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Nhu Mar
Elas

Nhu Mar

Nhu Mar vivia numa grande cidade cheia de água e era muito feliz com sua mulher Encantada. Tinha muitos filhos, Nha Encantada, e estava sempre em casa a lavar, a passar, e a fazer filhoses de farinha de milho com banana maçã, que guardava em grandes bidões fechados. No dia 30 de cada mês, ela abria os bidões e distribuía comida para toda a criançada, por mor de uma promessa feita desde os tempos da sua Mãe Vieira.

Nada de mal se podia dizer sobre aquela família. Trabalhador e cheio de haveres era Nhu Mar, só que às vezes era bravo e às vezes era manso. Um dia estava o Mar assim calmo e ouviu soluços vindos do longe da Terra. Era ainda no tempo em que a Terra e Nha Encantada nem se conheciam. Nha Encantada era mulher bonita e de tudo fazia para ficar sempre jovem e bela. Seus cabelos cheiravam ao perfume da flor e, quando os penteava, saíam rosas de todas as cores. Seus dentes de marfim tinham o sorriso mais branco que alguém já vira e suas mãos macias teciam o linho para o berço dos seus filhos. E dos filhos dos seus filhos.

De seus olhos, só se falava, mas nunca ninguém tinha visto.

- Só tenho olhos para ti – dizia ela para Nhu Mar, seu amor.

E assim Pitxula e Lacinho queriam saber qual era a resposta de Nhu Mar. Pai Pedro dizia, interrompendo a história:

- Longa-me uma caneca de água fria do pote, para ver se tens mão doce.

E era aí que as crianças corriam a ver quem chegava primeiro ao pote, para trazer água para Nhu Pedro…

- Ih, forte água sabe e fria. Passaste açúcar na mão, Lacinho?

E todos queriam levar a caneca de volta ao pote enterrado na areia.

- Sim senhora, _ Papai continuava:

Nha Encantada era mulher que quando ria o Sol saía, quando chorava, a Chuva caía. Seus cabelos não precisavam de lenço e sua cintura não precisava de pano. Nem seu pescoço, sequer, precisava de contas. Mas ela usava, assim mesmo, missangas em cores, porque era vaidosa e queria prender, sempre nela, os olhos de seu Marido. Quando cantava, acalmava Nhu Mar. Seu lençol era feito da luz da Lua. Depois de lavado, estendia-o pelas sete repartições do mundo, ajudada pelos quatro filhos mais velhos: O Topo da Coroa, as Dunas de Boa Vista, o Pico do Fogo e o Monte Pico Dantónia. Em baixo desse lençol, fazia dormir todos os filhos de parida.

Quando Nhu Mar ouviu os gemidos, ficou perturbado. E depois encantado. E depois curioso. Mas gemidos eram de dor. Então, justo como era Nhu Mar, homem que ninguém viu algum dia fazer mal a um mais fraco, de curioso, ficou furioso. E seguiu aquela voz suave e quente.

Para não acordar sua mulher, abriu uma porta pequena e seguiu a enseada. Até chegar à Terra.

Caminho ficou aberto para o Mar voltar. Mas chegado lá, dormiu um profundo sono e nunca mais acordou. Nunca Mais, para Nha Encantada, era uma noite só. Procurou, procurou, toda a noite o seu amor, e nunca mais o viu. Escreveu ela então uma carta para o Rei dos Reis e se queixou da saudade de Nhu Mar. Disse que a falta dela era tão grande, e a sua dor tão profunda, e sua tristeza tão sem fim que, para ter fim, é só de vista-a-vista.

Por isso, o Rei dos Reis achou que aquilo não estava certo e que ninguém deve agir assim com sua própria mulher. Mandou chamar Nhu Mar. Mas Nhu Mar dormia só e, quando acordava, chamava de “minha mulher” a Terra. Vai ver que esqueceu por completo de Encantada.

- Que fazer?

Mandou Miguel, o Arcanjo, cuidar daquele assunto. Pediu que, justiceiro como era, descobrisse a melhor maneira de proteger aquela gente e fazer uma proposta sobre como cuidar das duas famílias. Lembrasse o Miguel que a Ilha, filha da Terra com o Mar, não tinha culpa de nada. Fossem todos protegidos das malícias e ciladas do Demónio.

Trouxe Miguel, o Arcanjo, sua lança de combate e sua balança de justiça.

E foi assim que, pela primeira vez, foi usada a enseada que o Mar abriu para a Terra e que da Terra se vê o Horizonte. E foi assim que, por ser a enseada pequena, se chamou Calheta. E Calheta, até hoje, é de São Miguel, porque já foi dito. Pois que ainda ontem por lá passei e Calheta continua lá: na Ilha de Santiago, filha de Nhu Mar e Nha Terra, abrindo caminho na Praia dos Amores.

- São 10 para a uma. Olhem o Professor na Passadeira a subir aí perto da Farmácia! Disse Mamãe Velha.

E assim Papai voltava para a sua rede. Lacinho e Pitxula corriam disparado para a Escola Nova. Papai Pedro não usava relógio.

- Sapatinha Ribeira Ariba, Sapatinha Ribeira Abaixo. Quem souber mais, que conte melhor. O mais pequenote que corra rápido para apanhar o saco de dinheiro, que está quase entrando em Flamengos.

Contextualização da autora

O Conto “Nhu Mar” faz parte da colectânea de contos infantis do livro Camões Crioulo, que reúne contos sobre todas as ilhas de Cabo Verde e de cabo-verdianos na diáspora, por isso 11 contos (a 11ª ilha). A colectânea completa de Mana Guta está ainda no prelo e dela fazem parte também o conto “O Sr. Araújo” (Menção Honrosa do Prémio Matilde Rosa Araújo) e as personagens Netinha Sabida e seu irmão Camões Codê (personagens da primeira obra, 2014, que agora aparecem, já crescidos, como narradores dos diferentes contos).

Entretanto, este ano, e em colaboração com a Associação de Escuteiros de Cabo Verde, foi publicada a versão áudio de “Nhu Mar”, em co-autoria com outros escritores infanto-juvenis de Cabo Verde e não só, uma colectânea em áudio-livro de nome Ouvir o livro, projeto dedicado a crianças invisuais e distribuído gratuitamente às associações e outras ONG que trabalham com crianças que têm necessidades especiais.

Autorizo a publicação impressa a Santiago Magazine, em texto escrito, e desta autorização darei conhecimento à Associação Cabo-verdiana de Escritores e da Sociedade Cabo-verdiana de Autores (SOCA), das quais sou membro.

Praia, 28 de Setembro de 2017

Mana Guta

Maria Augusta Évora Tavares Teixeira

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SOBRE O AUTOR

Redação