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Amigo e prestimoso lenitivo
Colunista

Amigo e prestimoso lenitivo

Estava mais para lá do que para cá, quando a epifania me sorriu. Não me preparara para tamanha repentina quintessência. Tinha entrado em transe, caído na vulgata sensação de languidez. Com pé na linha-meta de declínio, era um mero ser alado que ali estava, oblíquo, arfado e a baloiçar, tal que ramo de oliveira lambujado no balofo de desejo, espalhando sua fragrância pela mui ansiada paz do cosmo. Ou, então, uma peça de vestuário, soltando-se do corpo do de cuiús, ficando ali no dorso de uma rocha, na sequência de estrondosa triste queda. Uma alma abrenunciada que se punha a esvoaçar a bel talante de infortúnio, por impulso do vento e no decurso dum desprezo para ruim perenidade. Farto de manquejar e de dar ao punho cabrestante coisa torta, já não me via no cobalto endurecido nem na paciência efervescente de um feno a ressurgir. Num plano esconso, diagonal, com apetência natural para o abismo eu era uma plutónica fundura sazonal e pendurado na vertigem do meu próprio vaticínio. Assim, ao contrário do ínclito oficiante que se embrenhava a tarde toda no encalço do poema que não vinha, mas que ele sabia adveniente, eu era alvo em frente ao dedo no gatilho e à beira de pacata sucumbência.

Um sítio aziago e vil, do tipo de um aprisco para bicho, incrustado no abdómem de suplício vertical e de parelha com traquinas Prometeu, no sinistro ancoradouro de penúria. Uma gruta nos limites da cidade a que os esnobes menoneses epitetavam de «fortaleza dos inábeis de presteza». Sempre que alguém não tinha estofo para se desembrulhar a bem de qualquer encrenca que tivesse entrado, era encaminhado para lá, com uma guia de advertência em como devia ser tratado ao nível de jumento. Claro, para levar com toda a casta de intempéries no sinuoso estulto couro. Então, nesse dia, estava embalado na sofreguidão do meu galopante descaminho. Chamemo-lo solto devaneio ou percurso atribulado de um serôdio. Ia bastante cabisbaixo e cheio de pena da minha sina, quando um ser nas minhas costas emergiu e entoou a sineta de advento, que me soou a voz de suave mando amigo «pára, Donato! Sou portador de uma radiante novidade para ti dar». E, de seguida, o Hermes anunciou «a tua sentença foi revogada e a pena de banimento comutada pelo rei da exímia arte. Volta que os cânones da urbe já te querem na cidade e falam na justeza do teu regresso. Está tudo a postos para a tua entrada triunfante em cena, no panteão da politeia, e posterior entronização. Nenhuma franja de irmandade se oporá a teu benquisto enlevamento, com todas as prerrogativas e imunidades correlativas e compatíveis com o status de uma nova estrela-Vega». Pensei um pouco e sussurrei «hum, paleios para me pôr a ver fumaça. Isto não passa de fogo-fátuo».

Estava eu em debandada cambaleante, não tinha forças para imprimir o ímpeto de reversão. Tentei virar a cara, não estava a conseguir. E o vizir de Apolo que me foi arrebanhar para ribalta inspiradora sossegou-me «não te preocupes. Tenho a meu serviço mais dois homens e uma junta de camelos. É só entregares a cintura para cingirmos nele o vigoroso cinto de segurança». Notei que ele estava afoitamente empenhado em me salvar e levar de volta à urbe. Era um confrade de nitente letra d’ouro. Possuía uma caneta lavada em suor de protuberante conseguimento. Um compatrício dos velhos tempos de Enseada-a-Lustre e da vizinha Vila de Jasmim Manga. Fiquei parado e pus-me a jeito. Ele fez aquilo que prometera, com apoio de expeditos auxiliares. Um gesto muito generoso porque na infância não tivéramos o imbele privilégio de labutar na lama juntos e partilhar as salas da primária. E isso nem mais tarde nos pátios do liceu. A única coisa que nos ligava era um linhar de terra rude, fazendo de fronteira entre duas herdades dos nossos pais, na Encosta de Fortuna.

Quando íamos a caminho da lavoura, minha mãe, precavida quase sempre, recomendava-nos «não atirem com a palha para de cima do terreno ao lado, porque é de uma gente amiga lá da Vila. Não nos fica bem». Ela escusava de entrar em pormenor sobre as diversas circunscrições da ilha e das suas egrégias linhagens familiares, porque sabia tarefa inglória. Não tínhamos coturno nem paciência para enxergar o significado das máximas morais e extrair delas as suculentas consequências. Então, apesar de possuidores de terras coexistentes paredes-meias naquelas bandas, só mais tarde teríamos ensejo de nos conhecermos.

