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Cabo Verde, um país às avessas!
Editorial

Cabo Verde, um país às avessas!

Agosto está no fim. Passou seco, sem gota de água. Mas parece que quer terminar molhado. Tem caído chuviscos pelas ilhas, e há noticias de que uma onda tropical poderá passar pelo arquipélago nestes dias, e deixar aqui alguma água para regar a esperança do agricultor, do povo, e amansar a terra ressequida.

Os ânimos estão exaltados. Sente-se nos ares uma aragem suave e breve! É sinal de que as coisas poderão mudar. Certamente a natureza irá manifestar a sua solidariedade para com um povo perdido no seu próprio labirinto, cativo nos atalhos da sua própria identidade, cercado pelas teias da sua crença, credo e mito. Um povo habitando um país às avessas. Um país onde nada do que parece é. Um país que se escarnece das suas próprias artimanhas e vilezas. Lixado, então? Sim, um país lixado!

Cabo Verde é um país estranho, dirigido por um grupo de estranhos. Um país que não consegue se identificar consigo mesmo - sendo desconhecido de si mesmo – e que está sendo comandado por um grupo de desconhecidos. Ou extraterrestres! Portadores de uma linguagem codificada, onde terminologias como capital, empresas, empresários, capital estrangeiro, inserção na economia mundial, empreendedores, economia de mercado, sector privado, motor da economia, liberalismo, banca, taxas de juro, assumem particularidades impróprias para consumo de populares, esta vasta massa corpórea, que, na crença de uma certa direita exacerbada, é incapaz de produzir riquezas e contribuir para a sociedade de consumo e bem-estar.

Enfim, esta vasta e amorfa massa popular que se espalha pelos montes, cutelos, ribeiras e achadas das ilhas e que formatam o mundo rural cabo-verdiano, onde a pobreza impera e o descaso das autoridades públicas chega a limites inaceitáveis e proibitivos, numa sociedade que se afirma democrática e justa.  

A agricultura é importante em Cabo Verde. O mundo rural é importante, ocupa pelo menos dois terços do território terrestre nacional. Mais de metade da população residente no país está no mundo rural. Pelo menos 70 por cento dos cabo-verdianos possuem hábitos identitários puramente rurais ou campesinos.

Aqui, neste país, onde, em anos sem chuva, pessoas e animais morrem de fome, quando não morrem de tédio, desgosto e impotência.

Aqui, neste país, onde, quando não chove, os poderes públicos ficam obrigados a reequacionar todo o seu programa de governação, central e local. A solidariedade social aumenta, tanto pública como privada. As remessas dos emigrantes aumentam, porque estes querem repartir o pouco que têm para acudir as famílias em dificuldades.

Por isso, a agricultura é importante, faz a terra produzir o pão, alimenta o país e ajuda a financiar o crescimento da economia.

Por exemplo, no ano agrícola 2017/2018, o primeiro-ministro lamentou não ter conseguido fazer o país crescer a 7 por cento por causa da seca e do mau ano agrícola.

É uma desculpa airosa, inteligente e oportunista, que bate fundo na alma do crioulo! Coitado do primeiro-ministro, ele não faz milagres… não choveu, fazer o quê… ele não tem poder contra os caprichos da natureza!

A vitimização, dizem os estudiosos, é a maior arma dos derrotados da vida. É uma bengala que anda por todo o mundo, produzindo deficientes e frustrando sonhos. Para quê firmar-se nas minhas próprias pernas, se tenho bengalas à mão para suportar parte substancial do peso corpóreo?...

Imaginem o chefe do governo, o senhor Ulisses Correia e Silva, perante um fraco desempenho do seu executivo, vir desculpar-se com o mau ano agrícola, quando no seu programa de governação a agricultura praticamente não consta. Isto, caro leitor, só num país às avessas!

Na verdade, ninguém sabe, ninguém conhece, seja deputado, ministro, presidente de Câmara Municipal, chefias intermédias, ou simples João da esquina, qual é o programa do governo para o sector da agricultura. Para além das já corriqueiras e gastas frases feitas sobre a correcção torrencial das bacias hidrográficas e demais chavões da mesma família, a agricultura é o parente pobre deste governo, se se chega a ser parente.

Entretanto, quando o mote é arranjar desculpas para fazer face a eventuais incompetências, ou maus resultados, já a agricultura passa a ser parente de primeiro grau, com responsabilidades acentuadas no processo governativo, ao ponto de impedir o país de crescer numa escala de quase 4 pontos percentuais. De um sector praticamente nulo no programa governativo, passa a lugar cimeiro na altura de mostrar resultados.

Dá para entender, caro leitor? Isto, só num país às avessas!

Mas adiante. Neste país acontece cada coisa, que certamente até o diabo toma apontamentos para aplicação posterior.

Cabo Verde rubricou o SOFA com os EUA. Logo a seguir vozes se levantaram aqui e ali a invocar a pertinência e oportunidade do acto, a sua potencial inconstitucionalidade, a hipotética perda de soberania nacional, entre outras questões consideradas importantes para o bem-estar da nação.

Como sempre, o governo veio a terreiro defender a sua posição, fez comparações com vários outros acordos assinados, entre outras recomendações circunstanciais.

No meio dessa celeuma toda, o Presidente da República manteve-se calado no seu canto, deixando escapar um ou outro monólogo sobre o assunto, mas nada de substancial. Até esta semana, quando falou ao jornal Expresso das Ilhas, afirmando ter tomado conhecimento do SOFA quando este já havia sido assinado pelo governo, coisa que ele já tinha aventado antes, tendo sido imediatamente desmentido por Ulisses Correia e Silva.

Que estrondo!... O quê? O mais alto magistrado da nação tomou conhecimento do SOFA depois de assinado?... como se isso tivesse alguma importância por aí além. Logo a seguir aparece o ministro dos Negócios Estrangeiros, a desmentir o Presidente da República, numa espécie dos jogos de esconde-esconde com coisas do Estado.

Ora, o SOFA é um assunto que fere a Constituição da República, belisca a soberania do Estado, mexe com a estruturação das relações diplomáticas de Cabo Verde, pelo que exige uma outra abordagem e um outro tratamento dos poderes públicos e seus representantes, e de todos os cabo-verdianos.

De modo que, nesta altura do campeonato, trazer a marginal e insignificante data da assinatura do SOFA para o debate público, na esteira de quem esteja ou não a falar a verdade, é tratar a nação de otária e desatenta.

Não! O SOFA é um assunto do Estado. Já está assinado. Quando? Não interessa. O que interessa aqui é saber se ele, o SOFA, vai ser promulgado ou não. Se é inconstitucional ou não. Se é uma forma disfarçada de autorizar uma base militar no país ou não. Se faz sentido as preocupações levantadas pela oposição e por uma vasta gama de pessoas da sociedade civil cabo-verdiana ou não. Se estamos sendo vendidos por trinta dinheiros ou não…

São estas as questões pertinentes e que devem ser equacionadas para a satisfação colectiva! Centremos, pois, naquilo que é essencial, porque, ao contrário do que convém aos actuais autores dos destinos destas ilhas, esta nação não é trouxa!

A direcção,

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Redação