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Uma brevíssima biografia político-ideológica do maior morto imortal da Guiné e de Cabo Verde - Terceira Parte
Cultura

Uma brevíssima biografia político-ideológica do maior morto imortal da Guiné e de Cabo Verde - Terceira Parte

JORNADAS DE HOMENAGEM A AMÍLCAR LOPES CABRAL (TAMBÉM FESTEJADO COMO ABEL DJASSI) E DE CELEBRAÇÃO DA AMIZADE ENTRE OS POVOS DE CABO VERDE E DA GUINÉ-BISSAU POR OCASIÃO DA COMEMORAÇÃO DO 97º ANIVERSÁRIO NATALÍCIO DO MORTO IMORTAL, HERÓI DO POVO, PAI DAS INDEPENDÊNCIAS E FUNDADOR DAS NACIONALIDADES - ENQUANTO COMUNIDADES POLÍTICAS NACIONAIS INDEPENDENTES E SOBERANAS- DA GUINÉ-BISSAU E DE CABO VERDE CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A VIDA E A OBRA DO REVOLUCIONÁRIO CABOVERDIANO-GUINEENSE AMÍLCAR LOPES CABRAL OU UMA BREVÍSSIMA BIOGRAFIA POLÍTICO-IDEOLÓGICA DO MAIOR MORTO IMORTAL DA GUINÉ E DE CABO VERDE

TERCEIRA PARTE

3. Fundamental no período inicial da década de sessenta do século passado, e indiciador do princípio do fim do colonialismo português, foi a denúncia do que Amílcar Cabral denominou o muro de silêncio erigido à volta desse mesmo colonialismo e que o vinha envolvendo na aura de uma falsa harmonia social e racial entre colonizadores e colonizados e o cobrindo com um manto de impunidade e condescendência por parte de outros países, primacialmente europeus e latino-americanos, mas também por parte de alguns países africanos recém-independentes.

Apoiado política e logisticamente pelo jornalista britânico Basil Davidson, um convicto anti-colonialista e anti-imperialista, de há muito seriamente solidário com as justas causas nacionalistas e progressistas propugnadas pelos movimentos de libertação nacional africanos das colónias/províncias ultramarinas portuguesas, e acompanhado por Aristides Pereira (na ocasião, adoptando um pseudónimo/nome de guerra, de ressonância tipicamente negro-africana) e do amigo de longa data, companheiro de luta e camarada angolano Mário Pinto de Andrade, Amílcar Cabral abandona a capital do império, onde até então residia, sai definitivamente da clandestinidade política e assume as vestes de Abel Djassi para, no texto/declaração A Verdade sobre as Colónias de Portugal (Facts about the Portuguese Colonies), desmistificar, desmontar e desmascarar todo o aparato de dominação colonial portuguesa, logrando fissurá-lo e, finalmente, demoli-lo em todas as suas multímodas dimensões, designadamente as relativas ao enquadramento jurídico-administrativo das colónias portuguesas como supostas províncias ultramarinas de Portugal; as respeitantes à iníqua diferenciação entre assimilados e indígenas e ao seu despojamento de cidadania plena e/ou dos mais elementares direitos pessoais e cívico-políticos; as concernentes à perpetuação do trabalho escravo e de outras gritantes injustiças sob a forma de trabalhos forçados, das culturas forçadas e dos castigos corporais; as relativas à falácia da alegada cidadania portuguesa dos caboverdianos e de outros supostos favorecidos com o estatuto de assimilados e de detentores formais da cidadania portuguesa e o secular abandono do seu arquipélago natal à sua sorte madrasta pelo poder colonial mediante a sua impune exposição e a sua contínua fustigação pelas estiagens cíclicas, pelas periódicas mortandades pelas grandes fomes, pela degradação da sua população à condição de mão-de-obra barata e ao trabalho semi-escravo e serviçal nas plantações coloniais de Angola e de São Tomé e Príncipe; etc..

