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Por uma política externa estribada em valores
Ponto de Vista

Por uma política externa estribada em valores

As declarações de Jorge Santos, Presidente da Assembleia Nacional e segunda figura na hierarquia do Estado, após uma audiência com o Senhor Presidente da República - não se sabe se o assunto foi ou não discutido com Jorge Carlos Fonseca, Presidente em exercício da CPLP -, a propósito da mais recente crise na Guiné Bissau, deixaram o país estupefacto, porque vieram lançar confusão, para dizer o mínimo, sobre o posicionamento de Cabo Verde.

Desde a independência, o nosso país tem tido uma política externa arguta e pragmática, em defesa da liberdade, da paz e do desenvolvimento sustentável. Apesar da escassez de recursos humanos, institucionais e financeiros, uma plêiade de jovens quadros, destemidos e ousados, lançou os alicerces de uma política externa inteligente, visionária e neutra e estribada no direito internacional, na igualdade entre os estados, na não ingerência nos assuntos internos dos outros estados, na reciprocidade de vantagens, no multilateralismo e na boa gestão da coisa pública e orientada para a criação da utilidade do país na arena internacional. Transformaram-se as relações externas em recurso estratégico para o desenvolvimento. Nestes anos, Cabo Verde ganhou a batalha da independência e da construção do Estado de Direito Democrático e está a caminhar, a passos largos, para a modernização, a sofisticação e a prosperidade. Temos de continuar a fazer esforços redobrados para não borrar a pintura e assim desperdiçar o quadro de prestígio e de credibilidade do país no mundo.

A Guiné Bissau vive mais uma crise, por razões que se prendem com a fraqueza das instituições, a ausência de uma cultura da Constituição e ganância de poder. O povo da Guiné Bissau tem-se destacado, nos momentos eleitorais, por um elevado civismo, espírito patriótico e sentido de responsabilidade. Infelizmente, as elites políticas não têm podido ou sabido corresponder aos anseios e às aspirações dos seus concidadãos e estar à altura das suas responsabilidades. Não há respeito pelas regras do jogo democrático, não há uma vontade para a construção de pontes, compromissos e consensos e quem perde não tem tido paciência política e responsabilidade ética para aceitar os resultados e trabalhar para a consecução do bem comum, a partir do exercício do poder da oposição democrática.

O sistema de governo na Guiné Bissau é semipresidencialista, podendo o Presidente demitir livremente o Governo. Mas espera-se de um Presidente bom senso, sentido ético, nobreza de espírito, respeito pelos resultados eleitorais e, sobretudo, defesa intransigente dos interesses nacionais.

Em Agosto de 2015, o Presidente José Mario Vaz demitiu o Governo de Domingos Simões Pereira, depois de ter ganho as eleições legislativas de 2014, com maioria absoluta. O Governo, de unidade nacional, integrava todos os partidos políticos, e tinha, dias antes, visto um Orçamento do Estado e uma Moção de Confiança aprovados por unanimidade pelo Parlamento.

Em Março de 2019, foram realizadas novas eleições legislativas, que foram de novo ganhas pelo PAIGC, embora desta vez sem maioria absoluta.

O Presidente recusa-se a nomear Domingos Simões Pereira, líder do partido vencedor, para a Chefia do Governo, e apesar de ter aceite a indicação de Aristides Gomes, até ao término do seu mandato, 23 de Junho, não nomeou o novo Governo, criando um vazio do poder e uma grave crise institucional.

O país estava sem Governo e sem Presidente da República. Não convocara a tempo eleições presidenciais para que o Presidente eleito tomasse posse a 23 de Junho, nem nomeara o Governo, conforme os resultados eleitorais e nos termos da Constituição da República. A intenção, já se vê, era criar o caos, num claro desrespeito à livre escolha dos cidadãos.

A CEDEAO, para sanear a crise, mediou o conflito, tendo levado todas as partes - Presidente cessante, Parlamento, partidos políticos - a um entendimento político-institucional: O Presidente da República manter-se-ia no cargo com funções meramente protocolares e sem interferências na ação governamental e nomearia o Governo de Aristides Gomes, proposto pela maioria parlamentar, que exerceria funções até as eleições presidenciais marcadas para 24 de Novembro, e um novo Procurador Geral da República, após consenso com o novo Governo. O acordo foi saudado e apoiado pela CPLP, pela União Africana, pelas Nações Unidas, pela União Europeia e pelos Estados Unidos da América, e assim se procedeu.

Só que no fim da semana passada, o Presidente José Mário Vaz decide, na véspera do início da campanha eleitoral para as presidenciais de 24 de Novembro, demitir o Governo de Aristides Gomes e nomear um novo Governo de iniciativa presidencial, rasgando assim o acordo conseguido sob os auspícios da CEDEAO. Trata-se de uma tentativa de golpe de estado palaciano, para inviabilizar as eleições presidenciais e criar o caos no país.

A CEDEAO e toda a comunidade internacional reagiram imediatamente, condenando a tentativa de desestabilização do país e apoiando o Governo de Aristides Gomes.

É neste contexto que surgem as declarações de Jorge Santos, em como a Guiné Bissau tem um Presidente, que tem poderes constitucionais para demitir livremente o Governo e que, por isso, a atual crise deve ser resolvida pelo país, sem interferências indevidas da CEDEAO, da CPLP ou de outra instância internacional.

Ainda bem que, hoje, o Ministro dos Negócios Estrangeiros e Comunidades veio dizer que Cabo Verde está alinhado com a CEDEAO e a comunidade internacional e que reconhece o Governo de Aristides Gomes.

As declarações de Jorge Santos são de todo o modo graves, já porque é a segunda figura na hierarquia do Estado, já porque as proferiu na sequência de uma audiência com o Chefe de Estado. Das duas uma, ou o Presidente do Parlamento desconhece as decisões e os meandros da política externa do país conduzida pelo Governo, o que é muito grave, ou conhece-os muito bem e deles dissente aberta e publicamente, o que é mais grave ainda.

O que se pede a todos é serenidade, argúcia e sentido de estado nos pronunciamentos sobre assuntos de tão relevante interesse nacional e internacional.

Artigo publicado pelo autor no facebook, ontem 6 de novembro.

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Redação