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Carta de despedida a um amigo
Colunista

Carta de despedida a um amigo

Prezado e solidário compatrício, imagina que da última vez que nos vimos estava eu a viver os meus frenéticos instantes finais. Assim, numa extensa planície, e longe do centro da cidade, pusemo-nos a andar e a falar sobre a natureza de vária coisa. Um diálogo que foi franco e leal, frutífero, sem nenhuma astucia e sem reserva mental. Uma espécie de testamento visual para ti, de mim, como é evidente. Um momento memorável que irias recordar para o resto da tua vida. Então, fomos andando numa divertida cavaqueira, numa fraterna e amena cumplicidade. E lado a lado, privilégio que nunca tinha dado a mais ninguém, que nunca tinha recebido de alguém nenhum. Pois, havia de ser um deus, de entre os meus inúmeros favoritos, a eleger-te como derradeiro companheiro da minha jorna, para me escoltares até à fronteira de improvável retorno. Intuí, na altura, que estavas a ter a perfeita noção do encargo e que querias assumi-lo com espírito de missão, como quem carrega a cruz de motu próprio e cheio de manifesto regozijo.

Estávamos entretidos a caminhar, numa acesa troca de impressões. Falávamos sobretudo de um estado da arte de inegável interesse comum. De repente, o ritmo dos nossos passos decaiu e converteu-se numa cadência esmorecida, trôpega, muito por minha conta, que enxergava ver a linha que não podias pisar e desafiar, sob pena de o acompanhante ser também arrebanhado pela comitiva que me vinha buscar do infindo. O risco estava marcado a vermelho-rubro e cintilava de advertência, tal que numa passagem de nível. Nesse ponto, mandamos travar os pés, decidimos quietar a ânsia e sossegar a nossa azáfama. A conversa, esta, continuava a decorrer de forma cordial e sôfrega, como se estivéssemos a tragar a dose de uma ambrósia adocicada ou a engolir a tranche de uma peçonha irrepetível. Evitamos os gestos expansivos e denotadores de desagrado, para não detonar a cólera dos déspotas que vinham no meu encalço.

E tudo fizemos para os manter a uma certa distância, embora sob atento olhar de lince. Estávamos cientes de que o momento representaria o nosso último convívio, face a face, olhos nos olhos, de peito franquiado e limpo, sem zona-sombra, sem subterfúgio e calculismo. E cada um de nós a dizer aquilo que pensava, tudo o que pensava do nosso virente remanso térreo. Este que tem vindo a deixar para trás a enleva morabeza, a túnica de outrora, a impoluta toga autóctone, o manto de probidade e continência, o senso de recato e de resguardo, a santidade da palavra dada, para passar a uma casta de cardápio, onde tudo chafurda e cabe e tudo entra, sem peia e sem peleja. Só com valente paleio a ermo. É um «albergue espanhol» à moda de arcana arca de aliança. Gosto imensamente deste termo, não no sentido de perfídia ou de resgate, mas no daquele em que todos devemos caminhar juntos e irmanados, independentemente das ideias e posses de cada um, tal como o concebe o reverendo de humildade e consistente liderança. Quero atribuir-lhe um sentido útil e afetivo para o pátrio palmo de terra.

Porém, aqui, me permito desviar do seu alcance original para tomá-lo numa aceção de fatídica frugalidade que tem sido apanágio de alguns alienígenas, os impantes de balofa substância e de descarada intromissão na escalada de dissenso e que não aprenderam nada com a postura da Máxima Exponencia. Esta convive e corresponde com todo o poviléu do seu torrão e com toda a sua paciência. Amistosa e respeitosamente. Todos deviam beber o exemplo do nosso estroso Timoneiro. Enquanto isso, alguns cochichos de chocalho e boiardos da entourage e outro tanto do meio da tabela e de metade de canela de hierarquia, porque fluidos no corixo de sofrível faz-de-conta e de esganado «faxi-faxi», galopeiam nas achadas de luxúria e de sua estulta ignorância, falam à toa, espezinham e destratam o seu próprio semelhante. Refiro-me a uma refrega-aura-purpúrea, uma praga malfadada que se apossa de alguns a vir do limbo e a dar-se conta do seu estatuto nobiliário e do seu imediato endeusamento. São modelo acabado de um bastão bordado a ouro e colocado nas mãos dum transmutado vilão da história. Os tais que enchem os olhos de luz e de glamour, e antes de abrir a boca para sorver a primitiva inalação já entoam a verdade irrefutável a quatro cantos do paraíso. E sem a mínima noção de impertinência, participam do banquete reservado a deificas figuras de labor e do final de uma jornada, porque para eles o Além e a cretinice sabichona da corte de Asclépio são una e mesmíssima deidade irrebatível. É a mácula de pressa e de esperteza empertigada.

