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Despartidarizar ou partidarizar, eis a questão!
Colunista

Despartidarizar ou partidarizar, eis a questão!

1. Lembremo-nos da profunda dúvida de Sócrates: “ser ou não ser, eis a questão”, dizia o tal filósofo. Isto vem muito a propósito deste tempo abundante em dúvidas. Embora seja esta apenas uma das mais simples constatações das sociedades humanas: a da existência permanente de casos de dúvida – por onde escolher – entre duas situações antagónicas, representando extremos em oposição frontal;

2. Numa passagem, num post publicado no facebook, José Casimiro Pina coloca ênfase numa questão que nos remete para uma dessas situações de dúvida: como é que se pode ter a ideia de “despartidarizar o partido”, aventa ele para, de forma acutilante, chamar a atenção para que – pelo menos – comecemos a pensar nos riscos intrínsecos a este processo de “despartidarização”. Agindo assim, ele vai para além da imediata e acrítica simples aceitação da ideia;

3. Na verdade, é tempo de olharmos por uma segunda, terceira ou quarta vez, à condenação social e política a que a “partidarização” foi submetida e os danos daí resultantes, com efeitos negativos tremendos na mentalidade dominante na sociedade cabo-verdiana;

4. Ao olharmos para a nossa história recente, podemos destacar três marcos fortes desse processo de despartidarização. Em primeiro lugar, surgiu a “acusação da partidarização da administração pública”, transmitindo a ideia de que a APUB estaria infestada. Em segundo lugar, a reivindicação da “abertura de partidos políticos à sociedade civil”, colocando o militante numa posição bastante ingrata de fazer todo o seu trabalho reverter a favor de alguém que abomina, sublinhe-se: abomina, políticos e partidos políticos – mas está a apto a ocupar um cargo político sem nunca pretender fazer política; e, por fim, a triste metáfora da “linguiça pendurada ao pescoço do gato”, dando a ideia de que todos os funcionários públicos seriam sem caráter, nem ética ou moral, prontos a “abocanhar”, o gesto mais básico e animalesco possível: comer!

5. É de Portugal, tão perto, que nos vão chegando ilustrações importantes de que o caminho é o reforço ideológico e não o contrário! reagindo à crítica com menções à perda de postos de trabalho que António Costa, Primeiro-ministro, fez ao negócio da compra da PT Telecom, Passos Coelho, líder da oposição, homem da direita, diz que nunca tinha ocorrido algo assim: um PM a atacar uma empresa! Pois, é que nunca a esquerda esteve tão forte em Portugal e estando, desfere a mais forte crítica à ideologia do mercado registada até então. Passos Coelho queria um governo de esquerda a criticar à direita, perdendo a sua identidade ideológica;

6. Daí que a proposta da “despartidarização” poderá ser apenas o caminho mais fácil de acompanhar a onda de superficialidade, ausência de qualquer compromisso com ideais, princípios e valores mais rígidos e sólidos. Esses ideais, princípios e valores que, simultaneamente, reduzem a margem de liberdade individual e aumentam a margem de certeza em relação ao que podemos esperar do coletivo. Afinal, o traço maior de uma sociedade humana: o coletivo. Por isso, podemos afirmar que de Emmanuel Macron não saberemos com o que contar. Não há um fio condutor estabelecido "ab initio". Tanto se lhe pode dar para a esquerda como para a direita. Navegará à vista, caso a caso. A tal sociedade líquida de que fala o sociólogo Zygmunt Bauman;

7. É isto o que o futuro nos reserva, caso desapareçam os partidos tradicionais: individualismo, superficialidade, improvisação, populismo, conversa fiada e fim da ideia de continuidade do Estado. Pior de tudo: traz imprevisibilidade, algo que não coaduna com o exercício do poder! Dito de outro modo, um autêntico "undi da ki panha" no campo da governação.

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine