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Maresias regionais em tempos de pensamento ilhado: ditos e não ditos
Ponto de Vista

Maresias regionais em tempos de pensamento ilhado: ditos e não ditos

"Premissas no indicativo não permitem conclusões no imperativo" (Henri Poincaré)

Cabo Verde é um Estado unitário e de direito democrático eivado de temperos de centralização – sob a batuta do governo nacional – e de descentralização – sob a alçada do poder local (autarquia). Esta reflexão admite a premissa de que existe um “consenso alargado” a respeito da preservação do Estado-nação unitário que se configurou no arquipélago por razões políticas, históricas, socioeconómicas e culturais de natureza vária.

Afigura-se-nos que qualquer reflexão sobre a reforma do Estado deve ser feita, por um lado, à luz das nossas condicionantes estruturais internas, a saber, a pequena dimensão, a dispersão demográfica, a escassez de recursos naturais e a diasporização e, por outro, externas que têm que ver com as fragilidades dos estados nacionais, mormente os micro-estados insulares, ante a consolidação do capitalismo global caraterizado pela incerteza e volatilidade dos mercados.  

Custos de insularidade

A descontinuidade do território e a dispersão da população obrigam a que Estado tenha de despender montantes exorbitantes para financiar infra-estruturas de base (portos, aeroportos, estradas) e serviços sociais (educação, saúde, água, saneamento, eletricidade). Por imperativos de soberania e de algum populismo à mistura em tempos de eleições, o Estado – central e autárquico – é composto por uma gigantesca máquina política e burocrática (Presidente da República e vasta equipa, Primeiro-ministro e duas dezenas de ministros/secretários de Estado, 72 deputados nacionais, 342 deputados municipais, 22 presidentes de câmaras, 116 vereadores, mais de uma centena de direções de serviços centrais e desconcentrados, um número significativo de institutos e empresas públicas, estas últimas quase todas insolventes. Além disso, se se tomar em conta alguns indicadores de representação política, constata-se, por exemplo, que o país dispõe de um deputado nacional para cada 8049 habitantes, um deputado municipal para cada 1553 pessoas e uma autarquia local (Município) para cada 24147 almas.

Ora, é nesse contexto de um Estado paquidérmico, com défice de eficiência e eficácia, pouco transparente, com graves problemas de sustentabilidade financeira (dívida pública a 130% do PIB) e mal-estar social crescente (elevada taxa de desemprego juvenil, criminalidade urbana preocupante, pobreza absoluta severa) que somos bafejados com essa intensa maresia a que eufemisticamente – diria – se apelida de regionalização.  

Regionalização

Nos últimos anos e, recentemente, com maior intensidade, segmentos das elites políticas no arquipélago e na diáspora, particularmente, em Portugal pretendem transformar o debate sobre a reforma do Estado em um imperativo de regionalização. Ou seja, se a regionalização é reforma de Estado, então a reforma do Estado é regionalização. A menos que se confunda a substância com a forma, não me parece que seja bem assim. Do ponto de vista normativo, a regionalização decorre da interpretação do disposto do artigo 231º da Constituição que prevê a possibilidade de existência de autarquias de grau superior. A lei sobre descentralização de 2010 define regiões administrativas como sendo autarquias supramunicipais.

Os defensores da regionalização expendem um conjunto de argumentos que de forma sumária se vertem no seguinte: 

Em primeiro lugar, percecionam na centralização uma maldição das origens, uma vez que – advogam – se deu ao poder central na capital prerrogativas que enfraquecem o desempenho do poder local, supostamente inibindo o seu potencial de desenvolvimento. Nesta ordem de ideias, a regionalização é apresentada como uma panaceia que possibilitará a redenção dos nossos crónicos problemas políticos, socioeconómicos e identitários, constituindo-se, deste modo, numa opção natural em razão da nossa condição ilhoa. Ora, a opção por uma organização político-administrativa centralizada ou descentralizada ou das duas simultaneamente numa perspetiva híbrida, aliás, como tem sido prática histórica em Cabo Verde, não é uma questão que pode ser equacionada logicamente pela astúcia da razão. Ou seja, nenhuma opção pode ser considerada em si mesma melhor do que a outra, a não ser por dogmatismo ideológico e/ou imitação de experiências alheias. As duas modalidades comportam vantagens e desvantagens. Daí que seja necessário alguma virtude política para, a partir de uma análise aprofundada da nossa experiência histórica, delinear prospectivamente novos equilíbrios entre os poderes central e local capaz catapultar o país para novos patamares de desenvolvimento, todavia, cada vez mais instáveis. Há, certamente, um conjunto de funções que, dadas as nossas condicionantes estruturais internas e externas, o Estado central executa com mais qualidade, eficiência e eficácia que as autarquias e muitas outras que estas podem fazer melhor que aquele. 