E para que tudo se consuma a seu contendo, basta que sopre, esfregue a mão, meneie a cabeça, pisque o olho e agite o rabo de volúpia, veja a conivência disponível e dê um jeito a seu perfil, esguio e pervertido, para que tudo se derreta a seus pés, sem circuito e itinerário, sem confronto e contradita, sem necessidade de penejar. Pois, o lugar já no panteão está garantido, num golpe de asa, e por mandato divino. Assim, aprontam a patranha, afinam a fanfarra e seguem rumo adentro para o circo da ribalta, sem alarido e calafrio, com apenas um aviso ameaçador a quem se insurja contra a sanha pretensiosa e desmedida «saia-me da estrada, estraga-festa!». E a franja-sudário para os párias, a ferida de imo dos que levam o couro a pôr na pia o esteio todo, o incentivo para mansos de parada, o regalo de muita gente que nada tem, a não ser o recanto da própria alma generosa? E donde vem tamanho opróbrio? De facto, abordamos tudo isso e aventamos algum serôdio paliativo, como se eu já não estivesse alistado e de malas aviadas para o cume das nuvens. Apesar de tudo, partir é sempre partir. Cria dilemas e conflitos. É a sina do Jorge Barbosa, querendo ficar e dando pulos irrequietos para estancar o ímpeto de evasão, mas não podendo. Bem, isto são conversas entre um pré - finado alucinado e um sibarita landgrávio, com expetativa de legado, um outro ávido de brinde e de prebenda.

Nesse dia, eu levava um alforge às costas, e adentro com caneta, caderneta, uma côdea de pão preto, pincel e pedra-lazúli. Eram o meu óbolo de jorna, a minha única progénie, não tinha mais. Carreguei durante anos o intuito de te deixar este artefacto, espólio de uma vida ao fiel depositário, como prova da minha indefetível confiança em ti. Então, doravante, meu sage sucessor, para além de te bateres para cumprir com o teu próprio vaticínio, incumbe-te também riscar a pedra de legado e decifrar dentro da joia a minha obra a vir a lume, intacta e núbil. Era isto que te estaria a relatar, na circunstância. Porém, num ápice, chegou uma onda gigantesca e brava, que me arrebatou, atirando-me para de cima da sua garupa, abrindo espumas brancas- sulfurosas. Eu tinha ficado consciente e via aumentado o meu sorriso, a olhar para ti, mas tu em virtude do tumulto e da bravura da engenhoca não me vias. Tornei-me indistinto a teus olhos, que lacrimejavam, incrédulos, diante daquele inferno que se formava e me engolia ao pé de ti, sem te tocar e sem sequer turbar nada de ti. Eu, da minha parte, enquanto levitava no cavalo das ondas, continuava a acenar-te o mais que podia.

Foi então que aconteceu uma surpreendente reviravolta: daquele turbilhão de vagas fui empurrado para junto de teus pés. Desembrulhei de mim afoitamente o alforge que te passei. Agarraste-o bem e ainda tive ensejo de contemplar o teu lamento, a tua cara franzida e triste, quando clamavas «adeus, adeus, meu protetor!». Depois, fui arrastado novamente por uma vaga muito maior que a anterior e desapareci nas trevas da incerteza. E eu, que tinha previsto num pedaço de papiro, como ficar depois de morto, parti em pé, de corpo e alma, metido num farrapo e não reduzido a uma migalha de cinzas, dentro de uma caixa de cera, envolto num caule de flor, atirado ao mar da Enseada, como era o meu lidimo desejo.

Observação: este artigo não visa nenhum jovem em particular e já estava escrito antes do anuncio da pré-candidatura do nosso amigo, Milton Paiva. Trata-se de uma mera e furtuita coincidência temporal.

* No couro de Donato de Advento

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Redação