• Praia
  • 29℃ Praia, Cabo Verde
Acordo SOFA e soberania nacional
Editorial

Acordo SOFA e soberania nacional

Cabo Verde sempre teve boas relações com o mundo. Este é um legado nacional do Amílcar Cabral, um líder que se movimentava muito bem no campo diplomático, uma das suas primeiras vitórias na luta pela independência da Guiné Bissau e Cabo Verde.

Este legado, esta capacidade de dialogar com todos, de ser solidário, amigo, sem cair na vulgaridade e no descrédito, é seguramente a base onde se encontram assentados os fundamentos do sucesso deste país, arquipelágico, diminuto, com um mercado exíguo, perdido em pleno oceano atlântico, porém voz que sempre tem estado entre os grandes. Um país que é ouvido, porque é chamado a falar. Um país que é escutado, porque o que diz é importante para a estabilidade das sociedades, das políticas e das relações internacionais.

Ora, este legado, esta identidade nacional, conquistada com muito suor, muito trabalho, e até com sangue, ou seja, com a vida, é um dos recursos intangíveis mais importantes do nosso país, uma riqueza nacional que deve ser trabalhada, dilapidada com cuidado, como se fosse um minério raro, ou um metal precioso.

Porém, certos negócios do Estado, certos acordos assumidos pelos gestores do Estado, no caso, pelo Governo, estão a prejudicar o país, as conquistas conseguidas, e a visão do futuro.

O acordo SOFA, em vias de ser concretizado com os Estados Unidos da América, é um documento de lesa pátria. É algo que põe em causa a soberania nacional e fere a autoestima da nação cabo-verdiana.

Estamos, sim senhor, na pobreza. O país enfrenta muitos desafios. Precisamos de outros países para empreendermos grande parte do nosso programa de desenvolvimento, sim, mas, meus amigos, a dignidade do povo cabo-verdiano está, e deve continuar, acima de qualquer desafio, seja poder, dinheiro, influência, domínio.

A soberania nacional e a dignidade do cabo-verdiano não têm preço, não podem ser objecto de negociação ou de troca. Cabo Verde, enquanto Estado e nação, está proibido de negociar a soberania nacional. Nenhum Governo, nenhuma maioria, goza deste poder em Cabo Verde. Porque a Constituição da República não permite. Ao votar, o cabo-verdiano outorga poderes a um grupo de pessoas para legislar e gerir os recursos públicos, mas este poder é limitado quando os interesses supremos do país estão em causa.

Com efeito, a partir do SOFA, os Estados Unidos de América passarão a ter poder político, administrativo e judicial em Cabo Verde e isto belisca a soberania nacional em todos os sentidos.

Atentemos, pois, no que está escrito no artigo 3 do referido acordo, passamos a citar: “1. Ao pessoal dos Estados Unidos são concedidos privilégios, isenções e imunidades equivalentes aos do pessoal administrativo e técnico de uma missão diplomática, nos termos da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 18 de Abril de 1961. 2. Cabo Verde reconhece a especial importância do controlo disciplinar exercido pelas autoridades das Forças Armadas dos Estados Unidos sobre o pessoal dos Estados Unidos e, em conformidade, autoriza os Estados Unidos a exercer jurisdição penal sobre o pessoal dos Estados Unidos durante a sua permanência no território da República de Cabo Verde. 3. Se Cabo Verde o solicitar, os Estados Unidos informarão Cabo Verde sobre o estado de quaisquer processos penais relativos a infracções alegadamente cometidas no território da República de Cabo Verde por pessoal dos Estados Unidos que envolvam cidadãos cabo-verdianos, incluindo sobre a decisão final das investigações ou da ação penal, em conformidade com a legislação e a política dos Estados Unidos. Se solicitado, os Estados Unidos envidarão esforços para permitir e facilitar a comparência e observação de representantes de Cabo Verde durante tais processos. 4. Os Estados Unidos envidarão esforços para facilitar a participação de vítimas e testemunhas cabo-verdianas em processos judiciais, conforme solicitado pelo tribunal, em conformidade com as leis e regulamentos dos Estados Unidos, incluindo o Código Uniforme de Justiça Militar e os regulamentos do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. 5. A bem da justiça, as Partes prestar-se-ão assistência mútua na investigação de incidentes, incluindo a recolha e apresentação de provas. Na investigação de infracções, as autoridades dos Estados Unidos terão em conta quaisquer relatórios de investigações realizadas pelas autoridades de Cabo Verde.” 

O Governo de Cabo Verde abriu definitivamente as pernas perante uma potência estrangeira, e isto deve ser obejcto de avaliação e análise de todos os cabo-verdianos.

Prestemos atenção ao que estabelece do artigo 10 do mesmo acordo: “1. O Departamento de Defesa dos Estados Unidos pode proceder à contratação de quaisquer materiais, mantimentos, equipamento e serviços (incluindo de construção) a fornecer ou empreender no território da República de Cabo Verde, sem qualquer restrição no que diz respeito à escolha de contratante, fornecedor ou pessoa que proveja tais materiais, mantimentos, equipamento ou serviços. Os referidos contratos serão solicitados, adjudicados e administrados em conformidade com a legislação e regulamentação dos Estados Unidos. 2. A aquisição de bens e serviços no território da República de Cabo Verde, pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos ou em seu nome, no âmbito de atividades abrangidas pelo presente Acordo, não está sujeita a quaisquer impostos ou outros tributos aplicáveis no território da República de Cabo Verde. 3. Os contratantes dos Estados Unidos não são responsáveis pelo pagamento de quaisquer impostos ou outros tributos aplicáveis no território da República de Cabo Verde, no âmbito de atividades ao abrigo do presente Acordo. Os referidos contratantes podem importar, exportar e utilizar no território da República de Cabo Verde qualquer bem pessoal, equipamento, mantimento, material, tecnologia ou serviços no âmbito do cumprimento de contratos com o Departamento de Defesa dos Estados Unidos relativamente a atividades abrangidas por este Acordo. As referidas importação, exportação e utilização são isentas de qualquer licença ou outras restrições e de direitos aduaneiros, impostos ou quaisquer outros tributos aplicáveis no território da República de Cabo Verde. 4. O equipamento importado por contratantes dos Estados Unidos ao abrigo deste Artigo não pode ser vendido ou transferido de qualquer outra forma, no território da República de Cabo Verde, a pessoas não autorizadas a importar tais bens com isenção de direitos, a não ser que essa transferência seja devidamente autorizada pelas autoridades cabo-verdianas competentes. 5. Aos contratantes dos Estados Unidos deve ser concedido um tratamento semelhante ao do pessoal dos Estados Unidos no que diz respeito a licenças profissionais e cartas de condução.”

Será que estamos entregues ao bicho? Ou a administração do Estado transformou-se em negócios das feiras?

A direcção,

Partilhe esta notícia

SOBRE O AUTOR

Redação