Deste modo, comprova-se Amílcar Cabral mais uma vez como um arguto, profundo e muito informado e esclarecido conhecedor dos mecanismos de dominação e dos aparelhos e aparatos de opressão engendrados e utilizados pelo poder colonial-fascista português, deste modo também desfazendo os argumentos colhidos no uso que alguns doutrinadores do colonial-fascismo faziam do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre (aliás, ele próprio ostensivamente instrumentalizado nas viagens que fez a diversas colónias/províncias ultramarinas portuguesas, incluindo Cabo Verde, e plasmadas em várias obras de teor apologético), para branquear, sacralizar e tentar perpetuar o império colonial português, por demais caduco e obsoleto nesses anos sessenta de generalizada e inevitável descolonização política dos países afro-asiáticos por parte das demais potências coloniais europeias. Ressalve-se todavia que nos sentimos mais próximos de Gilberto Freyre quando, em relação a Cabo Verde, escreve que as elites caboverdianas da altura padeceriam de complexos de inferioridade cultural em relação às culturas europeias quando se propõem renegar os elementos afro-negros da cultura caboverdiana de feição mestiça afro-latina, concluindo que é a cultura portugusa que, na verdade, se encontrava em diluição no seio da grande maioria da população caboverdiana, perpassando a mesma cultura portuguesa apenas alguns elementos identitários das elites islenhas e os ritos oficiais da administração pública portuguesa nas ilhas caboverdianas.

Por conseguinte, consideramo-nos muito mais distantes e, por isso, demarcamo-nos firmemente de alguns posicionamentos culturalistas do insigne intelectual caboverdiano Baltasar Lopes da Silva que, na sua resposta ao eminente mestre brasileiro constante do ensaio da sua lavra intitulado Cabo Verde visto por Gilberto Freyre, constata e propugna sem pejo nenhum uma suposta diluição de África na cultura caboverdiana, com flagrante excepção do interior rural da ilha de Santiago. Com efeito, e muito influenciado pelo brasileiro Artur Ramos, argumenta o intelectual claridoso que, por alegadamente se encontrar numa fase mais atrasada de aculturação à cultura portuguesa, nomeadamente a fase de adaptação, sendo, relembre-se, três essas fases consecutivas, designadamente, de reacção (ou resistência), de adaptação e de assimilação, a ilha de Santiago não ser detentora de uma identidade crioula plena. É exactamente por considerar que a ilha de Santiago se encontrava supostamente numa fase mais atrasada de aculturação à cultura portuguesa e não poder, por isso, ser considerada plenamente crioula (daí advindo o conhecido qualificativo, equiparável, então e agora, a um verdadeiro anátema, de ilha mais africana de Cabo Verde) que o estudioso e romancista claridoso afirma que a mesma ilha de Santiago só podia ser qualificada como uma verdadeira ilha sociológica no todo arquipelágico crioulo caboverdiano, ignorando certamente que, para além de ser a ilha mais negra de Cabo Verde, Santiago é também a ilha caboverdiana mais diversa do ponto de vista cultural e a mais castiçamente crioula, sendo ela ademais a ilha-matriz da caboverdianidade e na qual nasceram e germinaram a cultura crioula caboverdiana e a sua expressão mais icónica e importante que é o nosso idioma crioulo ou, como se diz mais hodiernamente e com maior exactidão, a lingua caboverdiana ou língua materna dos caboverdianos.

Por isso, e por outro lado, é que subscrevemos por inteiro a intransigente e firme defesa do idioma crioulo das ilhas feita por Baltasar Lopes da Silva e constante do ensaio acima referido, face às tentativas de Gilberto Freyre de minorizar e desqualificar a língua materna caboverdiana, à semelhança, aliás, de outros benditos iluminados oriundos de países forjados na economia colonial-.escravocrata e que, por vicissitudes várias, viram os respectivos crioulos desaparecerem nas brumas dos tempos pós-coloniais em razão da respectiva ascensão à independência política ainda no século XIX, como foram os casos, por exemplo, do Brasil e de Cuba.

4. É a metodologia anteriormente referida, de denúncia sistemática e de infrene, implacável e impiedosa desmistificação do caduco e obsoleto sistema de dominação e de opressão implantado pelo colonialismo português nas suas supostas províncias ultramarinas, que faz Amílcar Cabral comparecer perante diferentes ágoras e fóruns internacionais, com destaque para aqueles ligados à ONU (Organização das Nações Unidas), ao Movimento dos Não-Alinhados e à OUA (Organização da Unidade Africana), mas também nunca descurando aqueles conclaves destinados à concertação entre os movimentos de libertação nacional das colónias portuguesas, doravante congregados no seio da CONCP, e aqueloutros concebidos e concretizados para a angariação de apoios e de solidariedade com esses mesmos movimentos de libertação nacional e sediados primacialmente nos países ocidentais, cujos governos eram na sua maioria aliados seguros e indefectíveis do colonialismo português e de regimes opressivos similares, como o regime racista do apartheid da África do Sul, da Rodésia e do Sudoeste Africano bem como o regime sionista e anexionista de Israel.

