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Operação Voo da Águia – oitava e última parte
Cultura

Operação Voo da Águia – oitava e última parte

XXXVIII CENA (continuação)

DROGANESA – O advogado deixou-me o número do telemóvel de um recluso, o Pepsicola, para eu falar com Moringo.

PROCURADOR – Chegou a telefonar-lhe?

DROGANESA – Não cheguei a telefonar. Um dia, um guarda emprestou-me o seu telemóvel, mandei uma mensagem a Pepsicola e Moringo telefonou-me.

PROCURADOR – O que é que ele lhe disse?

DROGANESA – Que não acreditava que eu seria capaz de o denunciar.

PROCURADOR – E o que é que lhe disse a ele?

DROGANESA – Eu disse-lhe que falei verdade e ele perguntou-me se não ia negar. Que me dava aquele valor que o advogado me tinha dito. Que ficaria fatela se não fosse negar.

PROCURADOR – Como é que lhe respondeu?

DROGANESA – Que se me desse dinheiro poderia fazer um jeito.

PROCURADOR – Ele chegou a dar-lhe?

DROGANESA – Não. Perdi o número do Pepsicola e, entretanto, ele veio a sair da cadeia. Um mês e tal depois ouvi dizer que lhe deram dinheiro para me trazer e que se apossou dele.

PROCURADOR – Se tivesse recebido o dinheiro iria retirar as suas declarações?

DROGANESA – Nunca. Eu queria era pegar o dinheiro na mão, mas negar o que disse… nunca.

PROCURADOR – Tem algo mais a acrescentar?

DROGANESA – Já que estou a dizer, vou dizer tudo. O advogado Funça estava conluiado com Djondjon e Moringo para fazerem fugir aqueles estrangeiros da cadeia, por dez mil contos.

PROCURADOR – Muito obrigado.

JUIZ – A testemunha pode sentar-se. Sr. Moringo faça favor de se levantar.

  1. FUNÇA (nervoso) – Meritíssimo, não me é permitido defender a minha honra?

JUIZ – Depois terá direito à palavra e apresentará a sua defesa. (Para Moringo) O arguido confirma que foi namorado da testemunha?

MORINGO – Isso é verdade. Mas o resto é tudo mentira.

JUIZ – Nega que nunca fez nenhum tipo de proposta de negócio à sua ex-namorada, Droganesa Soares?

MORINGO – Nunca.

JUIZ – O ministério público pode fazer as perguntas.

PROCURADOR –Lembra-se de quando romperam relação?

MORINGO – Quando ela me roubou.

PROCURADOR – O que é que ela lhe roubou?

MORINGO – Dinheiro, roupa… uma data de coisas.

PROCURADOR – Só por isso, acabaram com a vossa relação?

MORINGO – Também reparei que ela não servia como mulher. Ela não tinha condições.

PROCURADOR – Porquê?

MORINGO – É mentirosa, ladra e má.

PROCURADOR – Por que é que diz isso agora?

MORINGO – Ela ficou grávida e pediu-me dinheiro para abortar. Como sou católico, pus-me no meu lugar e nunca mais falei com ela.

PROCURADOR – Ela aceitou o fim da relação?

MORINGO – Ela ficou a correr atrás de mim e eu evitava o quanto podia, para não me cruzar com ela. Mas ela me perseguia tanto, que mal soube que frequentava o LX, resolveu comprá-lo.

PROCURADOR – O senhor conhecia Lixívia, a aeromoça?

MORINGO – Não a conhecia. Nem aos outros que esta desgraçada está a dizer.

JUIZ – O arguido deve moderar a linguagem. Deve perceber que está num tribunal e não a fazer paródia num bar qualquer.

MORINGO – Desculpe-me.

PROCURADOR – Quer então dizer que não conhece ninguém envolvido neste processo?

MORINGO – Tengana e Djondjon eu conheço. Eu e Djondjon somos sócios de uma firma de construção civil.

PROCURADOR – Como é o nome da vossa firma?

MORINGO – «Mórings & Djóndjas, Lda.» Mas eu tenho mais duas que são só minhas. De exportação e importação.

PROCURADOR – Como é que conheceu Tengana?

MORINGO – Ele era polícia no aeroporto. Sempre que embarcava encontrava-o ali.

