• Praia
  • 29℃ Praia, Cabo Verde
Estado fraco e ideologia política
Colunista

Estado fraco e ideologia política

1. A situação exige que comecemos por uma das definições mais simples: Estado é uma entidade que tem poder de soberania [kenha ki ta manda] sobre um determinado território. O Estado tem Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário. Isto quer dizer que é só – e apenas só – o Estado que deve criar e executar leis e fazer justiça!

2. O problema é que o Estado de Cabo Verde tem vindo a dar sinais claros de incapacidade de exercer o seu poder. Primeiro foi o acordo SOFA em que abriu mão de julgar certos cidadãos estrangeiros que venham a cometer crimes no território nacional. Agora, depois de o Estado criar uma lei na área da aviação civil, é este mesmo Estado que volta atrás por imposição – imagine-se! – de uma empresa estrangeira;

3. Para uma melhor contextualização, importa resumir: dia 21 de setembro de 2018, a Agência de Aviação Civil (AAC) anuncia medidas que levam a uma redução nos preços para a maior parte dos voos domésticos; três dias depois a companhia aérea estrangeira Binter, à qual o Governo ofereceu o monopólio do mercado interno nacional, faz chantagem com o Estado de Cabo Verde, anunciando a suspensão da venda de bilhetes a partir de 28 de outubro; 24 horas depois de reuniões entre a AAC, o Governo de Cabo Verde e o patrão da Binter, eis que o Estado de Cabo Verde, numa triste figura, através da AAC, presta-se ao papel menor de ceder à chantagem da Binter, “despistando” que, afinal, vai repensar a sua legislação;

4. A AAC que viveu os seus já quase década e meia de existência, em quase absoluto anonimato – mas com ganhos nos bastidores extraordinários para a aviação do país – vê-se assim, de repente, sob as luzes da ribalta, para onde salta, mas devido a péssimas razões: passou de reguladora para regulada! Há um Conselho de Administração que perde toda a sua dignidade ao sucumbir-se, sem uma réstia de espinha dorsal – como alguém já tinha dito –, numa evidente situação de "refém material" do futuro! Perfeitamente encaixado nesse novo posicionamento da moda nacional: silêncio e subserviência, sem ética, nem moral alguma;

5. Contudo, é preciso ver bem que o esvaziamento da regulação é uma medida profundamente ideológica e de fundo! A direita elimina a regulação para que as suas empresas aumentem cada vez mais os seus lucros. É isto que aconteceu. A AAC baixou os preços das passagens e isso iria diminuir o lucro da Binter. Esta anunciou o fim dos voos e, imediatamente, o Governo veio garantir que o nível de lucro da Binter se mantivesse intacto. É o Estado "amigo das empresas" e "sem djobi pa lado" para os cidadãos. Estes que, por ironia do destino, sempre acharam que "sem djobi pa ladu" só se aplicava aos outros;

6. Esta é a razão porque o Governo está a proceder à extinção e fusão de agências reguladoras. É que assim, há menos regulação e maior à vontade para as empresas privadas operarem com menor controlo e maiores taxas de lucros. É nesta estratégia que se enquadra a extinção da Agência Marítima e Portuária (AMP), precisamente, porque foi esvaziada ao ser-lhe retirada a regulação económica; aqui também se inclui a extinção da Agência de Regulação Económica (ARE) e da Agência Nacional das Comunicações (ANAC), criando a Agência Reguladora Multissectorial da Economia (ARME), concentrando tanto a regulação como a margem de controlo do poder de decisão. É esta a posição ideológica da direita: Estado fraco para os privados poderem explorar o povo e aumentar a sua acumulação de riqueza. Com menos justiça social porque diminui o número de pessoas que poderiam ter acesso à possibilidade de viajar num país constituído apenas por ilhas!

7. Há a assinalar, ainda, um facto incontornável: AAC é Estado de Cabo Verde. Os membros de Governo têm bastante poder, mas ainda não têm o poder de mudar factos! Pior ainda neste caso em que é o Estado que determina a decisão da agência de regulação, com consentimento desta – é certo! – e o mesmo Estado é acionista da empresa, cujo enriquecimento promove, sem se saber com que contrapartidas, pois, o contrato nunca foi visto por nenhuma instituição da República!

Partilhe esta notícia

SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine