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Manuel Veiga. Acredito que na próxima revisão constitucional será dado o passo decisivo rumo à oficialização do crioulo
Entrevista

Manuel Veiga. Acredito que na próxima revisão constitucional será dado o passo decisivo rumo à oficialização do crioulo

Linguista, investigador, professor e escritor, Manuel Veiga apresentou neste fim de semana a terceira edição do seu romance “Odju d´Agu”. Um livro escrito em crioulo que é mais um exemplo da paixão com que o ex-ministro da cultura de um dos governos de José Maria Neves, defende a língua materna e cada vez mais com a confiança de que vai ganhar a luta da oficialização. Ele que afirma convicto: "acredito que na próxima revisão constitucional o passo decisivo rumo à oficialização do crioulo será dado.

- A primeira edição de “Odju d´Agu” é da década de 1980. Cerca de 30 anos depois, volta a reeditar a obra, caso raro em Cabo Verde. O que explica este sucesso, digamos?

- O livro, sendo um cântico a Cabo Verde e a busca das raízes crioulas, causa empatia junto de qualquer cabo-verdiano que se der ao trabalho de ler a obra. Há quem me tenha garantido que já leu o livro mais de três vezes. Ainda ontem [22 de Março], na apresentação da obra, a Dra. Antonieta Lopes dizia que lamenta ter descoberto só agora a riqueza do livro e que, se o tivesse lido antes, seguramente teria levado os seus alunos a tirarem benefício de uma obra que ela considera polifacética e polissémica, na medida em que nela se pode encontrar variadíssimas vivências autobiográficas do autor, o resgate de diversos aspectos da cultura e da traição cabo-verdianas, em textos narrativos, em descrições com forte estilo da oralidade, em poemas com bosquejo lexical, semântico e rítmico, em mensagens veiculadas através da dramaturgia, em princípios filosóficos, em cultura da ética, em ricas metáforas próprias do homem do campo, etc., etc. O próprio Ministro Abrão Vicente considerou Odju d’Agu como uma fonte de preciosidades da e na nossa língua materna, no seu post no Facebook do dia 23 de Março, e recomenda vivamente a sua leitura. É nisto tudo que está o segredo de Odju d’Agu e que explica a saída desta 3ª edição.

- Mas de quem foi a ideia de reeditar o livro, foi sua?

- A proposta da edição do livro partiu da própria Editora [Livraria Pedro Cardoso], através do seu director, Dr. Mário Silva. A princípio, pensei tratar-se de uma brincadeira. Porém, face à insistência, acabei por acreditar que se tratava de uma proposta séria.

- Que género de obra é “Odju d´Agu” ?

- Trata-se de uma obra de ficção, de um romance histórico. Aliás, como dizia Milan KUNDRA em A Arte do Romance (publicação D. Quixote, Lisboa, 1988), o romance é “… um espaço imaginário onde ninguém é possuidor da verdade e onde cada um tem o direito de ser compreendido (p. 186), e “… o romancista não é nem um historiador nem um profeta: é um explorador de existência” (p. 60), sendo esta “o campo das possibilidades humanas” (p. 59). Assim se pode concluir que em Odju d’Agu o autor é um explorador de existência, da sua própria existência, mas também da existência do seu povo e que merece ser compreendido.

Mas o que é ou significa “Odju d´Agu”?