Estamos em crer que a excessiva centralização prevalecente a nível do Estado central e autárquico resulta do efeito combinado de pelo menos três tendências: (i) a persistência ainda da lógica Partido/Estado que possibilita aos partidos do arco do poder o aparelhamento e o controlo dos cargos do Estado, com vista à sua distribuição como recompensa aos militantes e, deste modo, reduzir os custos de sua legitimação política; (ii) a existência de uma cultura de dependência de reciclagem da “ajuda pública” (externa/interna) e (iii) o cálculo político do então partido no poder que, tendo menor densidade autárquica, centralizou os recursos com o propósito de limitar a capacidade das autarquias locais corroerem as suas bases nacionais de legitimação política. 

Ora, se é crível que a centralização excessiva tem sido prejudicial aos cidadãos intra e inter ilhas, devido à falta de alocação de recursos financeiros e materiais aos municípios e à ineficácia dos serviços desconcentrados do Estado (infelizmente, um mero prolongamento do centro), não é menos verdade que o desempenho da administração local padece de fragilidades políticas e gerenciais de monta, similares ou piores que aquelas prevalecentes no governo central – exagerada centralização, excessiva politização da administração, deficiente qualificação dos recursos humanos, fraca produtividade, défice de transparência e responsabilização, clientelismo e sinais evidentes de malversação do erário público. Aliás, já no decurso do seculo XIX, após um longo processo de centralização com a institucionalização do Código Administrativo de 1836, havia-se procedido a uma vaga de descentralização. Entretanto, sob o comando das oligarquias locais, a patronagem e o clientelismo tornaram práticas correntes, provocando uma enorme degeneração dos corpos políticos e administrativos. A degradação foi de tal monta que o Governador Caetano Alexandre de Almeida e Albuquerqueno relatório de 1872, enviado ao ministro da Marinha e Ultramar, confidenciara-lhe, desabridamente, o seguinte:“(…) Para a administração municipal também tenho a honra de chamar a atenção de V. Exa que ela está em notável estado de atraso, e conquanto seja uma proposta que se afasta completamente de todos os princípios liberais, eu não hesito em fazê-lo. Nas circunstâncias actuais d’esta província, o que mais conviria para o andamento regular dos negócios municipais seria substituir as câmaras eleitas por comissões municipais, conservando-se unicamente a câmara na capital da província, aonde o maior grau de ilustração permite essa garantia. (…) Com esta organização teríamos uma administração municipal dirigida por homens escrupulosos e escolhidos, em lugar dos que actualmente compõe quase todas as vereações saídas do sufrágio de um povo inconsciente dos seus direitos. A aberração dos princípios constitucionais que parece envolver esta proposta, perde toda a sua importância em Vexa tendo a bondade de notar que a maioria dos concelhos desta província não constituiria mais do que uma insignificante freguesia, se entre elas houvesse continuidade do território.” (…). Depois que tive a honra de enviar a Vexa o meu último relatório, foi dissolvida a câmara da Boa Vista porque os seus vereadores não só descuravam os seus deveres, como impediam toda marcha regular da administração (…). Do concelho de Santa Catarina chegou também ao meu conhecimento que malbaratados andavam os fundos do concelho, que os rendimentos da câmara se arrecadavam em cofres particulares, e que com eles negociavam os vereadores e o tesoureiro, em lugar de os aplicarem, como deviam, em vantagem do próprio município. (…) A câmara foi dissolvida e autuada, podendo assegurar a Vexa que no resto dos concelhos, se não cometem faltas e crimes desta ordem, o desleixo e a incúria e incompetência dos vereadores é geral por toda parte”.