É precisamente perante as Nações Unidas que, em 1962, Amílcar Cabral se assume como um soldado anónimo da ONU, com essa feliz e assertiva expressão querendo significar não só a assunção pelo movimento de libertação binacional que, naquela altura e conjuntamente com Dulce Almada Duarte, representava, das mais recentes, inequívocas, consequentes e contundentes Resoluções da ONU relativas à urgente necessidade do exercício por parte de todos os povos coloniais do seu inalienável e imprescritível direito à autodeterminação e à independência, mas também da assunção plena e incondicional por parte desse mesmo movimento de libertação (bi)nacional da dignidade da pessoa humana e dos seus inalienáveis e indivisíveis direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o que também implicava para os Povos da Guiné e de Cabo Verde e para os cidadãos dos seus futuros Estados independentes e soberanos o radical corte com o assimilacionismo eurocêntrico, paternalista, racista e colonialista para plenamente se identificarem como Africanos da Guiné e de Cabo Verde, independentemente da cor da sua epiderme, da sua raça, do seu grau de instrução escolar, do seu nível cultural, da sua categoria social, da sua identidade nacional e da sua pertença étnico-cultural e linguística.

Amílcar Cabral compareceria de novo, em 1972, perante o Conselho de Segurança da ONU reunido em Dar-es-Salam, capital da República Unida da Tanzânia, para dar conta às Nações Unidas das importantes e irreversóiveis conquistas obtidas pelos Povos da Guiné e de Cabo Verde nas frentes da luta politico-armada na Guiné-Bissau e da reconstrução nacional das suas zonas libertadas com a importante ajuda dos países aliados e amigos, com destaque para os países escandinavos, de entre os quais merece especial menção a Suécia, cujo Primeiro-Ministro, Olof Palme, tornou-se um amigo pessoal indefectível de Amílcar Cabral. As conquistas do PAIGC na Guiné dita Portuguesa valer-lhe-iam o reconhecimento como único e legítimo representante do povo dessa colónia/provincial ultramarina portuguesa e a consequente atribuição do estatuto de observador na ONU e nas suas organizações especializadas, deste modo prenunciando um generalizado reconhecimento da República da Guiné-Bissau a ser proclamada no ano seguinte, conforme os planos de Amílcar Cabral anunciados nessa ocasião.

Relembre-se neste contexto que anteriormente tinha ocorrido um importante e inaudito feito político-diplomático dos movimentos de libertação nacional africanos das colónias/províncias ultramarinas portuguesas e que consistiu no facto de os seus altos dirigentes Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos terem sido recebidos em 1970 em audiência informal pelo Papa Paulo VI, numa atitude sem precedentes e que muito contribuiu para o isolamento do Governo português na arena internacional, circunstância tanto mais relevante tendo em conta que a esmagadora maioria do povo português professava a fé católica apostólica romana, pretendendo a hierarquia da Igreja Católica Portuguesa ademais ser um pilar da civilização cristã e ocidental em África de que o colonial-fascismo português seria um indispensável baluarte.

5. Assaz simbólica e auspiciosa é a Mensagem de Ano Novo de Amílcar Cabral, de 1973, considerada o seu Testamento Político, por ter sido a última deste género e teor por ele lida, no dia 1 de Janeiro de 1973, aos microfones da Rádio Libertação, voz do movimento de libertação nacional dos Povos em luta da Guiné e de Cabo Verde, pois que nela se antevê como inevitável a proclamação unilateral do Estado independente e soberano da Guiné-Bissau por uma Assembleia Nacional Popular resultante de eleições por cidadãos bissau-guineenses, incluindo os dirigentes e combatentes da Guiné e de Cabo Verde radicados nas várias frentes de luta armada, logística e político-diplomática, devendo a mesma Assembleia Nacional Popular ser munida e titulada de poderes soberanos e constituintes para, chegado a curto prazo o tempo propício, proceder ao seguinte:


i. Proclamar a existência, de jure e de facto, nas zonas libertadas da Guiné-Bissau que então perfaziam mais de metade, quiçá mais de dois terços, do território da antiga Guiné dita Portuguesa, de um Estado de posse de todos os atributos administrativos, económicos, sociais, culturais e identitários da soberania política e territorial para servir a população que justificava a sua existência, e, assim, deste modo inédito pensado originalmente por Amílcar Cabral, proporcionar uma radical mudança no estatuto da nação africana forjada numa gloriosa e duradoura luta político-armada de libertação nacional e social, mediante a sua transmutação jurídico-constitucional da colónia/província ultramarina da Guiné dita Portuguesa para um Estado independente e soberano consubstanciado na República da Guiné-Bissau, Estado independente e soberano plenamente legitimado para fazer a sua entrada no concerto das nações africanas livres e independentes representado pela Organização da Unidade Africana (OUA), no Movimento dos Não-Alinhados e na Organização das Nações Unidas (ONU) e nas suas Organizações Especializadas, ainda que tendo uma pequena parte do seu território nacional, incluindo a cidade-capital Bissau e a totalidade das cidades e vilas, ainda ocupado por forças agressoras estrangeiras de feição e intenção abertamente colonialistas e reconquistadoras.