PROCURADOR – Conforme informações, você também é proprietário de alguns prédios na cidade da Praia.

MORINGO – Sim, senhor.

PROCURADOR – Também faz grandes movimentos bancários, entre levantamentos, transferências e compra de moedas estrangeiras.

MORINGO – Sim, senhor.

PROCURADOR – Podia dizer-nos como é que enriqueceu?

MORINGO – Do meu trabalho em Portugal como emigrante e com o dinheiro que pedi emprestado ao Banco aqui em Cabo Verde.

PROCURADOR – Quantos é que costuma pedir emprestado ao Banco?

MORINGO – Sete mil, dez mil, às vezes quinze mil contos.

PROCURADOR (para o juiz) – Está tudo, meritíssimo.

JUIZ – Muito obrigado. O arguido pode ir sentar-se. (Para Djondjon) Levante-se por favor. (Djondjon levanta-se) O arguido conhece a Sra. Droganesa?

DJONDJON – Já a vi algumas vezes.

JUIZ – Onde?

DJONDJON – Quando ela corria atrás do Moringo.

JUIZ – O ministério público pode conduzir o interrogatório.

PROCURADOR (para Djondjon) – O que é que o senhor tem a dizer sobre o que acabou de ouvir a testemunha dizer?

DJONDJON – Noventa e nove por cento do que ela disse não é verdade.

PROCURADOR – Nunca lhe entregou uma maleta com droga?

DJONDJON – A mim?! Credo em cruz!

  1. FUNÇA – Sr. Dr. juiz, para a descoberta da verdade, requeiro que mande fazer exame de impressões digitais às maletas que a testemunha disse ter entregado aos estrangeiros.

JUIZ – Requerimento indeferido.

  1. FUNÇA – Insisto, meritíssimo. Estamos perante dúvidas e, assim, será a melhor forma de as dissipar.

JUIZ – Para isso temos que mandar procurá-las até as localizar, não será fácil. Também esse tipo de exame não se faz cá em Cabo Verde. É preciso mandar fazê-lo no estrangeiro, faz atrasar o julgamento. Essas manobras dilatórias, constantemente invocadas pelas defesas, só contribuem para a prescrição do processo. As provas que já recolhemos são mais do que suficientes para chegarmos a uma conclusão.

  1. FUNÇA – Não concordo e vou recorrer.

JUIZ – Está no seu direito, se quiser recorrer. O arguido pode sentar-se. Sr. Naiss, levante-se por favor. (Naiss levanta-se) O senhor conhece essas pessoas que estão aqui a ser julgadas?

NAISS – Só conheço Djondjon e Moringo, porque trabalho com eles.

JUIZ – Que trabalho é que faz?

NAISS – Sou condutor da firma deles. Desde Portugal, onde também eles eram patrões, eu trabalhava nas obras deles como pedreiro.

JUIZ – E Tengana e Lixívia não os conhecia?

NAISS – O polícia costumo vê-lo no aeroporto; a aeromoça também já a vi por várias vezes no avião quando viajo, mas nunca falámos.

JUIZ – E a Droganesa? Também não a conhece?

NAISS – Nunca tinha visto esta rapariga com os meus olhos.

JUIZ – O ministério público pode fazer perguntas ao arguido.

PROCURADOR – Acho que está tudo esclarecido.

JUIZ – Pode sentar-se. Levante-se, se faz favor, senhor Tengana. (Tengana levanta-se) Conhece alguma das pessoas que está aqui a ser julgada?

TENGANA – À exceção da Lixívia, porque trabalhamos no mesmo aeroporto, os outros, tenho-os visto várias vezes quando passam pelo aeroporto em viagens.

PROCURADOR – O senhor nega ter recebido dinheiro para facilitar a passagem de droga na máquina de raio-X?

TENGANA – Comigo nunca isso aconteceu.

PROCURADOR – Então, como nos poderá explicar, a apreensão dos 60 e tal quilos de droga aos três estrangeiros?

TENGANA – Não sei. Há várias maneiras de isso acontecer, que talvez não consiga explicar.

PROCURADOR – Meritíssimo, uma vez que constatámos novos factos, com evidências de outras infrações, nos termos previstos no artigo 396º nº 1 do CPP, requeiro a reformulação da acusação dos arguidos Djondjon, Moringo e Lixívia.

