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Uma poética subversão (ou a liberdade livre da poesia)
Cultura

Uma poética subversão (ou a liberdade livre da poesia)

Vou regularmente a Cabo Verde, tendo uma dessas idas coincidido com as celebrações do 40º aniversário da independência nacional. Na noite de 5 de julho passei por uma discoteca para um pé de dança. À meia-noite, patrioticamente, o DJ colocou a tocar o hino nacional e pediu à assistência que acompanhasse. Embora houvesse ali pessoas de diferentes faixas etárias, dos 20 aos 50, quase ninguém acompanhou o hino nacional. Supus que por desconhecimento.

 No dia seguinte, 5 de julho, eu e o Benjamim, dono do conhecido restaurante Vulcão, na Cova da Moura, Amadora, fomos buscar um amigo nosso, o Mário (Cocorota) Andrade, à ADVIC, na Achada de S. Filipe (o nosso amigo teve o infortúnio de ter ficado cego, devido a uma retinopatia diabética), não só pela data em si, mas porque aquela seria a última noite que ele passaria na ADVIC, que iria encerrar por falta de apoios. Tendo-se-nos juntado o meu amigo e advogado Domingos Garcia Gomes e o compositor Daniel (Lorde) Rendall, após o almoço seguimos para o hotel Rotterdam, onde passaríamos a tarde em tocatinas e cervejas. Ouvindo o hino nacional entoado nas cerimónias oficiais da Assembleia Nacional, para as quais fora convidada uma chusma de vacuidades enfatuadas, e não Daniel Rendall, autor do histórico Cabral ka more e do arrepiante Nhu Santiago, apercebi-me que nenhum de nós naquela mesa conhecia a letra do hino nacional. Porque seria?

 Entretanto, não mais voltei a pensar no assunto, até que certo dia, já em lisboa, escutei dois patrícios discutindo a questão do hino nacional, afiançando um deles que era ainda o Sol, suor verde o mar, e o outro que seria do Zezé di Nha Reinalda. Eu que desconhecia, até então, a letra do hino nacional, fui indagar. Não vi referência ao autor da letra nem da música (o que tornava minha apreciação impessoal), mas a letra que eu vira deixara-me, enquanto poeta (e com o devido respeito para com quem o escrevera, e que terá posto nela o melhor do seu saber e engenho), a magicar se não se podia ter ido um pouco mais além. Entretanto, através duma reportagem do jornal Expresso das Ilhas, fiquei a par de certas envolvências do concurso, sendo que nele teria participado o nosso amado Conde, Arménio Vieira. Se é certo que nem Camões ou Fernando Pessoa, Shakespeare ou Walt Whitman são autores das letras dos hinos dos respectivos países, começou a fermentar em mim esta pergunta: e se me pedissem para escrever a letra do hino de Cabo Verde?

 Diga-se aqui, para acalmar alguns espíritos incendiados pela partidarite aguda, imbuídos da nostalgia dos bons velhos tempos, ou, em contraposição, ciosos de um presente que se quer, axiologicamente, resgatador, que não se trata de contrapor o havido ao actual, nem propor uma versão quiçá mais pregnante, mas apenas uma poética subversão, pois que apenas ela abre ao humano, através das potencialidades que lhe são próprias, o mundo infindo de possibilidades a actualizar na vivida dimensão da existência.

 O exercício que se segue é, pois, pura poesia, e nada mais do que isso. Sendo as letras dos hinos nacionais normalmente curtas, para poderem ser facilmente memorizadas, seguem o poema e duas versões possíveis. Desfrutai deles em liberdade, conquista deste sofrido povo desde os primórdios à actualidade, mesmo se na sadia contraposição das diferentes narrativas político-ideológicas.

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Redação