Dele, na Enseada, apenas tinha ouvido ecos esporádicos de um noviço que se esfumara nas brumas do destino, levando a lidima ambição de se reinventar fora de portas, visando uns arcaboiços de esfuziante e majestoso savoir fair. Sendo que mais tarde emergiria nas vestes de vedeta, um astro envolto no diadema de esplendoroso fulgor artístico. Assim, o nosso encontro inaugural só se daria anos volvidos e no estrangeiro. Ele tinha sido protagonista de um rebuscado e rico evento. Despontara num tempo de prodígio, o nimbado dele próprio, com uma voz ousada e singular, com toda a legitimidade da sua geração. Foi vibrante e justamente ovacionado, catapultado para o palanque dos imortais. Abriu as portas e deu boas vindas ao milénio que aí vinha. De seguida, clareou as ilhas de norte a sul com seu estonteante candelabro.

Depois de entabularmos as primevas conversações, ficamos amigos para o resto dos dias que se seguiriam. A partir daí, ele assumiu uma espécie de encargo, a eito, de me passar o suficiente lenitivo, a ver se me livrava dos obstáculos que me estavam a turbar a vista do Miradouro de Leve Contemplação. Tanto insistiu, que por pouco não perigava o equilíbrio e correr o risco de se isolar dentro do conclave e atrair a cólera dos maestros da entourage. Havia alguns receosos do circuito que manifestavam as suas reservas quanto à pertinência do «Rei do tempo» continuar a apostar na minha deficiente prestação. Nada que o tivesse demovido um só minuto. Em verdade, o estro apontava-me o dedo e augurava-me melhor desenvoltura naquilo que fazia. Um dia, escrevi uma carta de renúncia à lide e dei-lhe conta da minha angústia. Pegou na missiva e guardou.

Na primeira ocasião que nos cruzámos, tirou ele do bolso a epistola e perguntou-me «que te diz esta caligrafia?». Não tive dúvidas e, de pronto, respondi «sim, só pode ser o meu rabisco de horas atordoadas». E ele, sempre fiel aos princípios e leal aos amigos, declarou «estou manifestamente descontente com o teu derrotismo». Fechou subitamente a cara e continuou «não te reconheço o direito de desistir duma via que tarde ou cedo dará seus frutos». Reparei que ele estava desapontado comigo e que falava com toda a sinceridade de excelso irmão. Fiquei um pouco atrapalhado. Ele voltou a sorrir, assumiu um ar jovial e bem-humorado e atirou-se a mim «sai uma fresca ou forte?».  Encolhi os ombros, mas ele conhecia, de ginjeira, as minhas preferências pelo afeiçoado suor de boi.

Estávamos, nessa tarde, numa famosa esquina da capital, na zona baixa da cidade, um sagrado ponto de encontro de todos os confrades da Achada do Planalto e redondeza, das sobranceadas e airosas zonas de Graciosa, do medievo sítio do padroeiro de todos os santos, do azafamado litoral do espirituoso Funaná e das cercanias de petrificadas e deificas figuras da nossa ingente ilha bonita, as dadoras de mote às investidas de acesso às escadas de labor e de sucesso. Entramos na loja, pusemo-nos a conviver com os demais e a cavaqueira sobre a minha inepta presteza ficou para trás. Depois, saímos. A questão pareceu-me arrumada. Porém, passado um tempo, abri um jornal da praça e lá estava ele, ex-novo, a dar-me recosto e bálsamo pujante.

Aí, fiquei a magicar num repto que me havia lançado um outro grande amigo e antigo chefe, quando me chamou e amenamente admoestou «não saias daqui rapaz! Tens a estrada toda livre para seguires caminho adentro e progredires até o fim da linha». Não obstante isso, eu, na minha imberbina visão de vida, achava que devia soltar aquele pássaro e sair na mira de um distante. Será que valeu a pena? Não sei. Até porque não «Tenho o Infinito Trancado em Casa», do estilo dum prezado vate amigo, nem a certeza na minha ilharga. Pelo contrário, vejo o finito emaranhado de peias na minha frente. O futuro não promete reviravolta de grande monta na minha esfera. Independentemente do que vier a ditar o devir, desejo ao antigo imensa paz perpéctua e ao insigne moderno os votos de toda a prosperidade do mundo.

Domingos Landim de Barros*

*No couro de Donato de Advento

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