- Odju d’Agu é a nascente onde a água é a mais pura. Na obra, trata-se de uma metáfora. Num primeiro momento, Odju d’Agu é Cabo Verde, num segundo momento é Portugal, num terceiro momento é o continente africano. A personagem Regina, que ilustra a capa da obra, tinha grande empatia com a cultura do seu povo. Porém, face ao desprezo da cultura cabo-verdiana que ela verificou no seio familiar, resolve ir bastar a sua sede, numa outra fonte, em Portugal. Como estudante de medicina, primeiro, e como profissional, depois, não conseguiu saciar a sua sede identitária em Portugal. Aí encontra-se com Mamadú, um negro africano que saiu de África para conhecer o mundo. Os pais se opõe a um tal enlace. Rebelde, como era, Regina não só se casa com Mamadú, como decide viajar pela África, de lés a lés, tendo o Mamadú como cicerone. Ora, o continente africano, como fonte de Odju d’Agu, também não sacia a sede da Regina. Ela começa dar-se conta que o seu verdadeiro Odju d’Agu é Cabo Verde para onde volta, de novo, já com sete filhos crioulos (afro-verdianos), ao lado de Mamadú que vem descobrir as riquezas da crioulidade e de Cabo Verde, tendo a Regina por cicerone. O regresso da Regina (“si ka badu ka ta biradu” – diz Nho Eugénio Tavares), dá razão ao Presidente Leopold Sédar Senghor quando disse que o futuro da civilização seria crioula. Com efeito, a nossa crioulidade começou por ter duas matrizes (a Europa e a África). Porém, agora, muito mais do que no tempo da Regina, tem por matrizes Cabo Verde e o mundo: uma crioulidade consciente e criticamente aberta ao mundo, sem se deixar ser sufocada. Consciente e criticamente, o que o mundo nos traz de positivo, assumimos. Porém, rejeitamos tudo o que de negativo nos chega através das diversas janelas da globalização.

- Manuel Veiga define-se a si próprio como escritor? Ou é um linguista que se mete em seara alheia?

- Sou linguista de formação que aprendeu a conhecer melhor o mundo, escrevendo. Sinto-me mais ensaísta do que ficcionista. Aliás, dos dez títulos que já publiquei, só há dois de ficção. No prelo, tenho mais um ensaio e mais uma obra de ficção.

- Consegue dizer-nos quem ao longo destes anos comprou “Odju d´Agu? Ou seja, quem são os seus leitores?

- Não faço ideia. Só sei que, se já vamos na terceira edição da obra, é porque há quem esteja a comprar o livro. Conheço pessoas que me disseram que já leram a obra, por três vezes, como há quem também, como o Onésimo da Silveira que declarou, em entrevista ao jornalista José Vicente Lopes, que não conseguiu passar da terceira página. Aliás, essa é a razão por que, nesta terceira edição, resolvi incluir uma página introdutória em português para introduzir o leitor menos familiarizado com o crioulo no enredo da obra. Introduzi ainda um glossário de palavras menos usadas, particularmente nas cidades.

- E hoje, na actualidade, quem, na sua opinião, vai comprar “Odju d´Agu”?

- Ontem, no lançamento, havia estudantes, professores universitários, escritores, jornalistas, várias profissões liberais e reformados. Foi surpreendente o facto de ter dado mais do que uma trintena de autógrafos. Creio que qualquer cabo-verdiano, amante da sua língua e da sua cultura, preocupado com um conhecimento cada vez mais profundo das suas próprias raízes, poderá comprar o livro.

- E o mais curioso é que estamos perante um livro escrito em crioulo, e nós cabo-verdianos, apesar de ser essa a nossa língua materna, não sabemos ler ou lemos mal em crioulo.

- O alfabeto cabo-verdiano é dos mais simples, económicos e sistemáticos que conheço. É de base fonético-fonológico, representando, tendencialmente, cada letra um som e vice-versa. Basta conhecer o valor de cada letra. Esta aprendizagem é fundamental. Uma vez interiorizado o valor de cada letra, a leitura é facílima.

- Mas não é o que se depreende nas conversas sobre o tema. Daí a minha pergunta seguinte: Vivemos em conflito com a nossa língua materna ou a relação é pacífica?

- A reconciliação com a nossa língua materna é cada vez mais significativa. Já houve momentos de maior conflitualidade. Porém, hoje, ninguém diz que o crioulo não é língua. Há apenas algumas experiências não sistemáticas do ensino, mas o espaço de oficialidade aumentou, tem aumentado. Hoje, há noticiários e programas em crioulo nas rádios, na televisão estatal. Hoje, é mais frequente o uso do crioulo no Parlamento, nas igrejas, nos tribunais. Até nas Nações Unidas houve um Primeiro-Ministro (o Dr. José-Maria Neves) que discursou em crioulo, em 2011, na 66ª Assembleia-Geral. Nas redes sociais, é o crioulo que reina, principalmente na comunicação dos jovens cabo-verdianos. Há algumas edições em crioulo patrocinadas por editoras públicas e privadas. Houve um Mestrado de Crioulística e Língua Cabo-verdiana na Uni-CV, onde a experiência de ensino do crioulo prossegue. Em várias universidades nacionais e estrageiras têm surgido dissertações e teses sobre o crioulo de Cabo Verde.

