proferidas por tais advogados, como árbitros “isentos”, em que as vítimas são essencialmente as Câmaras Municipais e o Estado, virá mostrar a realidade do inimaginável.

O contrato de 2017 assinado entre os herdeiros de Fernando Sousa e a Câmara Municipal da Praia e analisado em alguns leaks é preocupante pelas suas consequências ainda não totalmente apresentadas nestes leaks, sendo evidente uma questão: se as pessoas que compraram na Câmara Municipal e foram depois obrigadas pelo silêncio desta e pela atitude dos conservadores a comprar de novo em FS/NANÁ (já sabe o leitor o significado desta sigla para referir Fernando Sousa no contexto do grupo nacional de apoio liderado por Arnaldo Silva), se essas pessoas resolverem accionar direitos por enriquecimento sem causa de FS/NANÁ, estará todo o ónus transferido para a Câmara Municipal?

Questões semelhantes se colocam em relação à Tecnicil que, como vimos, conseguiu comprar por escritura pública a quem só tinha uma matriz e viu o seu “direito de propriedade” registado por um conservador, em flagrante violação da lei.

Se nos próximos leaks haverá ainda muito a dizer, para além do expressamente prometido ou referido até agora, direi entretanto já que o tema central, em termos de pensar e sugerir soluções, será o poder judicial e em especial o Ministério Público, na sua relação com o Estado-Administração, bem como o próprio Estado, no sentido do seu fortalecimento (e não enfraquecimento!) pelo reforço da sua capacidade de impor a lei igualmente para todos - o que implica também o respeito pelas diferenças legais atendendo a circunstâncias diferentes.

A questão da terra é central em Cabo Verde na perspetiva de luta contra a corrupção, pois, por um lado, o negócio de terrenos nas Câmaras Municipais, assumindo um papel primordial no poder de cativação de simpatias eleitorais para os edis, especialmente em certos períodos, tem funcionado frequentemente em desfavor da boa urbanização e de políticas sociais urbanísticas para classes mais desfavorecidas.

Quer as Câmaras Municipais, quer o Estado, têm de saber que podem e devem negociar conveniências sociais no quadro da lei, mas não negociar a lei. A prática de um governo desistir de processos que o antecessor tenha introduzido em juízo para fazer vingar a lei ou negociar contra a lei, por exemplo, concedendo indemnizações descabidas pedidas em juízo contra o anterior governo, para pôr fim a tais processos, muitas vezes mediante promessa prévia em sede de campanhas eleitorais, deve ser bem escrutinada pelo Ministério Público.

É meu entendimento que – e para ser enfático – nessa relação Estado-Administração – Ministério Público reside a nossa salvação como Estado de Direito Democrático, de que estamos bem longe e talvez afastando-nos dia por dia, entendendo entretanto essa expressão duma forma não meramente dogmática e académica, despida de relação com a realidade.

Finalmente, penso discorrer (ainda que por generalidades centrais apenas) em diálogo de verdade social e histórica, despido de preocupações puramente académicas acerca do nosso percurso coletivo desde o tempo colonial até hoje, especialmente em matéria fundiária, mas não só, pois só nesse quadro dinâmico a situação atual pode ser entendida.

Até breve, pois, se Deus quiser.

Partilhe esta notícia

SOBRE O AUTOR

Redação