Descontando os exageros desta narrativa liberal à portuguesa, situada e sitiada pelos interesses de quem pretende defender as rédeas do poder central, o então governador enfatiza algumas inquietações que muitos hoje pretendem escamotear: qual deverá ser a natureza do Estado num micro-território com reduzida demografia (pouco mais de quinhentos mil habitantes)? Quais são as práticas prevalecentes nas câmaras num contexto de inadequação entre fins e recursos, bem como o entrelaçamento entre interesses privado e público?

Em segundo lugar, argumentam que persiste uma enorme assimetria socioeconómica entre as ilhas, fruto alegadamente da centralização. Ora, os dados tornados públicos pelo INE entre 2016 a 2017 apresentam a seguinte radiografia do país: 

O PIB por habitante em dólares é superior à média nacional (3042) nos municípios do Sal (7068), Boa Vista (5536), Praia (4545) e São Vicente (3760) e muito abaixo nos demais concelhos de Santiago (1320), Santo Antão (2224), Maio (2440), Fogo (2640), Brava (2752). A pobreza atinge de forma mais cruel as populações do interior de Santiago (48,9%), Santo Antão (47,1%), São Nicolau (46,3%) e Fogo (44,5%) de onde provem a grande maioria das populações pobres que habitam as periferias dos centros urbanos mais dinâmicos do país. Em termos de acesso a serviços básicos (água, saneamento e eletricidade), nota-se que os demais concelhos de Santiago patenteiam, de uma forma geral, os piores indicadores de acesso a serviços básicos e rendimentos.

Algumas inquietações. Quando nos referimos à assimetria económica, de que indicadores estamos a falar? De pólos económicos? Da disparidade de rendimentos? Se for do primeiro, Cabo Verde comporta hoje mais espaços económicos dinâmicos em simultâneo (Sal, Boa Vista, Praia e Mindelo) que em toda a sua história e possui, hoje, melhores condições para fazer face às adversidades ambientais (secas, irrupções vulcânicas) e às crises cíclicas do capitalismo global. 

Na verdade, o que persiste ainda é a assimetria de rendimentos? Mas como a resolver? É preciso considerar que é impossível impor uma simetria de rendimentos numa economia capitalista de mercado. O capital concentra-se e essa centralização não decorre da nossa condição arquipelágica. Caso contrário, como explicar que ela existe e persiste mesmo em realidades continentais. A redução das disparidades inter e intra ilhas se obtém, por um lado, pela unificação do mercado através do investimento nas acessibilidades terrestres, marítimas, aéreas e tecnologias de informação e comunicação e, por outro, pela qualidade das políticas públicas, alocação de investimentos públicos, incentivos ao sector produtivo e redistribuição de rendimentos às famílias mais vulneráveis, contribuindo para que as oportunidades económicas possam beneficiar a todos, independentemente da localização espacial. No que concerne ao acesso a serviços básicos, as disparidades entre as diferentes ilhas foram reduzidas substancialmente, incidindo, hoje, sobretudo no interior de Santiago.

Ter, pois, a pretensão de corrigir as assimetrias socioeconómicas, quer mediante a criação de regiões supostamente administrativas quer através da profusão de ministérios por diversas ilhas, com poderes político-administrativos para alegadamente criar riqueza mais próxima das pessoas, é das últimas invenções de segmentos da nossa classe política historicamente “dependente do Estado”. Aliás, os dados existentes contrariam essa premissa. Senão vejamos: os espaços geográficos/ilhas mais pobres de Cabo Verde são aqueles onde existe maior número de autarquias, maior número de deputados municipal e nacional por habitante. A título ilustrativo, a ilha de São Nicolau dispõe de um deputado nacional por cada 6171 habitantes, uma autarquia para cada 6071 residentes, um deputado municipal para cada 475 pessoas. A ilha de Santo Antão possui um deputado nacional para cada 5703 residentes, um município para cada 13307 almas e um deputado municipal para cada 849 pessoas. A mesma tendência prevalece nas ilhas do Fogo e nos demais concelhos de Santiago, conforme o Quadro 2. Por isso, não é pela criação de mais autarquias supramunicipais, uma espécie de “câmara municipal” acima das atuais, que se combate os crónicos problemas de criação e distribuição da riqueza e muito menos a redução da demografia de algumas ilhas. Tanto é assim que as ilhas do Sal e da Boa Vista ostentam grande vitalidade económica sem que se tenha expandido o Estado e, com efeito, o mercado político.