- Sim, é verdade, mas ainda há muita resistência.

- Pois, há quem, erradamente, continua a ver a valorização do crioulo como uma ameaça ao português, quando se sabe que o conhecimento de uma língua materna, em qualquer parte do mundo facilita a aprendizagem de outras línguas e de outras matérias. A experiência piloto do ensino bilingue que vinha dando resultados altamente positivos, estranhamente foi desencorajado pelo atual Ministério da Educação. O número dos que escrevem em crioulo (particularmente os jovens) aumenta dia por dia. Há, no entanto, um conhecido escritor que disse que não escreve em crioulo porque o mesmo não nos leva a lado nenhum. Entretanto, no livro Encontro com os Escritores, 1992, organizado por Michel Laban, declarou que só escreve em português, mas não é capaz de falar com a sua filha numa língua que não seja o crioulo. Ora, esse escritor se esqueceu que a Cesária Évora, que falava e cantava só em crioulo, conseguiu levar Cabo Verde ao mundo e trazer o mundo a Cabo Verde. O mesmo fazem os nossos emigrantes espalhados pelo mundo. O nosso ilustre escritor se esqueceu que, escrevendo em crioulo, se a obra efetivamente é de um valor significativo, a mesma pode ser traduzida em qualquer língua da globalização, fazendo com que indiretamente o crioulo nos possa levar ao mundo e trazer o mundo a Cabo Verde.

Concluindo, a relação com a língua materna não é totalmente pacífica. Porém, a tendência vai no sentido de uma relação cada vez mais harmoniosa, cada vez mais pacífica.

- O estado da relação com o crioulo explica por que ainda não foi oficializado, ou por trás estão apenas razões políticas?

- Hoje, as razões são de foro sobretudo políticas. A tendência, porém, começa a desenhar-se no sentido da oficialização. São significativas as declarações tanto do Senhor Presidente da República, como as do atual Ministro da Cultura e das Indústrias Criativas, em 1918 como em 1919, por ocasião do Dia Internacional nas Línguas Maternas. Todas essas declarações vão no sentido de se respeitar um direito fundamental do povo de Cabo Verde que é o reconhecimento do crioulo como língua oficial.

- Qual a sua previsão sobre isso? Dito de outro modo, quando teremos o crioulo oficializado, e em pé de igualdade com o português, até o momento a única língua oficial de Cabo Verde, quatro décadas depois de nos tornarmos independentes?

- Eu acredito que na próxima revisão constitucional o passo decisivo rumo à oficialização será dado.

O que falta?

- O que falta é a vontade política. E hoje essa vontade é cada vez maior.

- O ALUPEC, de que falou há pouco, é chamado por muitos como “o ALUPEC do Manuel Veiga”. É de facto, o “pai” desse alfabeto?

- O meu contributo para esse alfabeto é, sobejamente, conhecido. Um contributo que não é apenas teórico, mas pratico e, até, de ordenamento jurídico, em matéria de aprovação de importantes dispositivos no sentido da afirmação e valorização do crioulo: Já escrevi um romance, exclusivamente em crioulo; já escrevia várias versões de gramática (Diskrison Strutural di Língua Kabuverdianu, O Crioulo de Cabo Verde – Introdução à Gramática, O Caboverdiano em 45 Lições, Le Créle du Capr-Vert – Etude Grammaticale Descriptive et Contrastive); publiquei um dicionário crioulo-português; a minha tese de doutoramento é sobre o crioulo de Cabo Verde; tenho uma obra no prelo sobre a Formação do Crioulo a partir das suas matrizes (luso-africanas) e da Restruturação Local. Será, brevemente, dada à estampa uma obra (Profecias do Ali-Ben-Ténpu), uma reflexão filosófica sobre o Cabo Verde de amanhã, numa autêntica experiência bilingue (nosso desígnio nacional), na medida em que os seus 50 capítulos são, alternadamente, em crioulo e em português. É preciso, no entanto, não se esquecer que, apesar de ter sido Presidente do Grupo de Padronização do Alfabeto (o ALUPEC), o mesmo era integrado por linguistas, escritores, professores de várias ilhas (S. Nicolau, S. Vicente, Fogo e Santiago). Neste sentido, o ALUPEC é de Cabo Verde e não de Manuel Veiga.