  1. FUNÇA – Meritíssimo juiz, este artigo invocado pelo ministério público não tem enquadramento legal para efeito da reformulação de acusação. As provas produzidas relativamente à quantidade da droga e ao dinheiro pago, emanaram apenas do depoimento de uma única testemunha. Por esse facto, entendemos que o requerimento apresentado, baseado no artigo 396º nº 1 do CPP, não é digno e, como tal, não merece provimento.

PROCURADOR – Meritíssimo, face ainda as evidências irrefutáveis que no decorrer das sessões surgiram, a acusação constatou fortes indícios de que o causídico, Dr. Funça das Brumas, faz parte de uma rede internacional de tráfico de estupefacientes e de associação criminosa. Por isso, requer que extraia a certidão e constitua Funça das Brumas arguido, e o ouça em declarações, seguido de um mandado de busca ao seu escritório e residência. E, para que facilite as investigações e evite obstrução de provas, solicita que lhe seja decretada a prisão preventiva como medida de coação.

JUIZ – O arguido pode ir sentar-se. (Tengana vai sentar-se) Pela pertinência e fundamento da medida, dou provimento ao requerimento e, a partir deste momento, Funça das Brumas é considerado arguido, suspeito de prática de crime de tráfico de droga e de participação em associação criminosa, com planos para assaltar um estabelecimento prisional e libertar alguns reclusos.

  1. FUNÇA – Isto é ilegal.

JUIZ – E faça o favor de abandonar o lugar que vem ocupando como defensor. Vai sentar-se no banco dos arguidos.

  1. FUNÇA – Não presto declarações sem a presença de um advogado.

JUIZ – O tribunal nomeará um defensor oficioso para o assistir.

  1. FUNÇA – Não aceito porque a lei dá-me o direito de escolher um advogado da minha confiança.

JUIZ – Então vai ficar detido até à próxima sessão. Terá tempo de constituir um advogado. (Funça levanta-se, despe a toga e vai sentar-se junto com os outros arguidos) Nomeio defensor oficioso do arguido Funça das Brumas, o Dr. Fumaça. O ministério público pode fazer perguntas ao arguido Funça das Brumas.

PROCURADOR – Levante-se e fique de pé, se faz favor. (Funça levanta-se) É verdade que costuma entregar à testemunha 30 quilos de droga para guardar?

  1. FUNÇA – Não sou eu que tenho que provar que não lha dei. Ela é que tem que provar que lha dei.

PROCURADOR – Foi o arguido que a mandou fugir para São Tomé?

  1. FUNÇA – Quem faz uma acusação deve prová-la.

PROCURADOR – Mas ela disse isso aqui, à sua frente.

  1. FUNÇA – Ela pode dizer o que ela quiser e onde ela quiser.

PROCURADOR – Se o arguido não desmentiu… é porque consentiu.

  1. FUNÇA – Juridicamente é precisamente o oposto. É por isso que há o direito de o arguido manter-se em silêncio, sem que lhe seja prejudicado minimamente por isso.

PROCURADOR – Mas ela fez-lhe uma acusação e o senhor não disse que é mentira.

  1. FUNÇA – O ministério público pode achar que é verdade e acusar-me. Pois, é a sua função, desde que haja mero indício. Mas o juiz, a quem cabe condenar, carece de provas absolutas para o fazer.

PROCURADOR (para o juiz) – Investigar um advogado é coisa complicada! (Para Funça) Também não é verdade que foi falar com a testemunha na cadeia, e que lhe levou recado dos arguidos, em como lhe dariam 100 mil contos para negar as suas declarações?

  1. FUNÇA – Mesmo que fosse verdade, como advogado, fazia parte da estratégia de defesa. Mas, não é verdade. Ela foi ter comigo, um dia em que estive a falar com um cliente, e disse-me que tinha intenção de denunciar os meus constituintes, se não lhe dessem, pelo menos, 50 mil contos.

PROCURADOR – Costuma levar dinheiro àqueles estrangeiros na cadeia, enviado pela testemunha?

  1. FUNÇA – Especificamente, não. Várias vezes tenho levado dinheiro, pasta de dente, escova, sabonete, até feitiço para os meus clientes, que os familiares lhes mandam para os ajudar no julgamento.