A nosso ver, além das razões paroquiais e promessas de uma democracia local ilimitada, alegadamente em prol do desenvolvimento, o que está em jogo com a criação de regiões é, por um lado, a institucionalização de um novo mercado político para atender a demanda de segmentos da classe política que apresentam dificuldades sazonais de sobrevivência no mercado político nacional e local, colocando-os mais perto do poder central. Por outro, responder de forma imediatista à promessa/compromisso eleitoral sobre a regionalização firmado pelo partido no poder. 

Em terceiro lugar, conjetura-se de forma explicita e/ou implícita que estando a maioria da população residente em Santiago, uma organização política estribada apenas na representação proporcional propenderia supostamente a favorecer esta ilha em detrimento das outras. Nesse caso, uma das alternativas seria a de adicionar à representação dos indivíduos, uma representação igualitária à entidade ilha e, deste modo, inibir um suposto superpoder concentrado em Santiago. Com efeito, a criação de um parlamento bicameral (com uma câmara baixa e alta/senado) seria um remédio para garantir maior equilíbrio entre a presumida “maioria sociológica” e a(s) suposta(s) “minoria(s) filosófica(s)”. Estamos em crer que essa premissa não encontra suporte empírico nem do ponto de vista da representação político-administrativa, nem na distribuição da riqueza nacional, nem em termos de acesso aos serviços prestados pelos poderes públicos. 

Em quarto lugar, alega-se que, por sermos ilhas, nascemos geneticamente regionalizados. Esse tipo de raciocínio pode induzir ao absurdo de se considerar Santa Luzia uma região em potencial, sendo por enquanto, sabe-se lá, uma espécie de região dos pássaros. E os ilhéus, o que são? Sub-regiões naturais? Outrossim, a divisão de Santiago em duas regiões, contraria claramente essa lógica, pelo que é preciso esclarecer o não-dito. A transposição da lógica da geografia física para a geografia política precisa de ser melhor explicada.

A proposta sobre a regionalização apresentada pela atual maioria, um remédio para curar as enfermidades do centralismo, pode ser, salvo devido respeito, pior do que a doença.

De que forma? Em primeiro lugar, essa proposta pode levar à refundação do Estado unitário vigente, criando uma espécie de “Estado federado encapotado”, onde as regiões ditas administrativas (que na prática são vontades políticas) funcionariam nas fronteiras daquele. Nesse projeto, teríamos um Estado central minimalista (funções de soberania e orientações gerais) e um conjunto de “estadinhos” (regiões/ilhas) com poderes maximalistas. Ou seja, um Estado que a varejo seria subjetivamente anárquico – expressão plena da liberdade de todos - através da livre competição das forças sociais e políticas nas autarquias locais (municípios e regiões), e a grosso objetivamente harmónico no cômputo geral. Como certa vez advertira Bobbio, referindo-se à experiência italiana, é preciso ter presente que não existe nenhuma mão invisível para equilibrar a luta política.

Em segundo, faz depender a estabilidade governativa da acomodação de três níveis de conformação da vontade política (nacional, regional e local). Pode até ser que o sistema se torne mais pluralista, mas comporta riscos de estabilidade. Imagine um cenário em que teríamos o “Partido A” maioritário a nível nacional, o “Partido/Grupo Independente B” dominante a nível regional e o “Partido/Grupos independente C” a nível local. Quem ganhar teria certamente, inúmeras dificuldades em governar, sendo por isso seduzido a urdir estratégias múltiplas para abocanhar os três níveis de governação. O problema é que o alinhamento de todos os níveis de poder a favor de uma única formação política geraria uma enorme concentração do poder, fazendo emergir um único partido dotado de um mega-poder sobre sistema político, em geral, e sobre os cidadãos, em particular, com efeitos perversos sobre o funcionamento da democracia. Por isso, é preciso uma avaliação aprofundada dos efeitos da intensidade da luta política quer sobre a eficiência, eficácia e estabilidade da governação e do sistema político na sua globalidade quer sobre a proteção da liberdade individual. 