- Nas redes sociais, como disse, a maioria escreve em crioulo, mas poucos usam a grafia do ALUPEC. O que explica essa aversão?

- Não se trata de aversão, mas sim de desconhecimento. O alfabeto e a escrita se aprende nos bancos da escola, o que em Cabo Verde não acontece ainda (pelo menos de forma sistemática e massiva). É por isso que muitos têm mais facilidades de utilizar o alfabeto português que aprenderam na escola, para escrever o crioulo.

- Chegou a propor que, no âmbito da oficialização do crioulo, se adoptasse a variante de Santiago e a variante de S. Vicente. Com que fundamentos?

- A língua oficial não será nenhuma variante, mas sim o crioulo de Cabo Verde. Ora, na padronização desse crioulo (um percurso longo e lento) são e serão tomadas em conta as variantes com maior representatividade cultural, social, literária, académica, etc. O melhor caminho para se obter maior e melhor representatividade dessas variante é investir nelas, através de edições, de prémios, bolsas de estudo, de utilização oral e escrita. A padronização dá-se através da mobilidade linguística, de estudos realizados, de publicações e da utilização em todos os domíminios de comunicação formal e informal. A variante que ocupar maior espaço, em termos de comunicação, a todos os níveis (oral, escrita, comunicação social, Mídias, redes sociais…), de estudos académicos, de produção literária e artística, de ensino formal, estará melhor posicionada para contribuir para uma padronização pacífica, progressiva e funcional. Essa padronização nunca será um projecto acabado e fechado. Ela será um processo, numa perspetiva de abertura, já que a língua é viva e as mudanças acontecem sempre que, para tal, haja razões.

- Mas sabe que essa proposta merece repúdio da parte dos naturais das outras sete ilhas habitadas do nosso país. É só uma questão de orgulho de ilhéu?

- O repúdio é um fantasma apenas. Do ponto de vista da oralidade, todos continuarão a usar a sua própria variante. Porém, todos sabem que há variantes que são inter-regionais. A variedade de S. Vicente que é entendida e usada em todo o Barlavento terá, seguramente, um maior peso na padronização, maior do que o de uma simples variante usada exclusivamente numa determinada ilha. O mesmo se pode dizer em relação à variante de Santiago que é usada e entendida em todo o Sotavente e, razoavelmente, no Barlavento. A sua contribuição na padronização decorre da própria função que desempenha no todo regional, inter-regional e, até, nacional.

- Numa entrevista à revista “Leitura” Eutrópio Lima da Cruz diz, mais ou menos, que os mais letrados, e que falam bem ou melhor o português, estão a adulterar o crioulo, introduzindo na sua fala expressões portuguesas. Concorda?

- É uma verdade. Erradamente, alguns acham que crioulo rico é o que é utilizado com a fonética e morfologia do português. Um dia acabarão por dar-se conta que cada língua tem o ser génio próprio, a sua morfologia e sintaxe próprias. Não é utilizando um fato branco que transforma um negro num branco, de sangue, de cor e de cultura.

- E os cabo-verdianos que vivem na diáspora não impregnam também a nossa língua de termos típicos da língua do país de acolhimento?

- O contributo da diáspora não é apenas o “bidon” e as divisas. Ele pode ser, sobretudo, no plano cultural, artístico, científico, empresarial. O campo da língua não é, nem pode ser uma exceção. No entanto, o contributo linguístico para se consagrar, tem que haver mobilidade, tem que haver consensualização, tem que haver aceitação consensual. E isto não pode ser produto de um ano ou de uma década. Leva o tempo que for necessário.

- José Luís Hopffer Almada disse-me em tempos, numa entrevista, que o bilinguismo dos cabo-verdianos na diáspora corre risco de desaparecer porque muitos entre as gerações mais novas já não falam crioulo. Acredita que isso possa vir a acontecer, de facto?

