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Praia Leaks – XI. Por um Estado de Direito Democrático
Ponto de Vista

Praia Leaks – XI. Por um Estado de Direito Democrático

As denúncias apresentadas e por apresentar nestes “Leaks”, sendo embora restritas a questões fundiárias (especulação fundiária) e urbanísticas e com uma maior incidência documentada e comprovada no Município da Praia, reportam-se à relevância que a terra representa para um país como Cabo Verde, não apenas como elemento do território nacional que integra a soberania (o caso de Palmarejo Pequeno é aí paradigmático!), mas como factor de políticas públicas mais solidárias ou menos solidárias, no momento atual e também no quadro da solidariedade inter-geracional reservada à terra.

Nesse sentido, estão em causa, no meu ponto de vista, políticas públicas propiciadoras ou formatadas para a situação mais abaixo descrita, assentes em ludibriantes lições de democracia, de respeito pela propriedade privada e pelo investimento privado e de encolhimento do Estado (que a todos nos deve representar), até na aplicação das regras legais dele emandas.

Repito que as minhas preocupações são anteriores e ultrapassam as razões e circunstâncias do mega processo-crime, que só conheço pelo que veio a público. Humanamente desejo sempre a absolvição de todos os inocentes e a condenação dos culpados, mas o resultado do processo-crime, seja ele qual for, em nada abalará a pertinência das denúncias, que não são contra Sicrano ou Beltrano, mas contra a actuação do poder público que nos representa.

Entretanto, é impossível esquecer que Arnaldo Silva, enquanto réu, afirmou publicamente ser necessário “parar o Ministério Público” e uma afirmação tão grave como essa não mereceu reprovação de nenhuma instituição da República – talvez antes pelo contrário! -, o que diz muito acerca do nosso presumido Estado de Direito Democrático.

No Capítulo X fiz referência a um artigo publicado por Arnaldo Silva em 2010 em que ele, agredindo de forma desabrida ao Dr. Vieira Lopes e ao autor destes textos, tenta convencer-nos de alegadas propriedades do seu Cliente, apresentando-as. É relevante aqui recuperar a forma como o faz, que tem tudo a ver com o que estamos descrevendo:

Quanto a um dos terrenos na zona de Taiti e Várzea, ele diz: “terreno inscrito na matriz predial do Concelho sob o numero 1268 e descrito na Conservatória dos Registos sob o n.º 311, denominado Pacheco, confrontando a Norte com os terrenos dos proprietários, Sul com estrada que vai ao Guntária, Leste com o terreno da CMP-Curral do Concelho (este negrito é meu) e Oeste com os terrenos dos proprietários”.

Reconstituamos uma sequência já antes referida de “diz-nega-não diz que nega”, típica de quem está convicto de que basta dizer qualquer coisa para convencer a Câmara Municipal:

- Na descrição reproduzida é reconhecido que o tal terreno da CMP-Curral do Concelho era, passe o pleonasmo, da Câmara Municipal (até por confrontar com alegado terreno de Fernando Sousa);

- Mas em 10/10/2012 FS/NANÁ, já querendo abocanhar o Curral do Concelho denuncia por escrito à Câmara Municipal que Vieira Lopes, Rui Araújo e ... (ver cap. IV) eram as únicas pessoas que defendiam que o tal Curral não pertencia a ele FS/NANÁ;

- No Memorandum de Entendimento assinado em 2014 com Ulisses Correia e Silva já se subentende que – olha, prontos!” – o tal Curral de Burro será da Câmara, mas - prontos! –, a Câmara Municipal, num gesto, oferecerá um lote ali a pessoa indicada por FS/NANÁ e esquece-se o assunto;

- No contrato de 2017 o lote é oferecido – e a construção do edifício já começou e vai avançada, ali ao lado da estátua de Amilcar Cabral!

