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Manifesto do Mar de Santiago (1)
Colunista

Manifesto do Mar de Santiago (1)

Aconteceram ultimamente alguns eventos no setor marítimo nacional e que têm a ver com a denuncia sobre inoperacionalidade dos faróis em Santiago e das condições logísticas para as pescas e conservação do pescado, a reunião sobre a economia do azul/preparação de programas para financiamento pela FAO de projetos concernentes ao crescimento da economia azul, apresentação de áreas de intervenção de instituições espanholas ligadas ao fórum do mar Vigo-Espanha, o conselho do Ministério da Economia Marítima com enfoque no setor das pescas etc.

Antes de mais é preciso referir que em nenhum desses eventos se constatou uma linha sequer que reflete a situação, propostas versus presença de representantes de Santiago e/ou outras regiões aí do centro ou cá do sul referentes ao seu setor mar/pescas. No encontro com espanhóis, INDP, Campus do Mar do Vigo, perante uma breve exposição da situação de pescas em Santiago, assistimos a uma concordância plena por parte do representante do INDP (o magnífico técnico Martins) e curiosidade por parte dos estrangeiros que reflete a absoluta anormalidade da situação em Santiago comparada com um ou outro ponto ao norte do país!

Considerando os diagnósticos e propostas de remediação que tenho publicado nos últimos seis anos relativos ao estado, potencialidades (relativamente enormes) e desafios do setor do mar em Santiago (realidade que melhor conheço mas que se assemelha com certeza a quase todas ilhas ao sul e a este do arquipélago), trago, desta feita, o presente manifesto, com o propósito de reforço aos trabalhos anteriores publicados sobretudo no A Nação, A Semana, Santiago Magazine e ultimamente, via entrevista, no MindeiInsite, incidindo criticamente na utilidade para Santiago dos acontecimentos referidos acima e nalgum diagnóstico sobre a atual situação e, como sempre, na parte (2), na indicação de propostas para o desenvolvimento do setor em Santiago, atendendo á situação crítica que atravessa há muitos anos.

Sabe-se que apesar das enormes potencialidades do setor marítimo, portuário e das pescas de Santiago, largamente expostas nos meus trabalhos e por gentes que labutam sol a sol nesse setor, e que têm a ver com o (i) maior número de pescadores, embarcações, peixeiras e mercado interno de pescado, (ii) o maior porto do país em termos de carga / («trade» marítimo) e o mais atrativo para investimentos/resultados financeiros da operação de cargas, (iii) um dos mais dinâmicos centros nacionais do shipping (transporte por navios), agenciamento de navios e transitários, (iv) as orlas marítimas com maior demanda para investimentos, (v) um enorme contingente de jovens e profissionais á espera de formação a custos comportáveis, locais nos domínios do mar e (vi) as melhores baías e enseadas para maricultura (cultivo artificial de pescado no mar), a ilha continua a assistir, literalmente, o enfraquecimento/desaparecimento de instituições marítimas (está-se a perder aquilo que seria o IMP/Capitania regional para sotavento com sede na Praia e continua a não haver uma delegação do IMP a administração marítima para Santiago Norte) e das pescas (está complicado identificar uma forte instituição para economia marítima e pescas, incluindo vertentes de aplicação dos resultados das investigações e mecanismos de financiamento e desenvolvimento de condições de esforços de pescas e de formação local,). Com a não extensão do Programa PRAO (Programa de desenvolvimento de pescas na Africa Ocidental), Santiago continua a não alcançar o financiamento do estaleiro das pescas exigido há décadas pelo Banco Mundial e comunidades piscatórias, com estudo já financiado pela PRAO, fazendo com que a ilha com maior número de embarcações de pescas se permaneça sem condições para sua reparação e apoio à construção. É triste ver as comunidades piscatórias como as de Rincão, da Praia, do Mosquito, da Ribeira da Barca etc, com oficinas precárias (na verdade construídas com paus de apoio e sacos de cobertura) numa tentativa de, mesmo que, de modo rudimentar, e sem quaisquer apoios institucionais, acomodar trabalhos de construção/fibragem e reparação das embarcações!