- Acredito que esse bilinguismo pode diminuir, não desaparecer. Os cabo-verdianos na diáspora já começaram a redescobrir as suas raízes. Antes, porque emigraram no tempo em que Cabo Verde era uma colónia, diziam que eram portugueses. Hoje reafirmam a sua crioulidade. É surpreendente que o primeiro ensino formal do crioulo aconteceu nos EUA (já desde a década de 1970, com o Dr. Salazar Ferro). E a primeira experiência de ensino piloto bilingue aconteceu em Lisboa com as linguistas Ana Cardoso e Dulce Pereira (esta última portuguesa).

- É professor universitário numa instituição pública (Uni-CV), mas sei também que dá cursos particulares de crioulo para diferentes profissionais. Quem está a aderir mais?

- Tanto no público, como no privado, os meus alunos, no início, acham que o crioulo é difícil. Após algumas aulas, a empatia é total e o que antes era difícil passa a ser quase que uma experiência lúdica, uma pedagogia gostosa. E os resultados são excelentes.

- Voltando aos livros. Odju d´Agu faz parte de uma trilogia romanesca, do qual faz parte Diário das Ilhas (em português), e Profecias do Ali-Ben-Ténpu, em crioulo e em português, este último ainda inédito, que corporizam o seu Cântico de Exaltação e de Homenagem ao Povo de Cabo Verde. Quando veremos essa terceiro livro editado?

- Se eu fosse um poeta, de verdade, gostaria de escrever uma epopeia a um povo que me legou três coisas muito importantes: uma história sofrida, uma cultura resiliente, dialogante e tolerante, uma língua de razão e coração. Na impossibilidade de escrever uma epopeia, que exige engenho e arte, resolvi escrever um Cântico de Reconhecimento e de Louvor ao meu povo. O mesmo se materializa através de uma trilogia em que o Odju d’Agu (a busca das raízes e a valorização das tradições) está em crioulo; O Diário das Ilhas (igualmente romance, em que a história do meu povo, das origens à Independência) ganha forma e conteúdo, está em português. Finalmente, as Profecias do Ali-Ben-Ténpu, uma metonímia do lendário Nhu Naxu, completa a trilogia, e para demonstrar que as duas línguas da República constituem o nosso desígnio, a obra é escrita com capítulos alternadamente em crioulo e em português. Trata-se de uma reflexão filosófica, uma espécie do Cabo Verde de amanhã, em sonho.

- Como é a experiência de escrever um livro em português e em crioulo?

- Em Cabo Verde vivemos no banho das duas línguas. Ora, eu que sou verdadeiramente bilingue, com igual facilidade em escrever e em falar ambas as línguas, resolvi criar uma obra, em saudação ao bilinguismo cabo-verdiano, com capítulos alternadamente nas duas línguas da República.

- Há quem não goste/quer falar em crioulo, mas há quem também nega-se a expressar-se em português. Quem tem razão?

- Quem tiver razões para falar só o português, que o faça; quem tiver razões para utilizar só o crioulo, que o faça também. Igualmente, quem tiver razões para utilizar as duas línguas da República, como eu, que seja também livre de o fazer. Não quero julgar ninguém. É bom aprender a respeitar, com honestidade, seriedade e dignidade, as razões de uns e de outros.

- Estamos, digamos, condenados a ter que aprender, e aprender bem, estas duas línguas?

- Não é uma questão de estarmos condenados. Parece antes que é uma necessidade salutar. A escolha tem consequências. Que cada um seja responsável e consequente. Para terminar, conto uma discussão que tive com um destacado intelectual cabo-verdiano. O mesmo confessou-me um dia: “Já não tenho idade para aprender o crioulo”. Retorqui-lhe: Se, um dia, o seu ganha-pão ou o sucesso dos seus negócios passarem a depender do crioulo, não terá nenhuma relutância em empreender o caminho da fonte”. O mesmo acabou por me dar razão. Tudo isto para dizer que não estamos condenados, estamos convocados a aprender, e bem, a língua da nossa identidade primeira, a língua do coração e dos sentimentos, mas também razão e do desenvolvimento harmonioso.

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SOBRE O AUTOR

Teresa Fortes