Em terceiro, tornaria o Estado excessivamente focado nos assuntos, amiúde, paroquiais internos, induzindo um conflito distributivo infindável sobre quase nada que se produz em Cabo Verde. Em consequência, este ficaria com uma espécie de “chumbo no pé” para cooperar e competir num mundo dominado por blocos políticos e económicos onde é imperativo agir de forma célere e eficaz. 

Em quarto, aumentaria a despesa pública para níveis incomportáveis para as finanças do Estado, com implicações para os cidadãos e para as empresas, sendo que o custo estimado inicial de cerca de 400 mil contos (cuja fórmula de cálculo se desconhece) tenderia a aumentar ciclicamente, em resultado da pressão por mais despesas para a legitimação política, especialmente nos períodos eleitorais. Resta saber como esta máquina se financia num contexto de retração da “ajuda pública” e num quadro macroeconómico de grande instabilidade e incerteza, com o deslocamento do epicentro do capitalismo do Atlântico para o Pacífico. 

Em quinto, é provável que a luta política por recursos despoletada pela regionalização favoreça os centros económicos e políticos mais pujantes (Praia, Mindelo, Sal e Boa Vista), contribuindo provavelmente para aumentar as disparidades inter e intra-ilhas, tendo, deste modo, efeitos contrários ao que se preconiza com a regionalização.

Em sexto, poderá, nesta fase de algum isolamento, atiçar o bairrismo e os preconceitos legados pela colonização ainda arraigados no imaginário de franjas das populações e suas elites, colocando as ilhas umas contra as outras, enfraquecendo a coesão nacional necessária para enfrentar complexos embates de desenvolvimento que o país tem pela frente. 

Em sétimo, a regionalização não figura nem de perto nem de longe entre as principais prioridades dos cidadãos cabo-verdianos a braços com graves problemas de emprego, acesso a rendimentos, segurança urbana, acesso a água, saneamento, habitação, serviços de saúde e educação de qualidade. 

Cabo Verde não tem povo que baste, nem economia que sustente, nem quadros altamente especializados, nem capacidade técnico-gerencial suficiente para enveredar para a pulverização da vontade política, potenciando uma multiplicidade de “micro-soberanias” e de burocracias, sob pena de dar um salto no escuro. É preciso não se olvidar que Canárias, Madeira, Açores não são regiões de si próprias, mas de Portugal e Espanha que, entretanto, são estados ancorados numa região maior – União Europeia – que os protege dos vendavais cíclicos do mercado mundial. 

Em suma, não se combate o centralismo parasitário prevalecente a nível central e autárquico com o descentralismo regionalista, transformando o Estado por si só gordo em Estado obeso, num contexto de muita pobreza. Este tenderá a acrescentar à insularidade geográfica e económica uma insularidade política cujas consequências são imprevisíveis. A nosso ver, a reforma do Estado deveria passar pelo aperfeiçoamento das modalidades de centralização e da descentralização existentes e, passo a passo, construir novas soluções em função de novos desafios políticos e socioeconómicos. Numa sociedade global de conhecimento, é necessário edificar um Estado inteligente, transparente, ágil e resiliente capaz de conciliar uma excelente centralização com uma ótima descentralização que potencie a participação dos cidadãos, que promova a criação de riqueza e o bem-estar social, através do robustecimento do empresariado nacional e qualificação dos recursos humanos, respondendo aos desafios da integração do nosso pequeno mercado na economia-mundo por onde circulam capital, bens e serviços. 