PROCURADOR – Quer dizer então que a testemunha inventou tudo?

  1. FUNÇA – Isso é lá com ela. Eu tenho a minha consciência absolutamente tranquila de que não estou ligado a nenhum tipo de organização criminosa. Que não seja, simplesmente, como advogado.

PROCURADOR – Como é que conheceu os arguidos deste processo?

  1. FUNÇA – Os arguidos deste processo, e tudo quanto chegou ao meu conhecimento, foi no âmbito de um relacionamento profissional.

O procurador faz sinal ao juiz de que não tem mais pergunta a fazer.

JUIZ – DESPACHO: Dou provimento às acusações do ministério público e, decreto a prisão preventiva para o arguido Funça das Brumas. Ordeno, ainda, uma busca ao seu escritório e residência, com vista à localização e apreensão de documentos e tudo quanto se possa consubstanciar na prática de crime relacionado com este processo. A leitura da sentença dos outros arguidos fica marcada para o dia 23 de Outubro, às 9h30. Está encerrada a audiência.

Funça e os outros arguidos saem sob custódia dos guardas prisionais e polícias fortemente armados.

XXXIX CENA

RELATOR DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Acórdão nº 1/2010: Dando provimento ao recurso interposto pela defesa do arguido Funça das Brumas, o supremo tribunal deliberou a libertação imediata do arguido, bem como a nulidade de todas as provas recolhidas, por verificar erros processuais grosseiros durante a execução do mandado de busca ao domicílio. Verificou-se que a referida busca, com intuito de apreender documentos de provas, pressupõe-se que o domicílio também funcionava como escritório do arguido. E essa busca não foi acompanhada por um magistrado competente, nem por um representante da Ordem dos Advogados, conforme manda a lei. Determina, assim, o arquivamento deste processo, por verificar que todas as provas incriminatórias, produzidas de forma quase que expedita, provieram de uma única testemunha, carecendo, por isso, de alguma credibilidade. Cumpra-se.

XL CENA

JUIZ – Durante este julgamento, as declarações da testemunha Droganesa Soares, pesaram de forma determinante, e sem margem de dúvidas, para a efetiva condenação dos arguidos. A testemunha falou de forma clara e objetiva, muito serena, bastante firme e convicta nas respostas. Gesticulava e os seus meneios conferiam rigor ao seu relato, transmitiam até as emoções das conversas. Deu pormenores, e o tribunal não teve dúvidas de que ela dizia a verdade. Até por alguns lapsos de memória, quanto a datas, próprios de quem tenta recordar algo, se via na expressão do seu rosto, nas pausas que fazia, bem como nos olhos que frequentemente colocava no teto da sala de audiência que estava a fazer um esforço grande de memória para relatar ponto por ponto. O tribunal reparou também que os arguidos usavam e abusavam de expressões como "não" e "nunca". E tudo isso lhe pareceu ilógico. E comparadas com as declarações da testemunha, as suas versões esfumavam-se. Vão, por isso, condenados a pena de prisão efetiva pelos crimes de tráfico internacional de estupefacientes, associação criminosa e lavagem de capitais. Moringo Semedo, 25 anos; Djondjon Gonçalves, 24 anos; Lixívia Martins, 23 anos; Tengana da Veiga, 22 anos; e Naiss Tavares 12 anos. E o tribunal declara ainda a favor do Estado os bens de Moringo, Lixívia e Djondjon, constantes da lista proposta pelo ministério público, nomeadamente: 20 prédios urbanos; 6 lotes de terreno; 5 viaturas topo de gama e 15 mil escudos em dinheiro. Tribunal regional da comarca do Sal, 23 de Outubro de 2009. Está encerrada a audiência.

XLI CENA

RELATOR DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Por este acórdão, o supremo tribunal de justiça vem confirmar a condenação ditada pelo tribunal da comarca do Sal, baixando-se, entretanto, as penas aplicadas a: Moringo Semedo, de 25 para 19 anos de prisão; Djondjon Gonçalves, de 24 para 18; Lixívia Martins, de 23 para 17; Tengana da Veiga, de 22 para 11 e Naiss Tavares, de 12 para 6 anos. Cidade da Praia, 2 de Julho de 2010.

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