Menos interessante já será notar que esse prédio, descrito na Conservatória dos Registos da Praia sob o n.º 311 (descrição que deverá datar-se de 1868 a 1870), tem o número matricial 1.268, que é de prédios do ano 2000, isto é, posteriores ao assalto de julho de 1999 que fez “parir” a matriz 1.105 para a retificação registal de 1954.

Pergunto-me se não seria mais honesto tentar descobrir a matriz verdadeira desse prédio 311 entre as 4 folhas originais arrancadas.

Mas avancemos, pois em outro capítulo, quando chegarmos a Achada Grande, falaremos dum outro prédio referido nesse esclarecedor artigo, uma “terrinha” de 15 hectares (mais de meio “Plateau”) que FS/NANÁ vendeu à Tecnicil em 2001 nessa localidade, depois de a retificar para 94,5 hectares (quase cinco “Plateaus”), por sinal na altura há muito inscrita na Conservatória em nome da Câmara Municipal.

Por estas histórias, infelizmente reais, que revelam uma convicção de impunidade necessariamente baseada em cumplicidades, pode-se imaginar a situação hoje, decorridos 20 ou mais anos: Atuações da municipalidade – algumas mesmo rudes contra os munícipes - praticamente em representação de FS/NANÁ e de Tecnicil. Resumindo alguns casos típicos que analisaremos em outros capítulos:

1. Em setembro de 2008 a Assembleia Municipal da Praia, substituindo-se ao poder judicial, deu sentença, publicada no BO, a declarar a nulidade de vendas de lotes efetuadas pela edilidade anterior a particulares – sendo claro o benefício à Tecnicil nisso é legítimo suspeitar se não terá sido esta a redigir a deliberação;

2. Por nota Ref 04/DU/09, de 14 de Janeiro de 2009, o Vereador do Urbanismo, gerindo zelosamente interesses da Tecnicil, comunica ao Dr. Arnaldo Silva a decisão de anular a venda de lotes feita a 35 pessoas que indica, por serem venda de bens alheios, logo nula, já que a Tecnicil tinha comprado a Fernando Sousa em junho de 2004 um terreno de 9.450 m2, em que se enquadraram aqueles lotes.

3. Mesmo depois de Grepne ter perdido duas vezes em tribunal (da primeira em 2010, representado por Arnaldo Silva e da segunda em 2016, representado por Hélio Sanches) Hélio Sanches - ou uma empresa do irmão deste - continua, com pleno conhecimento da edilidade, a vender terrenos da Câmara Municipal em Achada de S. Filipe, por presumidamente serem de Grepne.

4. Uma plêiade de árbitros constituída por Arnaldo Silva, Maísa Salazar e Raquel Spencer, todos avisados do registo prévio em nome da Câmara Municipal desde 1983, deram sentença em 2013, numa arbitragem preparada pela Tecnicil sob o comando de Simão Monteiro junto do Presidente da Câmara, Ulisses Correia e Silva, a condenar a Câmara Municipal numa elevada indemnização a favor de Tecnicil por ocupação indevida de terrenos desta (na verdade pertencentes à própria CMP, embora indevidamente registados por Tecnicil em 2000 e logo retificados para 10 “Plateaus”).

Vale mostar, após estes resumos tristes, que o Estado de direito – ou de direito democrático - não é aquele contra o qual se pode ir a tribunal por atuações ilegais das entidades dotadas de poder público. Se assim fosse praticamente todos os Estados mereceriam hoje tal qualificação. É, sim, o Estado perpassado, na própria Administração Pública, central e local, por uma cultura pública de exigência de responsabilidade e de respeito às leis e à cidadania inerente à própria. Com efeito, veja-se:

Nos casos 1 e 2 os particulares prejudicados sabiam que de nada valia irem a tribunal, pois mais adiante iriam encontrar a mesma Câmara Municipal com a faca e o queijo nas mãos em variadíssimos sentidos da palavra. Mais valeria confessarem discreta simpatia para o novo poder e irem negociando.