ii. Dotar esse mesmo Estado dos poderes necessários e suficientes para, em conformidade com os princípios e os objectivos do partido-movimento que dirigiu e continuava a dirigir o processo de construção e de emancipação total da nação africana forjada na luta, adoptar a sua Constituição Política e exercer de forma plena a soberania nacional e internacional do povo bissau-guineense constituído “numa República progressista, laica, anti-colonialista, anti-neocolonialista e anti-imperialista”, firmemente comprometida com a libertação total dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde do jugo colonial, aliada fraternal e solidamente aos movimentos de libertação nacional progressistas das demais colónias portuguesas e solidária com a luta dos povos africanos e dos povos de todo o mundo contra todas as formas de opressão e dominação estrangeira, antevendo-se o mesmo ou, pelo menos, idêntico perfil político-constitucional para o futuro Estado independente e soberano de Cabo Verde.

A profecia cabraliana, devidamente ancorada e alicerçada em factos irrefutáveis, comprovados e testemunhados por observadores de vários quadrantes políticos internacionais, incluindo da própria Organização das Nacões Unidas (ONU), e colhidos da luta tenaz e heróica, cada vez mais assumida como inelutavelmente vitoriosa, ainda que travada sob as repressivas condições e as muito severas e arriscadas vestes da clandestinidade política nos meios urbanos e em outras zonas bissau-guineenses ainda sob ocupação militar estrangeira e nas ilhas caboverdianas ainda sujeitas na sua totalidade à subjugação colonial portuguesa, viria a consubstanciar-se efectivamente:

i.Na República da Guiné-Bissau, proclamada unilateralmente a 24 de Setembro de 1973, e imediatamente reconhecida por dezenas de países, propiciando assim a sua admissão triunfal na ONU e nas Organizações Especializadas das Nações Unidas, ocorrendo todavia o reconhecimento pela potência colonial portuguesa somente a 10 de Setembro de 1974, no período imediatamente posterior ao golpe de Estado do 25 de Abril de 1974 e depois de devidamente neutralizada e vencida a resistência de alguns círculos spinolistas, luso-federalistas, colonial-saudosistas e colonial-revanchistas, devendo, por outro lado, o reconhecimento da República da Guiné-Bissau por parte de Portugal ser considerado como o resultado mais tangível das negociações de Londres e Argel em cumprimento do correlativo Acordo de Argel celebrado entre o Governo Português e o PAIGC, sem todavia minimizar e descurar um outro importante resultado do consenso então obtido em volta de um dos pontos mais controversos e espinhosos das negociações que conduziram à conclusão do mesmo Acordo de Argel e que foi o inequívoco reconhecimento por parte do Governo Português do inalienável direito do Povo de Cabo Verde à autodeterminação e à independência, o que, aliás, tinha sido reiterado de forma firme pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Março de 1974, na sequência da comunicação apresentada perante a mesma por Abílio Duarte, em representação do PAIGC, já então reconhecido por essa mesma alta instância internacional como o único e legítimo representante do Povo de Cabo Verde.

II. Na República de Cabo Verde, proclamada perante o povo caboverdiano, perante a África e perante o Mundo a 5 de Julho-nosso ourgulho- de 1975, no Estádio da Várzea, da Cidade da Praia, por uma Assembleia Nacional Popular resultante de eleições legislativas realizadas a 30 de Junho de 1975, em conformidade, aliás, com o estipulado no Acordo de Transição para a Independência Política de Cabo Verde celebrado entre o Governo Português e o PAIGC em Lisboa, a 19 de Dezembro de 1974, e a subsequente Lei Eleitoral oportuna e tempestivamente aprovada pelos órgãos competentes da potência colonial/administrante portuguesa.

 

/José Luís Hopffer Almada/

Membro-fundador e membro efectivo (correspondente)

da Academia Cabo-Verdiana de Letras (ACL)

 e da Associação de Escritores Cabo-Verdianos (AEC)       

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