Para Santiago não há ofertas/apoios para aquisição/construção de embarcações semi-industriais nem mesmo embarcações artesanais com «algum upgrade» que permitam aos nossos pescadores operarem, com mais segurança e autonomia, espaços marítimos mais longínquos com mais recursos pesqueiros e assim melhorarem os seus rendimentos! Constatei junto de membros das associações de pescas de Santiago que as mesmas não participaram e nem conhecem as dinâmicas apoiadas pelo governo (via reuniões e conferencias/ocean weeks e quejandos, nos quais muitos deles e técnicos se Santiago não têm sido engajados) que já desenvolveram estudos relativos a perfis de embarcações melhoradas, cooperativas de pescas, mecanismos de financiamento, concessão de espaços para estaleiros, definição de utilização dos fundos de acordos de pescas etc etc.

O principal mercado interno do pescado do país que é o que ocorre á volta do cais de pesca da Praia, sofre constrangimentos inaceitáveis há anos, pois as obras nesse cais não terminam nunca, infernizando o funcionamento da inspeção e do mercado primário do pescado (e portanto o funcionamento de lota), o que, a par da insuficiência de berços de atracação das embarcações e da inexistência de uma rede adequada de mercado retalhista por toda a cidade faz com que a pesca na Praia e em Santiago permaneça, como há muitos anos, numa situação absolutamente constrangedora para a dinâmica dessa parte importante da economia de Santiago.

Permanecem as condições de inacessibilidade, por várias razões, à formação nos ramos das pescas quer no país quer (essa é a pior parte), lá fora, por parte de toda a cadeia de pessoal versus atividades de pescas em Santiago! O exemplo mais dramático é a impossibilidade de formação e certificação de um grupo de candidatos á categoria de mestre pesqueiro na Praia o que há quase cinco anos tem inviabilizado a credenciação adequada para que haja navegantes certificados para assegurar a regular condução da frota pesqueira santiaguense. Tentativas de viabilizar essa formação aqui em Santiago tem sido goradas assim como outras, com financiamento externo. Repare-se que as propinas para formação em S. Vicente são 80 contos. Os candidatos de Santiago não conseguem beneficiar de cursos de pescas aí por causa desses custos adicionados a custos de estada e da impossibilidade de exercerem a atividade de pesca regular para poderem remunerar a formação.

Desde anos noventa que Santiago reclama e espera por uma rede de infrastruturas portuárias para as pescas (lembrem-se dos três cais flutuantes então previstos?), incluindo arrastadouros onde couberem. A precariedade a respeito é amargurante principalmente em Tarrafal, Santa Cruz e Ribeira da Barca!

A maricultura continua a ser uma atividade importante para a exploração pesqueira marítima mas absolutamente ausente em Santiago enquanto projeto consistente nas comunidades piscatórias e que, mesmo que privados, contem com o apoio institucional de elementos ligados a instituições do Estado como tem ocorrido em C.Verde. De realçar que a aqualcultura (em C.Verde prefiro falar de maricultura pois não existem recursos aquáticos alternativos ao mar para a cultua de pescado) é responsável pela produção e muitas partes do mundo, de mais de 50% de pescado para consumo pois escasseiam-se cada vez mais recursos oceânicos naturais de pescado. Várias regiões no país em ilhas do Fogo, S. Vicente e Santiago já não têm recursos pesqueiros seus por perto, tendo que recorrer a dispositivos de concentração de pescado (que estão desaparecendo com o fim do respetivo projeto), e a fainas nos bancos e locais outros próximos de outras ilhas. Estudos chineses recentes indicam que as bacias e enseadas de Santiago são as ideais para a maricultura em C.Verde. Haja governação que ajude também Santiago nesse domínio!

Está inoperacional há anos o pequeno complexo de frio junto ao cais de pescas da Praia, outrora tão essencial para a conservação de pescado e outros produtos perecíveis. Para caraterizar o desprezo que o setor tem merecido junto de decisores deste país, basta referir que, ao contrário do outro que foi, após destruição por incêndio, reinstalado com financiamento espanhol de 16 milhões de euros, o nosso pequeno complexo sequer mereceu reparação para se qualificar para concessão a uma empresa norte americana. Aliás perante essa possibilidade, os habituais deputados do contra Santiago, para defender a sua dama, declararam na Assembleia Nacional que a haver a concessão, a atividade pesqueira da ilha dessa gente estaria a ser esvaziada!!! Temos assistido a mais ações do tipo, perante simples anúncios de empresas ligadas ao mar que pretendem investir e ou se representar na Praia! Como sempre, perante a cobardia e irresponsabilidade que hoje caraterizam decisões do género, o complexo de frio no porto da Praia, de milhares de contos em equipamentos danificados, continua fechado sine die!