Já nos casos 3 e 4 só poderia ser o Ministério Público a agir. Eventualmente num plano criminal, mas não só nem fundamentalmente: também para recuperar o que é de todos nós, pois constitucionalmente cabe ao MP defender “os direitos dos cidadãos, a lega­lidade democrática, o interesse público e...”.

Mas provavelmente o Ministério Público ouvirá falar destas situações através destes textos e em princípio não fará nada, ou chegará tarde para apagar o fogo, por várias razões:

O Ministério Público, virado essencialmente e por tradição mais para o crime – e mesmo quanto a este mais o crime comum que não envolva grandes apreciações de legalidade administrativa -, tem prazos curtos para reagir, uma estrutura, em termos humanos e materiais, minguadíssima para a sua importante, variada e complexa missão e uma forma processual de intervenção perfeitamente desajustada para o controlo da legalidade das atuações da Administração Pública.

Se a tudo isso se ajuntar eventuais penetrações partidárias na esfera do MP e mesmo do judicial (expressão que aplicada aos anos noventa e primeiros de 2000 seria um autêntico eufemismo, de tão branda para refletir a situação, mas hoje em dia será excessiva), compreender-se-á a ineficiência do Ministério Público.

Mas, ao que se saiba, o Ministério Público não discute internamente nada e parece aceitar tudo. Será pelo assoberbar de tarefas, que realmente são muitas? Será por algum pudor de parecer envolvimento político, num país em que a política é só partidária? Ou será pelo contrário de tudo isso?

De todo o modo, devo aqui declarar – e sei que neste ponto irei contra uma opinião oposta muito generalizada – que a minha esperança, que nunca morrerá, no recuperar duma Administração Cidadã e cumpridora da Legalidade Democrática, passa pelo repensar e pela dignificação do Ministério Público (para que apresentarei as minhas modestas sugestões no penúltimo capítulo) e do poder judicial em geral pois, apesar de todos os pesares, as instituições da Justiça – Tribunais e Ministério Público – são para mim, mesmo no momento atual, a tábua de salvação.

Neste momento difícil, de alta exposição pública, por que passam a Justiça (sempre complexa) e os magistrados (em “missão impossível”), se eu fosse um Ser invisível, aproximar-me-ia por trás duma minoria destes e soprar-lhes-ia levemente na nuca para lhes dizer sem palavras que deveriam procurar outra profissão; e aos muitos e muitos que labutam com seriedade, empenho e zelo, dir-lhes-ia, de alma para alma, que há sempre uma brisa fresca no dobrar da esquina, quando se percorreu pacientemente a longa avenida, avançando pouco a pouco.

Mas penso que é tempo de dedicar mais atenção à lei de responsabilidade penal dos titulares de cargos políticos existente e de legislar sobre crimes de natureza urbanística.

Mesmo sem desenvolver, não termino este texto sem uma referência a um instrumento de controlo do poder previsto na Constituição e no Estatuto dos Municípios, a que estranhamente (ou nem por isso) não se ouve qualquer referência: a ação popular.

Diz a Constituição (art. 59.º) que “É garantido, nos termos da lei, o direito de acção popular, de­signadamente para defesa do cumprimento do estatuto dos titulares de cargos públicos e para defesa do património do Estado e de demais entidades públicas”.

Também o estatuto dos municípios prevê, como direito de qualquer cidadão recenseado e residente no Município, o de “intentar acção judicial no interesse do Município para manter, reivindicar e reaver bens ou direitos municipais deste que hajam sido usurpados ou de qualquer modo lesados”.

Essa ação era para ser regulamentada, o que até hoje não aconteceu.

É um assunto a que vale a pena regressar, em nome da cidadania, pois, como se verá após publicação de todos os textos, há matéria mais que abundante para nós, os munícipes da Praia, nos unirmos para várias ações destinadas a recuperar o património municipal desbaratado, nem que seja em nome dos bairros degradados e de gente sem tecto à espera dum chão.

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Redação