Sem pretender apresentar uma receita que melhor traduza esse ideário, estamos em crer que a implementação de muitas medidas, a saber, já preconizadas na legislação vigente e/ou em estudos realizados pode contribuir para uma melhoria substancial do funcionamento do modelo existente – Estado central e município: 

  • Racionalização do funcionamento do Parlamento (incluindo o seu redimensionamento), visando a melhoria da sua capacidade legislativa e fiscalizadora da ação governativa;

  • Racionalização da estrutura governativa, no sentido de a tornar mais enxuta e flexível;

  • Alargamento do regime de incompatibilidade no exercício dos cargos públicos e políticos;

  • Racionalização dos serviços centrais e desconcentrados do Estado;

  • Reconfiguração do desenho jurídico-institucional do poder local existente, tornando o poder executivo mais monocrático e conferindo maior autonomia e poderes de fiscalização à assembleia municipal;

  • Descentralização/desconcentração do poder local seja através de dispositivos inframunicipais e/ou delegações/juntas de freguesia;

  • Transferência de atribuições e recursos humanos, materiais e financeiros às autarquias;

  • Promoção de associação intermunicipais e inter-ilhas, visando a planificação integrada da ilha e/ou de grupos de ilhas;

  • Desmaterialização dos serviços do Estado central e autárquico com forte aposta na governação eletrónica, facilitando aos cabo-verdianos, no arquipélago e na diáspora, o acesso em tempo hábil a serviços e informações;

  • Modernização dos serviços das embaixadas/consulados, com vista a melhoria dos serviços prestados à ampla e heterogénea diáspora;

  • Operacionalização do Conselho Económico, Social e Ambiental, um importante fórum nacional para consensualizar e gizar políticas económicas, sociais e ambientais;

  • Qualificação das lideranças administrativas, tendo em vista a melhoria da capacidade de formulação e implementação de políticas públicas;

  • Reforço da formação de quadros altamente especializados para representar o Estado nas organizações regionais e internacionais;

  • Generalização do concurso público como via privilegiada de acesso aos cargos de direção (incluindo parte importante dos altos dirigentes da administração central e local);

  • Reforço dos recursos humanos, materiais e financeiros aos Serviços de Inspeção, Tribunal de Contas, Procuradoria-Geral da República e Polícia Judiciária, com o fito de evitar que o Estado fique indefeso face a investidas geradoras de corrupção;

  • Reforço em meios humanos e materiais à Provedoria da Justiça para acudir com eficiência e eficácia às reclamações e solicitações da sociedade civil.

Agora, querer impor aos cidadãos, goela a baixo, uma reforma de Estado através da transmutação da descentralização em regionalização num ritmo “foga djogu, faxi-faxi” sem fundamentar com argumentos consistentes, sem evidências de estudos especializados as premissas que estão na base dessa opção, sem consentimento popular via referendo é uma deriva sob vários aspetos pouco democrática. Aliás, o lado misterioso de tudo isso é que sendo a regionalização uma medida de política estruturante alegadamente tão benéfica para as populações não se compreende por que razão não a submeter ao veredicto popular. Qual é o receio? Pensa-se, por acaso, que a sociedade cabo-verdiana não estará em condições de discernir o que está jogo?

Ora, o Estado não é uma entidade política a moldar em função de conveniências ideológicas de ocasião deste ou daquele partido e muito menos a ser posto a saldo, ao sabor das necessidades de legitimação político-eleitoral e chantagem de grupos de pressão. Esperemos que o bom senso prevaleça e que as injunções ideológicas e os cálculos políticos dos partidos sejam devidamente calibrados. Que o nosso vetusto Estado moderno racional-legal erguido desde a segunda metade do século XIX e consolidado com o advento do Estado nacional com sagacidade e virtude públicas de muitas gerações seja devidamente protegido das derivas populistas nesses tempos de “democracia instantânea”. 

Nos moldes como vem sendo discutida, a regionalização pode ser vista como se fosse uma SARNA POLÍTICA, quanto mais se coça, mais gozo parece proporcionar ao enfermo. Todavia, no final, fica a ferida por curar, especialmente para as próximas gerações. Que o mar não seja transformado em fronteiras que nos separa e isola, mas em PONTE que nos UNE e nos conecta aos fluxos do mundo global de que fomos e somos historicamente dependentes.

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