Os faróis, equipamentos essenciais de ajuda á navegação ás embarcações de pescas em particular, encontram-se quase todos inoperacionais há muitos anos (confirmar com a denúncia recente de cidadão de Santiago Norte na TCV). Alguns deles estão posicionados em locais de importância fatal a embarcações de procedem do Maio e do Norte da ilhas de Santiago. Há um projeto de cindo milhões com a Espanha que já devia ter reparado e instalado novo sistema de vigilância e de gestão desses equipamentos em todo o país.

De uma forma geral, por conseguinte, a situação das pescas é, de há muito, particularmente crítica abrangendo deficiências ou inexistência de condições infraestruturais, formação acessível e instituições dedicadas e condições de apoio financeiros em todos os aspetos das pescas em Santiago.

No que diz respeito á orla marítima, a situação na Praia e em Santiago em geral reflete a ineficiente governação do ordenamento do território, a boa pratica urbanística e de construção na orla á luz das diretivas dos organismos do aquecimento global, das leis da república, dos interesses públicos inerentes e das classes sociais vulneráveis. As construções previstas na Gamboa de três hotéis junto á marina e mais dois hotéis que elementos da classe de engenheiros informaram á Pro-Praia serão construídos pelo David Chow em pleno areal de Gamboa (de novo?), portanto, inconsistente com o projeto inicial tolerado pela sociedade praiense e pelo governo de então (de referir que o atual imóvel do David no areal não tem sido aceite quer por turistas quer população sobretudo pela sua excessiva altura), continuam a atormentar as gentes desta ilha, que não só continuam a não ver os efeitos dos financiamentos-contrapartida das obras do David como assistem ao caos na Gamboa e o perigar das atividades tradicionais náuticas, de laser, música, desporto compatíveis com o areal da Gamboa. Quebra Canela idem, os dinheiros ultrapassaram quaisquer critérios de decência e conformidade de usos da orla marítima/reduzida frente marítima da cidade e de reserva de avistamentos do mar para o público, primariamente!

O principal porto do país, o Porto da Praia, continua sem ter a sua administração e autoridade autónomas de modo a promover o seu desenvolvimento de acordo com a sua potencialidade, ambição e investimentos cujas propostas têm sido negadas pela administração centralizada fora da ilha (este modelo há muito que não existe no mundo!). Apesar de finalmente receber um rebocador (de segunda mão) exigido há mais de década, o porto espera indefinidamente por outros elementos de reforma como a autonomia, o terminal de cabotagem devidamente equipada com mais rampas ro-rós, uma gare de passageiros dimensionada e equipada á altura do porto, de espaço logístico de carga de cabotagem, mais superfícies pavimentadas e pisos dos cais melhorados etc.

Para concluir esta primeira parte do presente manifesto refiro-me ao fato do o transporte marítimo em Santiago não contar com instituição local forte de administração e autoridade marítima (sem meios orçamentais, logísticos, equipamentos e estrutura organizacional adequados ) para servir o shipping (Santiago tem os principais elementos do shipping que é o carga e «trade» marítimos) e a dinâmica de uma crescente atividade de agentes, transitários e operadores económicos impactantes para a economia marítima. Não há formação local para o mar em geral, o que se justifica pela demanda de milhares de jovens e profissionais á espera da escola do mar de sotavento.

Para uma urgente intervenção e remoção dos atuais constrangimentos desse setor do mar que se diz ser essencial para o desenvolvimento de Cabo Verde (portanto não pode haver discriminação de qualquer ilha nesse processo e setor de desenvolvimento!), indicarei na parte (2), na próxima semana, algumas medidas que considero relevantes a respeito.

Praia, 9 de Outubro de 2019.

 *Mestre em Gestão do Transporte Marítimo

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Redação